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São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Globalização, paz e biossegurança

TITO NERY

A recente epidemia de Sars (síndrome respiratória aguda grave) -ou "pneumonia asiática"- revelou um Brasil despreparado para lidar com o lado negativo da globalização.
Informações e bens de consumo circulam pelo mundo do século 21, no qual as distâncias vão sendo mais e mais encurtadas. Na mesma velocidade com que se dão as trocas comerciais e de serviços, porém, circulam bactérias e vírus. A Sars, felizmente, não chegou por aqui como uma doença, mas como um alerta do risco de novas epidemias globais. Ela chegou como um desafio aos governantes brasileiros, o de investir em biossegurança, mesmo sendo o nosso país um território de paz.
O Ministério da Saúde respondeu a esse desafio buscando no mundo o melhor modelo de avaliação, investigação e atuação epidemiológica em tempos globais. Constatou que a América Latina, e não só o Brasil, não dispõe de laboratórios de referência mundial, ou seja, de centros científicos com recursos técnicos adequados para responder às novas epidemias. Mais ainda, que, de todas as pontas a amarrar para enfrentar uma situação de globalização da doença, só tinha em mãos, efetivamente, duas: a informação cada vez mais rápida e abundante sobre dados de saúde pública e a qualidade de seus profissionais. Mas, em matéria de recursos técnicos para dar conta do desafio da globalização da doença, o país ainda tinha muito a caminhar.
A boa notícia atende pelos nomes de NB-3 e NB-4. É assim que a comunidade científica chama os laboratórios com alto nível de biossegurança, aqueles tecnicamente aparelhados para lidar com as epidemias globais. E o governo brasileiro já definiu a construção de seis laboratórios com nível de biossegurança três. A Funasa (Fundação Nacional de Saúde) garantiu que os dois primeiros sejam instalados no Estado de São Paulo, por meio de compromisso firmado com o Banco Mundial. Serão os primeiros laboratórios NB-3 da América Latina e utilizarão a estrutura já existente no Adolfo Lutz e no Instituto Pasteur.
Está em negociação, também com o Banco Mundial, a instalação de um laboratório NB-4. Para ter uma idéia do grau de especialização desse empreendimento, basta saber que, no mundo, só existem dois centros NB-4: um nos EUA e outro em território que pertenceu à extinta União Soviética. Laboratórios com tal nível de excelência foram concebidos para fazer frente ao fantasma da guerra biológica e instalados nos EUA e na antiga URSS por razões geopolíticas. Herança da Guerra Fria, esses superespecializados laboratórios encontraram uma razão para existir também em países pacifistas como o Brasil, que tratam de enfrentar o desafio da globalização da doença.


A Sars, felizmente, não chegou por aqui como uma doença, mas como um alerta do risco de novas epidemias globais

Agora, um pouco de informação técnica, para que o leitor entenda melhor por que o governo está preocupado em investir em laboratórios assim.
Existem quatro níveis de biossegurança. O nível um trata das práticas e padrões da microbiologia. O nível dois é exigido em trabalhos que envolvam sangue humano, líquidos corporais, tecidos ou células em que a presença de um agente infeccioso pode ser desconhecida. O nível de biossegurança três permite trabalhar com agentes infecciosos nativos ou exóticos, com potencial de transmissão por via respiratória, que podem causar infecções potencialmente letais. Nesse nível de biossegurança, todas as manipulações laboratoriais devem se realizar em uma cabine de segurança biológica e incluir outras barreiras de proteção.
Por fim, o nível quatro envolve trabalho com agentes perigosos, com alto risco de doença fatal e contra os quais não existem vacinas ou terapias disponíveis.
O conceito de biossegurança ganhou força no século 20, depois de tragédias como a morte de 15 milhões de pessoas pela epidemia da varíola nos anos 1915-20, de outras 20 milhões a 40 milhões de vítimas da gripe espanhola em 1918, de 700 mil pessoas que contraíram a gripe de Hong Kong em 1968 e, mais recentemente, da morte de 26 milhões de contaminados pelo vírus da Aids.
Em epidemiologia, informação é importante. Mas deve estar claro que a atuação em face de epidemias globalizadas exige, além dela, recursos técnicos e laboratoriais. E exige que o governo preste contas, com transparência, de suas ações para resguardar a população de ameaças.

Tito Nery, 48, médico pneumologista, é coordenador regional da Funasa-São Paulo. Foi presidente da Federação Nacional dos Médicos (1998-2000).


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