São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Notícias do Haiti

Desastres provocados por furacões são qualificados como "naturais", mas as coisas não são tão simples. Jeanne não chegou a ser um furacão, mas uma tempestade tropical. Mesmo assim, deixou mais de mil vítimas fatais no Haiti. Verdadeiros furacões que precederam Jeanne mataram muito menos em outras partes do Caribe. Na República Dominicana, vizinha do Haiti, o furacão Ivan fez apenas 19 vítimas fatais. Em maio, inundações mataram outro milhar de pessoas no leste do Haiti.
"Haiti" é o nome original da Ilha Hispaniola e significa "terra das montanhas" na língua dos primeiros habitantes, os ameríndios arauaques. Colombo, no retorno de sua viagem pioneira, não encontrou forma melhor de descrever o relevo da ilha que amassando um pedaço de papel grosso. Hispaniola é um elemento do conjunto geomorfológico das ilhas antilhanas. Esses arquipélagos formam as porções emersas do extenso arco montanhoso que prolonga o relevo continental.
Ao longo de décadas, os camponeses dos vales fluviais haitianos devastaram as florestas das montanhas circundantes a fim de extrair a lenha usada para cozinhar alimentos. As chuvas torrenciais transportam os sedimentos das vertentes desnudas, inundando cidades e povoados sob camadas de lama. Natureza e pobreza conspiram juntas na articulação dos desastres "naturais".
Mas o desastre haitiano tem uma dimensão política. A força de paz da ONU, liderada pelo Brasil, não conseguiu fornecer ajuda às populações atingidas com um mínimo de eficácia. Essa força dispõe de menos de 3.000 "capacetes azuis", de um total de 6.700 prometidos em abril. Nas operações de auxílio aos desabrigados, seus oficiais recorrem a líderes de bandos armados locais. Nem a força da ONU nem o governo inventado pela intervenção militar americana de fevereiro controlam a maior parte do país. Há pouco, o ministro francês Renaud Muselier, que visitava o Haiti, foi cercado em Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, pelos "chimères", as milícias leais ao presidente deposto Jean-Bertrand Aristide. Duas horas de tiroteio e uma evacuação conduzida por tropas brasileiras salvaram o francês.
A força da ONU não desempenha um papel na definição do futuro político do Haiti. Ela funciona como exército provisório do governo gerado pela intervenção estrangeira. Esse governo ancora-se em grupos ligados à ditadura do general Raul Cedras, que governou o Haiti entre 1991 e 1994, além de narcotraficantes e máfias empresariais. Seus objetivos são a legitimação do novo regime por meio de eleições que não incluam o presidente deposto pelos americanos e a restauração do Exército, que foi dissolvido por Aristide.
Nos anos de governo, Aristide transfigurou-se de líder popular em caudilho autoritário. Mas ele conserva forte influência sobre a população pobre haitiana. A receita política aplicada ao Haiti aponta na direção da perpetuação da violência. Depois da intervenção, George Bush solicitou ao Brasil que liderasse a força da ONU de modo a internacionalizar a operação de mudança de regime. O governo brasileiro julgou que a missão asseguraria o apoio de Washington ao projeto de conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Referindo-se ao agravamento da crise haitiana, o general Augusto Heleno Pereira, comandante da força de paz, garantiu que "militar não reclama". É pena: o preço da aventura pode ser alto demais.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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