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São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um homem público

JOSÉ SERRA

A memória de André Franco Montoro recebe hoje merecida homenagem no aeroporto de Guarulhos, que passou a ter seu nome.
Vereador, deputado estadual, deputado federal, ministro do Trabalho, senador, governador de São Paulo, fundador do PSDB e novamente deputado federal, Montoro não deixou apenas saudades. Para os que estiveram com ele na vida pública, converteu-se num exemplo permanente, numa referência para a ação presente e para os planos futuros.
Como governador de São Paulo, teve o que na época chegou a ser considerado um defeito, mas que hoje se percebe como qualidade: não conseguia ser virtual, jogar com as aparências, fazer bons lances publicitários. A virtualidade virou praga no Brasil, substituindo a ação de administrar. Para Montoro, governar significava outra coisa -ter compostura, respeitar a opinião pública informada e a desinformada, assumir a responsabilidade pelos grandes e pequenos compromissos firmados durante toda a vida e na campanha eleitoral.
No governo do maior Estado do país, eleito ainda durante a ditadura, soube fazer São Paulo e o Brasil avançarem, caminhando por um perigoso fio de navalha: não perecer, mas também não trair. Não adotou nenhuma atitude provocativa em relação ao governo dos generais. Pôs-se em campo para sanear as finanças do Estado, virtualmente quebrado, e negociou ou deu cobertura a seus colaboradores para negociarem as difíceis pendências entre o Estado e a União. Uma bravata irrefletida ou descaminhos administrativos e populistas, tão presentes na oposição da época, levariam com certeza a perecer a grande experiência democrática em São Paulo.
Não ofereceu, porém, concessões desnecessárias. Ao contrário, sua atitude corajosa de repúdio à traição apareceu já no começo do governo, durante um almoço no Palácio dos Bandeirantes, com outros governadores e líderes da oposição. Pela janela, vimos uma agressiva passeata aproximar-se das grades que circundam a sede do governo paulista. A motivação de fundo era o desemprego em alta. A organização, muito eficiente, era do PT e do PC do B.
Montoro não hesitou e descartou, na hora, a possibilidade de que a guarda do palácio respondesse com pancadaria. Por isso, algumas grades foram derrubadas. As imagens das grades do palácio no chão lhe trouxeram, então, um grande desgaste na opinião pública, ônus que ele assumiu com firmeza, sem se arrepender de seu gesto.


Montoro não deixou apenas saudades. Para os que estiveram com ele na vida pública, converteu-se num exemplo permanente

A consequência democrática de Montoro desdobrou-se, pouco tempo depois, na iniciativa de convocar o comício pelas eleições diretas à Presidência da República, em 25/1/84, num lance de dupla ousadia: contrariou companheiros próximos, que temiam um fracasso e resistiam à idéia, e desagradou ao regime militar que comandava o país.
O saneamento financeiro do Estado, numa época em que ainda não estava na moda, deu certo, mas Montoro nunca se deixou fascinar pela dureza fiscal como um fim em si. Evitou, por exemplo, cortes mesquinhos na área social, geralmente uma forma de exibir sadismo financeiro e ficar bem com o "mercado". É claro que isso deu muito mais trabalho, pois exigiu um padrão de seletividade de gastos e de cortes de custo bastante difícil, operacional e politicamente. Mas, apesar do aperto, conseguiu planejar o conjunto das despesas, para não viver "na boca do caixa", além de executar uma boa programação orçamentária, que impediu excesso ou falta de gastos na hora final. A procura de novas fontes de financiamento de investimentos foi intensa e também deu certo.
Por tudo isso, o governo Montoro, ao contrário do que diz folclore político, não foi uma administração só do pequenino, da sociedade utópica dos "dois alqueires e uma vaca". Retomou e equacionou as obras do metrô para além do Tatuapé; fez a hidrovia do Tietê-Paraná; concluiu hidrelétricas; realizou um vasto programa de estradas vicinais; completou as rodovias da Baixada Santista; fez o Programa Metropolitano de Saúde, que ergueu grande parte dos bons hospitais e centros de saúde da região; despoluiu Cubatão; cobriu o Estado com escolas; duplicou a área construída da Unicamp; e assim por diante.
A primeira obra liberada por Montoro, aliás, foi a estrada que liga a rodovia dos Trabalhadores ao aeroporto de Cumbica. O governo anterior havia se comprometido a fazer essa estrada, assumira desapropriar a área e custear uma parte das obras do aeroporto. Compromissos fáceis de assumir, já que seriam pagos pelo próximo governador... Depois de ouvir seus secretários, Montoro topou: "Não será possível pagar pela conclusão das obras do aeroporto, mas tocamos a estrada e cobrimos a desapropriação".
Montoro tinha outra virtude escassa na vida pública brasileira. Resistia ao máximo às pressões fisiológicas e ao loteamento de cargos. Procurava escolher seus auxiliares pelo mérito, o que lhe assegurou bons resultados no atacado. Também não era centralizador. Isso o privava de certo faturamento político no varejo, com parlamentares e prefeitos, mas era mais eficiente do ponto de vista do funcionamento do governo.
Ele organizou, assim, logo de início, uma equipe de qualidade, fugindo a uma tendência que tem se revelado, nestes últimos 20 anos, outra praga brasileira: a transformação da administração pública numa espécie de curso de graduação em administração. Entram pessoas inadequadas ou, no melhor dos casos, despreparadas, que consomem tempo e fazem estragos atrás de estragos. Ao final, aprendem alguma coisa, o que lhes permite, em seguida, ganhar bem na área privada. O custo das bolsas de estudos e dos estragos fica por conta do país e do governo a que serviram.
A melhor definição de Franco Montoro como homem público foi dada por ele mesmo ao jornalista Elio Gaspari, quando completou 80 anos, em 1996: "Eu sigo um ensinamento do padre Lebret: o importante é você se considerar um zé-ninguém a serviço de uma grande obra. Sou um zé-ninguém há 80 anos, mas posso olhar para trás com orgulho e para frente com esperança".

José Serra, 61, economista, é professor visitante do Instituto de Estudos Avançados de Princeton (EUA). Foi secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo (governo Montoro), senador pelo PSDB-SP (1995-2002) e ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique Cardoso).


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