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TENDÊNCIAS/DEBATES
Cleptocracia
CESAR MAIA
Há um conceito novo. Sugiro o nome: cleptocracia,
ou seja, a corrupção como forma de governo ou modo de produção política
A SÉRIE de fatos que envolvem
governos e políticos introduz
um conceito novo na manipulação do setor público brasileiro.
Durante décadas, os pesquisadores
desenvolveram conceitos como patrimonialismo e clientelismo. O primeiro tratava de explicar as relações do
setor privado com os governos, como
fornecedores privilegiados ou como
destinatários de vantagens e privilégios. Aos políticos e funcionários cabem as comissões. O segundo desenhava um quadro de troca de pequenos favores por votos.
É claro que são conceitos que continuam a ser aplicados e até se sofisticaram, tanto pelas oportunidades que
o mundo financeiro oferece quanto
pelo cardápio de assistencialismo
que, hoje, os governos oferecem.
Nos últimos anos, contudo, surgiu
uma modalidade nova. É um elenco
de alternativas de desvio de dinheiro
público, por iniciativa autônoma de
políticos e dirigentes de governos,
com a finalidade de financiar as máquinas políticas, enriquecendo-se ou
não. A criatividade não tem mais limites. Todas as semanas surge um sistema novo. E não se trata de fato novo,
mas de sistemas novos.
O "valerioduto" é um sistema em
que a empresa que doava recursos aos
políticos prescindia de fazê-lo diretamente e usava uma agência de publicidade como veículo. Esta, por sua
vez, cobrava comissão como se fossem serviços formais da agência. Um
delito quase perfeito, se do outro lado
da boca do caixa os recebedores tivessem como registrar o que receberam.
Esse sistema introduziu duas novidades. Uma delas foi a tentativa de
comprar a maioria em bloco, no Legislativo. A outra foi o aperfeiçoamento das mensalidades defensivas
-já existentes em alguns Legislativos
regionais e locais- por parte de setores patrimonialistas que não querem
correr riscos no Legislativo. Uma espécie de antecipação ao achaque.
Lembre-se que, ao contrário, as ordens de pagamento, ou "valerianas",
vinham centralizadas desde os gabinetes do entorno palaciano.
Outro sistema, porém de mais difícil documentação, é o uso dos fundos
de pensão em operações financeiras
de vários tipos.
O mapa desse sistema é descrito no
mercado pela identificação dos gestores políticos das operações, articulados a corretores determinados, numa
espécie de divisão do trabalho preestabelecida entre partidos ou setores
de partidos que estão no poder. Outro
mais conhecido é o caso dos sanguessugas. Pela tipologia, deve ter se repetido em outros ministérios, empresas
ou órgãos. É o controle dos fornecimentos, articulados com emendas
parlamentares e de execução autorizada pelos mesmos gabinetes do entorno palaciano. Se alguém tinha dúvida do comando central, deixou de
ter quando apareceu o caso do dossiê.
Há, ainda, outro novo sistema de
grande capilaridade: a criação generalizada de ONGs por parte de políticos,
registradas ou não em seus próprios
nomes ou no de amigos e parentes.
Atropelando concorrência, concurso público ou qualquer critério de
prioridade ou transparência orçamentária, essas ONGs passam a ser
abastecidas por empresas ou ministérios, de forma a financiar partidos ou
grupos dentro dos partidos.
Esse é o mais interessante, pois não
há a necessidade de interveniência
corruptora do setor privado. É um
processo interno ao Estado, com recursos públicos desviados para fins
políticos e político-privados, isto é,
uma corrupção intra-estatal-política.
Fiquemos por aqui e deixemos aos
pesquisadores a tarefa de ampliar
com mais exemplos. Permito-me sugerir para este novo conceito um nome: cleptocracia, ou seja, a corrupção
como forma de governo ou modo de
produção política.
E não se trata de querer dar a nenhuma instância de governo o privilégio de ter o monopólio da cleptocracia. Os casos das máfias do lixo, os casos Santo André e Rondônia, a enorme probabilidade de uma prisão recente de deputado eleito identificar
um esquema quase perfeito de transferência de dinheiro de e para fora,
por meio de empresas criadas para
este fim, via sub/superfaturamento
ou operações financeiras, e tantos filhotes, como no caso das ONGs e subsistemas do tipo sanguessuga estão
por aí...
Faz-se urgente a construção de um
contra-sistema de controle interno,
como há em vários países, o que certamente minimizaria tais redes "mafiolíticas". Mas esse é tema para outro
artigo: como golpear a cleptocracia.
CESAR MAIA, 61, economista, é prefeito do Rio de Janeiro pelo PFL.
cesar.maia@uol.com.br
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