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São Paulo, terça-feira, 30 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O véu religioso

LUIZA NAGIB ELUF

A imprensa brasileira, principalmente esta Folha, vem noticiando o intenso debate que se instalou na França a respeito do uso do véu muçulmano por alunas das escolas públicas daquele país. De acordo com uma decisão da Justiça em 1989, véus e outros símbolos religiosos são permitidos nas escolas do Estado, desde que não sejam "invasivos". Em razão da ampla interpretação que a palavra "invasivo" permite, vários conflitos ocorreram entre pais de alunas e diretores de escolas, havendo notícias de algumas expulsões em virtude da insistência no uso do véu.
A discussão a respeito dos limites das determinações religiosas é de interesse geral e deve ser acompanhada pelos demais países laicos em todo o mundo, dentre os quais o Brasil. Trata-se de uma polêmica que, mais cedo ou mais tarde, pode ocorrer entre nós.
De acordo com dados estimados, existem na França 5 milhões de muçulmanos, a maior comunidade islâmica da Europa. No entanto, além da França, outros países do velho continente, como Alemanha, Espanha, Portugal e Inglaterra, possuem significativa presença muçulmana, decorrente de imigrações. Essas populações resistem tenazmente a assimilar os valores ocidentais, isolando-se em suas comunidades. Não falta quem atribua aos europeus a incapacidade de acolher, sem preconceito, os imigrantes, mas a intolerância maior parece não ser dos países hospedeiros.
Escudadas em princípios religiosos, as comunidades muçulmanas impõem às mulheres regras extremamente opressivas. Impedem-nas de mostrar qualquer parte do corpo, inclusive o cabelo, por vezes chegando ao absurdo de obrigá-las a cobrir o rosto todo com o uso da burca, mesmo que com isso elas tenham dificuldades para enxergar, respirar ou falar. O tal "véu" não é peça ornamental, tampouco é estritamente religioso. É um "uniforme" feminino, que estigmatiza a mulher.
Por essa razão, a revista "Elle" francesa divulgou um apelo ao presidente Jacques Chirac, assinado por mais de 60 mulheres de destaque, para que apresentasse projeto de lei proibindo o uso de véu por meninas muçulmanas nas escolas, tendo em vista tratar-se de "um símbolo visível da submissão da mulher". As atrizes Isabelle Adjani e Isabelle Huppert e a designer de moda Sonia Rykiel, dentre outras, assinaram o manifesto.



Não se pode confundir convicção pessoal com opressão, opção religiosa com imposição de subalternidade
Uma pesquisa de opinião sobre o assunto foi divulgada recentemente, tendo apurado que 57% dos franceses apóiam a proibição do uso do véu em escolas e repartições públicas. Por outro lado, setores das igrejas Católica, Protestante e Ortodoxa opuseram-se à proibição, temendo restrições que possam, eventualmente, afetá-los também.
O Brasil, assim como a França, é um Estado em que todas as religiões são permitidas e respeitadas, sendo que o poder político não está vinculado a nenhuma delas. É o que nos assegura a Constituição de 1988. Nossa Carta Magna, em seu art. 5º, inciso VIII, estabelece que "ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política". O dispositivo, criado para evitar discriminações em razão de credo, deve ser aplicado, também, para evitar violações de direitos trazidas pelas próprias religiões aos seus seguidores.
Isso significa que não se pode confundir convicção pessoal com opressão, opção religiosa com imposição de subalternidade. Os usos e costumes de determinados grupos sociais foram utilizados, durante muito tempo, para justificar numerosas formas de privar as mulheres de seus direitos fundamentais. Hoje, essas distorções encontram-se desmascaradas internacionalmente. Tanto as alegações fundamentadas em princípios religiosos quanto as calcadas em hábitos culturais não podem ser admitidas quando se prestarem a restringir ou eliminar direitos.
A polêmica que se iniciou na França com relação ao uso do véu islâmico demonstra que chegou o momento de rever princípios e dogmas religiosos usados para tolher as liberdades democráticas de seus seguidores.O véu imposto às muçulmanas tem por objetivo impedir que as mulheres se manifestem livremente, como seres humanos. Além disso, significa que a sexualidade feminina é proibida e "pecaminosa". Diferentemente do que novelas de televisão andaram mostrando, não há glamour no uso do véu, mas opressão física e intelectual. Por essa razão, é importante desestimular o seu uso. Não se trata, como já se argumentou, de associar islamismo com terrorismo, que deve ser extirpado. O problema do véu está essencialmente ligado ao horror às manifestações do feminino.
No entanto talvez a melhor forma de diminuir a adesão ao véu não seja a proibição legal nem a expulsão da escola de meninas que entendam necessário adotar a vestimenta de seus ancestrais. A proibição de cobrir a cabeça e o corpo tornaria o lamentável véu um símbolo da resistência cultural e religiosa de uma população já segregada, em terra estrangeira. Surtiria, assim, o efeito oposto ao desejado.
Fortalecer as mulheres, criando para elas mecanismos de autodefesa e a possibilidade de outra opção de vida, pode ser a melhor saída para esse impasse.


Luiza Nagib Eluf, 48, é procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e autora de "A Paixão no Banco dos Réus", entre outros livros. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (governo Fernando Henrique Cardoso).


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