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São Paulo, terça-feira, 30 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Espetáculo do crescimento ou truque?

GUSTAVO KRAUSE

É voz corrente entre os analistas políticos que o PT tem um projeto de poder, porém há expressivos sintomas de que lhe falta um projeto de governo.
Criado de baixo para cima, o PT foi conquistando o poder, também, de baixo para cima: municípios, Estados e a Presidência da República. Descontada a bravata como forma de sensibilizar o eleitorado, o discurso do PT encarnava a opção evangélica de preferência pelos pobres (sem muita clareza quanto à multiplicação dos pães), um moralismo fundamentalista e uma condenação inapelável aos métodos arcaicos de praticar a "Realpolitik" no Brasil.
A verdade é que o PT foi chegando ao poder, mudando e ratificando a velha máxima, do tempo do Império, segundo a qual nada é mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder. A princípio, a mudança era pouco perceptível aos olhos do eleitorado nacional, porque diluída entre 5.000 municípios e 27 Estados. Na Presidência da República, a conversa é outra. Em Brasília, a casa do poder é de material transparente; bem ou mal, a nação inteira presta atenção ao que acontece; bem ou mal, a mídia se curva ao poder incontrastável de sua excelência os fatos.
O que se percebe é o seguinte: o governo não opera (à exceção do manejo da macroeconomia e da prática do pecado da gula fiscal); Lula carrega nas costas da biografia e da personalidade carismática -capital perecível, porém resistente- o peso da pífia gestão e das promessas irrealizadas, mantendo bons índices de aprovação, ainda que cadentes. Por enquanto o presidente é a âncora do governo.



O truque consiste em embebedar o trabalhador e suas famílias com um porre de crédito e consumo
De outra parte, o núcleo duro do governo, como se convencionou chamar quem manda no pedaço, executa projeto de poder com -diga-se de passagem- irrepreensível competência e surpreendente amnésia em relação a princípios que, outrora, pregara.
Comecemos pela arregimentação dos recursos políticos traduzidos pelo crescimento extraordinário da base parlamentar. Digamos que não é um feito inédito. Outros governos também o fizeram, mas o PT tem duas peculiaridades: preservou a "pureza" do partido, engordando as agremiações satélites, e não teve o menor constrangimento em lotear cargos em setores até então protegidos do tradicional toma-lá-dá-cá, permitindo que raposas tomassem conta de galinheiro.
No item arregimentação de recursos financeiros, engordou os cofres do partido com a tomada do aparelho de Estado pela militância (21.000 nomeações para cargos comissionados com o correspondente dízimo) e mantém uma articulação pragmática com interesses empresariais.
Em matéria de comunicação governamental e propaganda política, de modo a manipular a opinião pública, a estratégia do governo é avassaladora. Além de centralizar todos recursos do setor nas mãos de um ministro (o ministro da propaganda formal, ou "ministro da Verdade", Gushiken, já que o ministro informal entregou o boné), arma-se uma gigantesca operação de crédito, o pró-mídia, para socorrer as empresas de comunicação em dificuldades. Até aí nada demais, o risco é cair naquilo que, insuspeitamente, dr. Octávio Frias, publisher da Folha, afirmou à AOL em entrevista em 21/ 10: "Por que criar um sistema assistencial, preferencial para os jornais, para a mídia? O que interessa ao governo é a mídia de joelhos".
Todo mundo sabe, porém, que sem crescimento econômico, geração de empregos e aumento de renda qualquer governo está condenado à impopularidade e o projeto de poder fadado ao fracasso. É fundamental encenar o espetáculo do crescimento. Economia em alta é o mais eficiente dos cabos eleitorais.
Em vez do crescimento econômico sustentado, vem por aí o truque. O truque que pode ser um estelionato, como foi o Plano Cruzado nas eleições de 86.
A verdade é que o parangolé está bem ensaiado. O truque consiste em embebedar o trabalhador e suas famílias com um porre de crédito e consumo, seguido, mais adiante, pela ressaca do débito e pelo arrependimento tardio. A brisa refrescante da conjuntura externa pode ajudar a conversa fiada do crescimento sustentado.
Tem crédito para tudo e todos os gostos -para a felicidade geral da banca, que terá sua liquidez garantida pela tradicional adimplência dos pobres ou pela consignação na folha de salários.
Concretamente, sem aumento de empregos, sem crescimento real da renda do trabalhador, sem níveis suficientes de poupança privada e com a sucção voraz de recursos da sociedade via imposto, não há como promover o crescimento econômico em bases sustentáveis (a MP 135 consuma a rapinagem fiscal, sob o crime de perjuro das autoridades a jurarem, cinicamente, que não haverá aumento da carga tributária, quando se sabe que a elevação dos impostos sobre faturamento das empresas -PIS, CSLL e Cofins- acrescerão mais de R$ 16 bilhões à arrecadação da União).
Nesse sentido, é importante não perder de vista o que diz Paul Krugman: "Estimular a economia no curto prazo é supostamente fácil, desde que você não tenha de se preocupar muito com o volume de dívidas que contrai no processo". Pena que a grande maioria dos chefes de família -os endividados do processo- não tenha acesso à advertência do professor da Universidade de Princenton e seja vítima da poção mágica.


Gustavo Krause, 57, é advogado. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco) e do Meio Ambiente (governo Fernando Henrique).


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