São Paulo, segunda-feira, 30 de dezembro de 2002

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BORIS FAUSTO

Contra a corrente

Hesitei muito em escrever essas linhas, mas recebi um incentivo de forma inesperada. À espera de uma consulta médica, li numa revista, que só folheio nessas circunstâncias, opiniões sobre as festas natalinas. Ao lado de muitas banalidades, encontrei o depoimento de um jovem radialista, que afirmava abertamente que, nesse período, gostaria de dormir aí pelo dia 20 de novembro e acordar no começo do ano. Ele trata de descartar como explicação o pessimismo e o desinteresse por confraternizar-se com pessoas diversas e indica razões bem outras para o desejo de adormecimento -que me são familiares.
Cada vez mais, em nossa sociedade, o chamado "espírito natalino" corresponde a uma manifestação artificial, banalizada e potenciada pelos interesses entrelaçados da mídia e do comércio. O ritual de tempos passados cedeu lugar ao estereótipo e ao cumprimento de obrigações, em que a espontaneidade praticamente desapareceu. Somos forçados a ver e a ouvir pela televisão locutores de voz grave e pastosa repetindo frases retóricas, reproduzidas identicamente todos os anos. Somos forçados a receber votos de "feliz Natal e bom Ano Novo", ou algo assim, por parte de cantores, de atores ou de atrizes que nos iludem com uma intimidade inexistente.
Há também a romaria em busca das "dádivas obrigatórias", que representam um esforço físico adicional, empurrando-nos para os lotados templos do consumo, onde as pessoas suadas cumprem automaticamente mais um dever em meio aos múltiplos deveres cotidianos.
Há ainda os jantares alimentarmente excessivos e afetivamente contraditórios. Concedo que os hinos à culinária propiciem o encontro com amigos e com outras pessoas interessantes que quase não vemos ao longo do ano. Mas, ao lado dessa circunstância positiva, somos obrigados a encontrar parentes com os quais nada temos a ver ou personagens estranhos que tentam nos envolver em conversas inoportunas ou triviais sobre o neoliberalismo, os transgênicos, o governo Lula e, inevitavelmente, as agruras e as delícias do verão.
Tudo isso sem falar nos cartões protocolares, que me causam uma ponta de remorso. Nunca os envio por antecipação e fico com a impressão de que, em alguns casos, deveria fazê-lo. Resta a alternativa de responder a todos, caprichando na variação das frases.
Então, indagariam as boas almas, você está renegando os princípios de tolerância e de fraternidade que presidem esses dias? Você está esquecendo o que o Natal representa para as crianças e para os desvalidos? De modo nenhum. Estou criticando, sim, a hipocrisia contida na manipulação de princípios que deveriam valer para o ano todo, por mais difícil que seja alcançar a sua realização.
A esta altura, nadando de braçada contra a corrente, paro um momento para pensar como me sentiria se fosse possível dormir e acordar em 2 de janeiro. Confesso que senti um vazio me levando à perda da capacidade argumentativa. Hora de deixá-la de lado e de desejar a todos um feliz Ano Novo.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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