|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Globalização, paz e biossegurança
TITO NERY
A recente epidemia de Sars (síndrome respiratória aguda grave)
-ou "pneumonia asiática"- revelou
um Brasil despreparado para lidar com
o lado negativo da globalização.
Informações e bens de consumo circulam pelo mundo do século 21, no qual
as distâncias vão sendo mais e mais encurtadas. Na mesma velocidade com
que se dão as trocas comerciais e de serviços, porém, circulam bactérias e vírus.
A Sars, felizmente, não chegou por aqui
como uma doença, mas como um alerta
do risco de novas epidemias globais. Ela
chegou como um desafio aos governantes brasileiros, o de investir em biossegurança, mesmo sendo o nosso país um
território de paz.
O Ministério da Saúde respondeu a
esse desafio buscando no mundo o melhor modelo de avaliação, investigação e
atuação epidemiológica em tempos globais. Constatou que a América Latina, e
não só o Brasil, não dispõe de laboratórios de referência mundial, ou seja, de
centros científicos com recursos técnicos adequados para responder às novas
epidemias. Mais ainda, que, de todas as
pontas a amarrar para enfrentar uma situação de globalização da doença, só tinha em mãos, efetivamente, duas: a informação cada vez mais rápida e abundante sobre dados de saúde pública e a
qualidade de seus profissionais. Mas,
em matéria de recursos técnicos para
dar conta do desafio da globalização da
doença, o país ainda tinha muito a caminhar.
A boa notícia atende pelos nomes de
NB-3 e NB-4. É assim que a comunidade científica chama os laboratórios com
alto nível de biossegurança, aqueles tecnicamente aparelhados para lidar com
as epidemias globais. E o governo brasileiro já definiu a construção de seis laboratórios com nível de biossegurança
três. A Funasa (Fundação Nacional de
Saúde) garantiu que os dois primeiros
sejam instalados no Estado de São Paulo, por meio de compromisso firmado
com o Banco Mundial. Serão os primeiros laboratórios NB-3 da América Latina e utilizarão a estrutura já existente no
Adolfo Lutz e no Instituto Pasteur.
Está em negociação, também com o
Banco Mundial, a instalação de um laboratório NB-4. Para ter uma idéia do
grau de especialização desse empreendimento, basta saber que, no mundo, só
existem dois centros NB-4: um nos EUA
e outro em território que pertenceu à
extinta União Soviética. Laboratórios
com tal nível de excelência foram concebidos para fazer frente ao fantasma da
guerra biológica e instalados nos EUA e
na antiga URSS por razões geopolíticas.
Herança da Guerra Fria, esses superespecializados laboratórios encontraram
uma razão para existir também em países pacifistas como o Brasil, que tratam
de enfrentar o desafio da globalização
da doença.
A Sars, felizmente, não chegou por aqui como uma doença, mas como um alerta do risco de novas epidemias globais
|
Agora, um pouco de informação técnica, para que o leitor entenda melhor
por que o governo está preocupado em
investir em laboratórios assim.
Existem quatro níveis de biossegurança. O nível um trata das práticas e padrões da microbiologia. O nível dois é
exigido em trabalhos que envolvam
sangue humano, líquidos corporais, tecidos ou células em que a presença de
um agente infeccioso pode ser desconhecida. O nível de biossegurança três
permite trabalhar com agentes infecciosos nativos ou exóticos, com potencial
de transmissão por via respiratória, que
podem causar infecções potencialmente letais. Nesse nível de biossegurança,
todas as manipulações laboratoriais devem se realizar em uma cabine de segurança biológica e incluir outras barreiras de proteção.
Por fim, o nível quatro envolve trabalho com agentes perigosos, com alto risco de doença fatal e contra os quais não
existem vacinas ou terapias disponíveis.
O conceito de biossegurança ganhou
força no século 20, depois de tragédias
como a morte de 15 milhões de pessoas
pela epidemia da varíola nos anos 1915-20, de outras 20 milhões a 40 milhões de
vítimas da gripe espanhola em 1918, de
700 mil pessoas que contraíram a gripe
de Hong Kong em 1968 e, mais recentemente, da morte de 26 milhões de contaminados pelo vírus da Aids.
Em epidemiologia, informação é importante. Mas deve estar claro que a
atuação em face de epidemias globalizadas exige, além dela, recursos técnicos e
laboratoriais. E exige que o governo
preste contas, com transparência, de
suas ações para resguardar a população
de ameaças.
Tito Nery, 48, médico pneumologista, é coordenador regional da Funasa-São Paulo. Foi presidente da Federação Nacional dos Médicos (1998-2000).
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES José Serra: Um homem público Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|