São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 2000

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CLÓVIS ROSSI

Chorar a própria lágrima

SÃO PAULO - Cruzei com o dramaturgo Augusto Boal uma única vez, em Buenos Aires, faz uns 30 anos.
Pareceu-me, de saída, um profeta, que usa as palavras como lança-chamas para incendiar suas idéias e chamuscar o interlocutor.
Tanto tempo depois, o profeta ressurge magnífico, no texto ontem publicado por esta Folha. Trata-se da mais lúcida e brilhante análise que já li sobre a tal de globalização, e já li muitíssimas, ou por prazer ou por dever de ofício (mais destas que daquelas, diga-se).
Escreve Boal, por exemplo: "No mundo que pretende se robotizar -uso esse sinônimo para não ficar repetindo sempre a mesma palavra: globalizar- (...), tenho de chorar a lágrima que me jogaram no rosto, sorrir o sorriso que me esculpiram na face, como pedra".
A essência do incômodo, às vezes pânico, que causa a globalização está nessa frase. Mais que problemas econômicos e sociais, o diabo na globalização é aquilo que os franceses batizaram de "pensamento único".
Posso até gostar de tudo ou de muito do que caracteriza a globalização, mas não suporto a idéia de não poder ter um pensamento diferente, um que seja. Se não gosto, então, sinto-me prisioneiro não de uma cadeia física, mas mental.
Para voltar a Boal, quero sorrir o meu próprio sorriso, por cretino que seja, quero chorar a minha própria lágrima, por tola que seja. Quero sonhar o meu próprio sonho, por medíocre que seja ou, ao contrário, por inalcançável que seja.
É essa a química que move os manifestantes antiglobalização que têm ocupado as ruas das cidades onde se realizam grandes eventos globais.
São chamados pelos incondicionais da globalização de "baderneiros". Há, sim, baderneiros entre eles. Mas a esmagadora maioria quer apenas pensar com a própria cabeça, sorrir seu próprio sorriso, chorar sua própria lágrima.


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