São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Há mais ficção que realidade nos 'reality shows'?

SIM

Muito "show" e pouca "reality"

GABRIEL PRIOLLI

Reality show é um tipo muito bem-sucedido de show televisivo, indiscutivelmente, mas tem pouco a ver com reality. Desde que o gênero aportou no Brasil, com a estréia do primeiro "No Limite", em julho de 2000, ele segue saudável e forte e não pára de proliferar, gerando programas bastante assistidos e uma polêmica que não dá sinais de terminar. O mais vistoso desses rebentos, o "Big Brother Brasil", surgiu há apenas dois anos, em janeiro de 2002, e já está na quarta edição, sustentando o elevado Ibope noturno da TV Globo. De quebra, alavanca as adesões de internautas ao portal Globo.com e ajuda operadoras de TV por assinatura a vender pay-per-views. Mas isso resume quase tudo de realidade que envolve o programa. O mais, é puro jogo e ficção.
Ao contrário do que possa parecer, o "Big Brother" não é um parque zoológico para humanos, onde machos, fêmeas e variantes da espécie são confinados numa jaula para que o público possa observar e divertir-se com o seu comportamento sem jogar amendoins, como recomenda a sensatez ambiental. O confinamento de um grupo de pessoas numa casa e a invasão radical de sua privacidade, com câmeras monitorando cada canto do ambiente, são, sim, a espinha dorsal do programa. Mas não há no comportamento dos confinados a mesma espontaneidade dos chimpanzés ou a indiferença dos hipopótamos nos zoológicos reais.
Todos estão ali como participantes de um jogo que é permanentemente conduzido de fora por uma vasta equipe de diretores, roteiristas e editores. Ninguém é "ele mesmo" no programa, mas apenas "um certo ele", totalmente circunstanciado pelo isolamento, o ócio, a convivência compulsória com estranhos e a submissão a um amplo conjunto de regras e rotinas que permitem ao espetáculo funcionar. Trata-se, portanto, muito mais de teatro de marionetes do que de parque natural.
A ficcionalidade, ressalte-se, é o elemento articulador do jogo e o que permite ao programa avançar, com interesse progressivo, ao longo de 12 semanas. A construção dos personagens começa na seleção dos participantes, e o segredo está na mistura de atributos biográficos e físicos, o máximo possível heterogêneos e exóticos: o lutador negro carioca e a modelo argentina loura, o jardineiro de cemitério paulista e a enfermeira paraibana, a patricinha brasiliense e o publicitário mineiro, o dono de bar paranaense e a frentista paulista, um caldeirão de etnias, tipos físicos, sotaques regionais e experiências. São as características pessoais e a vida pregressa, portanto, que definem os personagens -como sucede em qualquer telenovela.
O objetivo do jogo está em conquistar uma bolada em dinheiro por meio da sedução do telespectador, que julga -votando- quem sai de campo ou segue até o final. A melhor estratégia recomenda ocultar a óbvia cupidez do prêmio e mostrar-se simpático, divertido, bonito, gostoso, inteligente, culto, ético, solidário, ou tudo aquilo que o senso comum julga positivo e desejável. Mas isso não é possível obter apenas por bom comportamento diante das câmeras. A direção do programa, sublinhando traços específicos dos participantes e enfatizando conflitos, romances, intrigas e alianças, induz obviamente a percepção do público e determina a fortuna de uns e a desgraça de outros. Tal como ocorre em qualquer telenovela.
A trama se desenrola pautada por um calendário estrito. Nas quintas-feiras, escolhe-se o "líder", que tem o poder de indicar um dos condenados ao "paredão" de eliminação, e escolhe-se também o "anjo", com o poder inverso de salvar almas do inferno. Nos domingos, o líder faz a sua escolha e o restante do grupo vota no outro eliminável. E, até a noite da terça-feira, o telespectador vota em quem deve sair. Nos outros dias, há provas para ganhar comida, liderança e imunidade e há festas para relaxar as tensões -quando ocorrem os esperados encontros de casais, pelos quais clama o incansável voyeurismo da patuléia. É no meio de todas essas atividades que os jogadores "fazem o que querem", como se fosse possível fazer algo muito diverso do que é pautado.
Esse reality show é um pouco mais reality, talvez, para quem o assiste intermitentemente no pay-per-view ou na internet, com menos indução da direção do programa -uma minoria irrelevante. Para quem o acompanha pela TV aberta (e pela imprensa, que também não pára de "transmiti-lo"), é apenas uma novela de poucas locações, personagens monótonos e trama fraca. A "nave Big Brother Brasil" leva anônimos do zero à fama, e a ficção televisiva, do nada a lugar nenhum.


Gabriel Priolli, 50, jornalista e diretor de televisão, preside a Associação Brasileira de Televisão Universitária e dirige a TV-PUC de São Paulo.


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