São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Há mais ficção que realidade nos 'reality shows'?

NÃO

O sadismo é o real

TALES AB'SÁBER

Um homem encontra outro no meio do caminho e lhe pergunta: "Você esteve naquela grande festa?". A festa acontecera já havia algum tempo e o homem questionado não estivera lá. Porém um seu amigo havia ido à festa e lhe contara tudo. O que aconteceu naquele banquete memorável foi o seguinte: os homens livres que se encontraram para comemorar o sucesso de um deles no teatro, após algum tempo de conversa fiada e uma boa bebedeira, resolveram discorrer sobre o amor, fazendo dele o grande tema daquele dia. Então eles criaram um concurso: cada um faria um discurso dizendo tudo que sabia e pensava sobre o amor e a melhor apresentação, na opinião democrática de todos, seria a vencedora.
Georg Lukács já apontou que a permanência viva do "Banquete", de Platão, não se deve apenas ao valor intelectual e histórico da sua matéria elevada, mas à riqueza da caracterização realista que dava grandeza de espírito verdadeira e concreta a cada um dos intelectuais e cidadãos atenienses retratados, numa experiência de conteúdos muito verdadeiros pela carne viva da forma de cada um. Um encontro de homens livres formados na paidéia grega produzia tamanha riqueza de espírito e deleite humano que, desde então, todos os que por acaso não estiveram lá, como nós, queriam estar, e a história foi contada, por seus muitos narradores e por seu grande narrador Platão, de modo a nos incluir transferencialmente em seu mundo. É uma história de amor e inteligência, e nós bem que gostaríamos de ter estado ao lado de Sócrates naquela festa. A própria celebração erótica e sensual daqueles homens em seu banquete fazia parte do objeto celebrado, em uma construção em abismo, que nos convidava a pensar e a apreender a própria substância do amor acontecida entre os homens que o festejavam.
Passados 2.400 anos, em nosso país periférico, a reunião de "homens livres" em uma imensa festa que dura meses é acompanhada por todos nós, em tempo real, e com uma participação interativa quase universal. Estamos diante, ou dentro, do "rebu" do "Big Brother Brasil", e a fofoca que acontece na casa é a mesma que acontece fora dela. O tempo e o espaço do programa, abertos ao real que se atualiza constantemente em nossa consciência, aponta para uma outra ordem de narrativa e experiência diante do discurso, em que os termos clássicos do acontecimento, do narrador mediador e do remetente, terceiro excluído, que é aquele para quem se representa uma história, estão todos confundidos e agenciados simultaneamente. Estamos todos convidados para o banquete, que tem regras bastante diferentes daquele verdadeiro excedente de erotismo e pensamento que marcou a reunião antiga e sua narrativa.
No encontro atual, ao qual, se vemos televisão, não podemos escapar, é possível reconhecermos a gradual mesquinharia que toma conta dos espíritos, pobreza já programada na origem apenas econômica do jogo. Pessoas em geral com baixa ocupação e sem destino na vida da cultura aguardam a oportunidade de ascender socialmente pela reprodução teleológica de sua imagem na TV. No tempo da crise do emprego e de todos os objetos do espírito, com exceção das mercadorias, da inflação dos egos vazios pela cultura do espetáculo e do mercado, alcançar a ascensão social através da industria do fetichismo de si mesmo é uma das poucas alternativas.
Por outro lado, se transfere às massas desoladas e identificadas com aqueles pobres diabos aprisionados, que tentam vender qualquer coisa de si mesmos, o direito de julgar a vida, o espírito e o destino daquelas pessoas. Exatamente como preconiza o oferecimento dos seres ao mercado, sem nenhum anteparo ou direito real. Por algumas semanas todos nos tornamos patrões daqueles destinos e decidimos quem será demitido ou quanto os prisioneiros devem comer, e assistimos contentes a dolorosos processos de regressão e sofrimento humano, programados pela televisão para o nosso próprio deleite.
No banquete sádico do "Big Brother" há muito mais realidade psíquica do que gostaríamos de ver. Seu curto-circuito espelhado em que pessoas comuns detêm o destino de outros, semelhantes a elas mesmas, com o atravessamento e agenciamento constante das câmeras que passam a se misturar à vida, único espaço em que ela pode se dar, como se fosse mesmo um espetáculo ou mercadoria pronta a encontrar o seu potencial de fetiche, aponta para o curto-circuito do espaço de compra e venda dos corpos e dos espíritos com todo o espaço de representação ou simbolização -narrativa em quiasma- que tende ao real de nosso tempo. Os efeitos das decisões estatísticas das massas sobre os brothers aprisionados na caixa de Skinner da tevê são reais sobre o psiquismo e a vida daquelas pessoas. As ansiedades radicais, a fome, a paranóia que elas vivem, com as quais brincamos, têm correspondência efetiva na própria ordem da vida social.
"Big Brother Brasil" é simplesmente a ordem do real entre nós, cujo espaço erótico não é simbólico ou reflexivo, mas ato, de controle e de gozo.


Tales Ab'Sáber, 38, psicanalista, é professor do Programa de Psicopatologia do Núcleo de Políticas e Estratégia da USP e autor de "A Imagem Fria - Cinema e Crise do Sujeito no Brasil dos Anos 80" (Ateliê Editorial, 2003).


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