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São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O comando do programa espacial brasileiro deve ser exclusivamente civil?

NÃO

Civil ou militar?

ALDO VIEIRA DA ROSA

Há un s 2.000 anos, o general que cruzasse o rio Rubicão, na Itália, e entrasse no território romano com suas legiões estaria cometendo um crime de traição. Foi exatamente o que Júlio César fez em 49 a.C. Esse ato contribuiu significativamente para acabar com a República e criar o império romano, um fato que ilustra as dificuldades do relacionamento entre um regime democrático civil e suas Forças Armadas.
A Roma republicana precisava de suas legiões para a defesa e a conquista, mas reconhecia o perigo de golpes militares. Estabeleceu leis a fim de manter as forças militares fora da zona metropolitana. Esse equilíbrio, inerentemente instável, persistiu por longo tempo.
Democracias civis são muito mais desejáveis do que regimes teocráticos ou militares, mas estes últimos são muito mais fáceis de estabelecer e de manter. Hoje, nações ainda precisam de Exércitos, e aquelas que prezam um governo civil precisam achar uma fórmula que claramente delimite as funções dos militares. Infelizmente, para isso não existem modelos rígidos, existe somente a necessidade de constantemente rever cada situação com calma e deliberação.
Um forte componente cultural predispõe certos povos a optar por democracias civis. Os EUA, nascidos de elementos que se revoltaram contra a tirania européia, adotaram de maneira natural uma inclinação pela autoridade civil, sem no entanto enfraquecer seu poderio militar. Também o Brasil tem longa tradição de preferir um governo civil, desde o tempo do Império até a data de hoje (com o relativamente curto interregno de 1964).
O triste acidente de Alcântara, em que perdemos tantos preciosos elementos, sugere revermos mais uma vez a interação civil/militar no Brasil. Alcântara não deve ser, no entanto, uma oportunidade para avançar idéias simplistas só por serem elas "politicamente" corretas. Idéias precisam ser calcadas em política pragmática, ponderada cuidadosamente. Simplesmente afastar os militares do projeto pode não ser a melhor solução; pode até não ser solução nenhuma. Criar uma nova entidade civil para essas atividades seria uma solução burocrática sem sentido -já temos no Inpe uma tal entidade, que vem desincumbindo sua missão de maneira laudável.
Vejamos a contribuição militar.
Desde os primeiros momentos da criação do Inpe, reconheceu-se que atividades espaciais têm aspectos militares e civis e que mesmo atividades estritamente civis poderiam se beneficiar da cooperação militar. Por exemplo, lançamentos de mísseis e satélites requerem uma base de operação, o que implica problemas de logística e de segurança, áreas em que as Forças Armadas se especializam. Faz pouco sentido criar uma onerosa organização civil quando o país já possui, na Aeronáutica, no Exército e na Marinha, o pessoal e a experiência necessários. Note-se que, em geral, não se trata de ampliar as Forças Armadas para executar tais tarefas.
Desenvolvimentos tecnológicos precisam frequentemente ser patrocinados (leia-se pagos) pelo governo, especialmente na fase em que há ainda grandes incertezas quanto ao sucesso. Indubitavelmente, a maneira mais eficiente é o governo emitir contratos de desenvolvimento com empresas privadas. Esse procedimento é comum nos EUA e em muitos outros países avançados, mas é menos comum aqui entre nós, onde a cultura do "deixa que eu chuto" impele os órgãos governamentais a criarem seus próprios laboratórios e institutos.
Por outro lado, o uso de laboratórios governamentais tem suas vantagens em determinadas situações. Nos EUA existem inúmeros grandes laboratórios nacionais. Muitos funcionam sob égide do Ministério da Energia; muitos estão sob controle das Forças Armadas. Mas não usemos os EUA como paradigma. Soluções eficazes lá podem ser desaconselháveis no Brasil. Necessitamos de política apropriada, da mesma maneira que necessitamos de tecnologia apropriada. Precisamos usar a cabeça e encontrar soluções autóctones.
No Brasil, a proporção do desenvolvimento tecnológico feito por instituições governamentais, comparada com o feito diretamente pela indústria, parece excessiva. Isso leva a dificuldades de implementação comercial dos produtos e serviços criados e consequente reduzida contribuição para a economia nacional. No entanto temos organizações governamentais que fazem pesquisas e desenvolvimento de alto valor e, entre essas, destaca-se o CTA.
Esse é exatamente o local onde estão sendo desenvolvidos os foguetes usados em Alcântara. Seria difícil questionar a dedicação e a competência do pessoal do CTA. Poderíamos, quando muito, examinar se lá é o local mais adequado para o desenvolvimento de foguetes ou se tal atividade deveria ser contratada com indústria privada.
Mesmo que adotássemos esta última alternativa, precisaríamos de uma entidade governamental para supervisionar o contrato, e nenhuma melhor que o CTA para essa função. Seria absurdo tirar o CTA do circuito simplesmente dada a sua natureza militar. Não devemos nos precipitar. O CTA pode bem ser o melhor lugar para esses trabalhos. Devemos apenas aproveitar a ocasião para reexaminar todos os aspectos dos nossos esforços a fim de conquistarmos uma fatia do espaço extraterrestre.


Aldo Vieira da Rosa, 83, doutor em engenharia e brigadeiro-do-ar reformado, é professor emérito da Universidade Stanford (EUA) e fundador do Inpe. Foi presidente do Conselho Nacional de Pesquisa, atual CNPq.


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