São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 2006

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O presidente Lula e a Aids

CAIO ROSENTHAL e MÁRIO SCHEFFER

O fato novo é que está sob ameaça a sustentabilidade do programa nacional de Aids. Passou da hora de o presidente Lula intervir

PASSADOS 25 anos desde o surgimento da Aids, em 1981, o Brasil se destaca como referência mundial no tratamento, além de oferecer assistência integral para todos os acometidos pela epidemia e de ter conseguido, em parte, prevenir o avanço do HIV.
No dia 13/11 deste ano, a lei nš 9.313/96 completou dez anos. Ela garantiu o acesso universal aos medicamentos anti-retrovirais no SUS (Sistema Único de Saúde). Para marcar a data, foi lançado em São Paulo um manifesto em defesa do programa brasileiro de combate à Aids, assinado por representantes de entidades da sociedade civil, pessoas vivendo com HIV e Aids, profissionais de saúde, gestores, técnicos de programas governamentais, ativistas, pesquisadores e lideranças políticas.
Todos reconhecem os méritos da resposta brasileira, que fez caírem a mortalidade e as internações e conseguiu aumentar a expectativa de vida.
A eloqüência dos números, no entanto, ainda eleva a Aids à condição de um dos mais graves problemas de saúde pública do país.
Temos 600 mil infectados pelo HIV e 175 mil pessoas em tratamento. Diariamente, o Brasil registra 87 novos casos e 30 mortes por causa da Aids. A descontinuidade de muitas ações de prevenção, o diagnóstico tardio, a falta de tratamento eficaz para combater os efeitos adversos dos medicamentos, que atingem mais de 50% dos pacientes, e a dificuldade para entender a necessidade do uso correto e contínuo, aumentando a necessária e imprescindível adesão ao tratamento, são problemas ainda recorrentes.
O fato novo é que está ameaçada a sustentabilidade do programa nacional de Aids. O acesso universal a 16 medicamentos custará ao SUS, neste ano, cerca de 1 bilhão de reais, 80% dos quais destinados à compra de fármacos sob patentes.
O número crescente de pacientes, os limites impostos à produção de genéricos, os valores exorbitantes cobrados pela indústria farmacêutica, que teima em não se sensibilizar com a situação, mesmo após a negociação de preços, evidenciam que passou da hora de o presidente Lula intervir.
Queremos fazer chegar ao presidente os resultados de três estudos independentes, coordenados recentemente pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), pela Fundação Bill Clinton e pela Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids). Todos concluíram que o Brasil possui comprovada capacidade instalada e competência para a produção local de anti-retrovirais -inclusive de seus princípios ativos.
Que Lula não adie mais a decisão, tantas vezes ensaiada pelo governo anterior, de decretar licenças compulsórias dos anti-retrovirais sob patentes, que cada vez mais oneram o orçamento do Ministério da Saúde, e de investir pesadamente nos laboratórios estatais. Medidas que têm respaldo na nossa legislação e nos acordos internacionais firmados pelo Brasil, como a Declaração de Doha e o Acordo Trips, que trata dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio.
A resposta brasileira à Aids, resultado de decisão política, do ativismo comunitário e do investimento de recursos, é a prova maior de que o SUS pode dar certo. Com apenas 150 dólares per capita ao ano, o sistema público opera verdadeiro milagre, ao manter 500 mil profissionais e 6.500 hospitais; financiar 1 milhão de internações por mês e dar assistência aos portadores do HIV, aos renais crônicos, aos pacientes com câncer; ao realizar a imensa maioria das cirurgias cardíacas, das internações psiquiátricas, dos transplantes e todo o sistema de urgência e emergência, além da vigilância e da prevenção em saúde.
O SUS também absorve a cobertura negada (medicamentos, procedimentos de alto custo, doenças crônicas e infecciosas etc.) pelos planos de saúde (negada, porém cobrada), que, em 2005, acumularam receita de R$ 34 bilhões, quase o montante de que dispõe o Ministério da Saúde para atender população três vezes maior.
Mas também é gritante a dificuldade de acesso da população e a péssima remuneração dos profissionais de saúde. Esperamos, ainda, que o presidente não repita os erros de usar a gestão da saúde como moeda de troca pela governabilidade e que oriente seus assessores para não subestimar o potencial de corrupção na compra de serviços, medicamentos e insumos, como demonstraram os escândalos dos vampiros e dos sanguessugas.
Por fim, convidamos o presidente Lula a dialogar com a sociedade sobre os rumos da epidemia da Aids no Brasil.


CAIO ROSENTHAL, 57, médico infectologista do Hospital do Servidor Público Estadual e do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, é membro do Conselho Regional de Medicina de São Paulo.
MÁRIO SCHEFFER, 40, comunicador social e sanitarista, é mestre e doutorando em ciências da Faculdade de Medicina da USP e membro do Grupo Pela Vidda/SP.


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