São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 2006

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Bento 16, diplomata

Viagem do papa à Turquia ajuda a acalmar os ânimos num mundo em que cresce a violência motivada pela religião

A VIAGEM do papa Bento 16 à Turquia, se não significa o triunfo da diplomacia, pelo menos indica que o sumo pontífice está atento ao diálogo inter-religioso e aos desdobramentos políticos do assim chamado "choque de civilizações".
De uma perspectiva laica, é bom que Joseph Ratzinger esteja preocupado com essas questões. Se o gesto diplomático ajudar as principais autoridades religiosas muçulmanas a desarmar os espíritos de seus fiéis, diminuem as chances de repetir-se episódios de violência como os protestos deflagrados pela publicação, na Dinamarca, de charges tidas por ofensivas ao profeta Maomé.
Especialmente para Bento 16, esse é um desafio e tanto. Em setembro, o prelado envolveu-se numa polêmica ao citar, em aula magna na Alemanha, um obscuro imperador bizantino que acusou o islã de ser violento.
A referência do papa a Manuel 2º Paleólogo (1350-1425), o qual teria afirmado que a novidade trazida por Maomé foram "coisas más e desumanas, como a sua ordem para espalhar pela espada a fé que ele pregava", desencadeou uma onda de violentas manifestações de muçulmanos em todo o mundo. A ironia é que tais protestos só endossaram, séculos depois, a afirmação daquele imperador bizantino.
Ademais, enquanto era apenas um cardeal e ocupava o posto de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (o novo nome da velha Inquisição), Ratzinger deu declarações contra a entrada da Turquia na União Européia e foi o responsável pela publicação da epístola "Dominus Iesus" (2000), na qual o Vaticano diz com todas as letras que quem não acata a "verdade" como interpretada pela Igreja Católica está em sérios apuros teológicos, "in statu gravis penuriae".
O líder dos católicos não poderia, evidentemente, pensar de outro modo. A forma como "Dominus Iesus" coloca a questão é até diplomática, pois admite a possibilidade de graça para os não-católicos, ainda que "objetivamente" menor do que para o católico. Historicamente, a epístola é uma versão branda do "Extra Ecclesiam nulla salus" (fora da Igreja não há salvação), do papa Bonifácio 8º (1294-1303).
Ao sagrar-se papa, Ratzinger acrescentou ao dever de zelar pela ortodoxia da fé a missão de atuar como um chefe de Estado, obrigado a entender-se da melhor forma possível com seus vizinhos. Foi isso que o fez, após os incidentes de setembro, transformar a viagem para a Turquia, marcada desde o início do ano, num gesto de mão estendida.
Evidentemente, isso não bastará para desarmar as tensões nem para fazer com que adeptos de uma religião aceitem outra como igual, mas já é um passo em direção ao não-enfrentamento.


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