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TENDÊNCIAS/DEBATES
Há mais ficção que realidade nos 'reality shows'?
SIM
Muito "show" e pouca "reality"
GABRIEL PRIOLLI
Reality show é um tipo muito
bem-sucedido de show televisivo,
indiscutivelmente, mas tem pouco a ver
com reality. Desde que o gênero aportou no Brasil, com a estréia do primeiro
"No Limite", em julho de 2000, ele segue
saudável e forte e não pára de proliferar,
gerando programas bastante assistidos
e uma polêmica que não dá sinais de
terminar. O mais vistoso desses rebentos, o "Big Brother Brasil", surgiu há
apenas dois anos, em janeiro de 2002, e
já está na quarta edição, sustentando o
elevado Ibope noturno da TV Globo. De
quebra, alavanca as adesões de internautas ao portal Globo.com e ajuda
operadoras de TV por assinatura a vender pay-per-views. Mas isso resume
quase tudo de realidade que envolve o
programa. O mais, é puro jogo e ficção.
Ao contrário do que possa parecer, o
"Big Brother" não é um parque zoológico para humanos, onde machos, fêmeas
e variantes da espécie são confinados
numa jaula para que o público possa
observar e divertir-se com o seu comportamento sem jogar amendoins, como recomenda a sensatez ambiental. O confinamento de um grupo de pessoas
numa casa e a invasão radical de sua privacidade, com câmeras monitorando
cada canto do ambiente, são, sim, a espinha dorsal do programa. Mas não há
no comportamento dos confinados a
mesma espontaneidade dos chimpanzés ou a indiferença dos hipopótamos
nos zoológicos reais.
Todos estão ali como participantes de
um jogo que é permanentemente conduzido de fora por uma vasta equipe de
diretores, roteiristas e editores. Ninguém é "ele mesmo" no programa, mas
apenas "um certo ele", totalmente circunstanciado pelo isolamento, o ócio, a
convivência compulsória com estranhos e a submissão a um amplo conjunto de regras e rotinas que permitem ao espetáculo funcionar. Trata-se, portanto, muito mais de teatro de marionetes
do que de parque natural.
A ficcionalidade, ressalte-se, é o elemento articulador do jogo e o que permite ao programa avançar, com interesse progressivo, ao longo de 12 semanas.
A construção dos personagens começa
na seleção dos participantes, e o segredo
está na mistura de atributos biográficos
e físicos, o máximo possível heterogêneos e exóticos: o lutador negro carioca
e a modelo argentina loura, o jardineiro
de cemitério paulista e a enfermeira paraibana, a patricinha brasiliense e o publicitário mineiro, o dono de bar paranaense e a frentista paulista, um caldeirão de etnias, tipos físicos, sotaques regionais e experiências. São as características pessoais e a vida pregressa, portanto, que definem os personagens -como sucede em qualquer telenovela.
O objetivo do jogo está em conquistar
uma bolada em dinheiro por meio da
sedução do telespectador, que julga
-votando- quem sai de campo ou segue até o final. A melhor estratégia recomenda ocultar a óbvia cupidez do prêmio e mostrar-se simpático, divertido,
bonito, gostoso, inteligente, culto, ético,
solidário, ou tudo aquilo que o senso
comum julga positivo e desejável. Mas
isso não é possível obter apenas por
bom comportamento diante das câmeras. A direção do programa, sublinhando traços específicos dos participantes e enfatizando conflitos, romances, intrigas e alianças, induz obviamente a percepção do público e determina a fortuna de uns e a desgraça de outros. Tal como ocorre em qualquer telenovela.
A trama se desenrola pautada por um
calendário estrito. Nas quintas-feiras,
escolhe-se o "líder", que tem o poder de
indicar um dos condenados ao "paredão" de eliminação, e escolhe-se também o "anjo", com o poder inverso de salvar almas do inferno. Nos domingos,
o líder faz a sua escolha e o restante do
grupo vota no outro eliminável. E, até a
noite da terça-feira, o telespectador vota
em quem deve sair. Nos outros dias, há
provas para ganhar comida, liderança e
imunidade e há festas para relaxar as
tensões -quando ocorrem os esperados encontros de casais, pelos quais clama o incansável voyeurismo da patuléia. É no meio de todas essas atividades
que os jogadores "fazem o que querem", como se fosse possível fazer algo
muito diverso do que é pautado.
Esse reality show é um pouco mais
reality, talvez, para quem o assiste intermitentemente no pay-per-view ou na
internet, com menos indução da direção do programa -uma minoria irrelevante. Para quem o acompanha pela TV aberta (e pela imprensa, que também
não pára de "transmiti-lo"), é apenas
uma novela de poucas locações, personagens monótonos e trama fraca. A
"nave Big Brother Brasil" leva anônimos do zero à fama, e a ficção televisiva,
do nada a lugar nenhum.
Gabriel Priolli, 50, jornalista e diretor de televisão, preside a Associação Brasileira de Televisão
Universitária e dirige a TV-PUC de São Paulo.
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