São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 2006

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IGOR GIELOW

Tintim em Bagdá

EM TODA a Europa, 2007 será marcado por eventos comemorativos ao centenário de nascimento do cartunista belga Hergé, morto em 1983. Pai de Tintim, o jovem repórter que cruza os continentes atrás de aventuras, Hergé nem sempre foi celebrado nos meios intelectuais, a despeito do sucesso de público.
Sua obra foi alvo de críticas, geralmente mas não só à esquerda, devido ao tom indisfarçadamente eurocêntrico e colonialista de algumas das tramas em que Tintim se envolvia, em especial no início da carreira -há notáveis exceções, como "O Lótus Azul". Havia sempre uma lição "européia" no paternalismo do repórter. Abundavam estereótipos: árabes traficantes de negros, que por sua vez eram muçulmanos ignorantes em sua fé, banqueiros judeus.
O emprego de Hergé num jornal colaboracionista nazista na Bélgica ocupada lhe rendeu fama de fascista e anti-semita. Um certo exagero, que ignora caricaturas do fascismo em obras como "O Cetro de Ottokar". No geral, havia mais ironia que preconceito nas descrições.
Tintim nunca fez grande sucesso nos Estados Unidos. A idéia do civilizador branco não é cara à América, e isso está trazendo grandes conflitos neste começo de século, no qual apenas um império realmente conta. Não é incidental que parta de europeus, como o historiador britânico Niall Ferguson, a demanda para que Washington abrace um imperialismo à la século 19.
Em "O Grande Bazar Ferroviário" (1975), o americano Paul Theroux já ressaltava como seus compatriotas não se interessavam em preservar a estrutura colonial francesa no Vietnã, e que chamá-los de imperialistas era "baboseira inexata". Já em "The Places in Between" (2004, não publicado no Brasil), outro magnífico relato de viagem, o diplomata britânico Rory Stewart demonstra como o Ocidente não tem idéia do que está fazendo no Afeganistão.
O caso iraquiano é exemplar. Saddam Hussein será (ou já foi) enforcado em Bagdá de forma secreta, como que envergonhada -ora, o enforcamento surgiu na vizinha Pérsia para dar exemplos públicos.
Não é o caso de defender o ex-ditador, mas cabe perguntar: qual será o efeito de sua morte? O Iraque é uma invenção do imperialismo à antiga inglês, e o neocolonialismo descompromissado dos EUA não sabe como se livrar do problema. E o está ampliando.
Neste ambiente em que o império reluta, é significativo que a coadjuvante Europa festeje Hergé e absolva seu surtos colonialistas. A defesa de que era um homem de seu tempo lhe basta. Talvez um dia, dependendo do que ocorrer no Iraque, também baste a Saddam, apesar de ele ser um criminoso de verdade.


IGOR GIELOW é secretário de Redação da Sucursal de Brasília.

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