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TENDÊNCIAS/DEBATES
Há mais ficção que realidade nos 'reality shows'?
NÃO
O sadismo é o real
TALES AB'SÁBER
Um homem encontra outro no
meio do caminho e lhe pergunta:
"Você esteve naquela grande festa?". A
festa acontecera já havia algum tempo e
o homem questionado não estivera lá.
Porém um seu amigo havia ido à festa e
lhe contara tudo. O que aconteceu naquele banquete memorável foi o seguinte: os homens livres que se encontraram
para comemorar o sucesso de um deles
no teatro, após algum tempo de conversa fiada e uma boa bebedeira, resolveram discorrer sobre o amor, fazendo
dele o grande tema daquele dia. Então
eles criaram um concurso: cada um faria um discurso dizendo tudo que sabia
e pensava sobre o amor e a melhor apresentação, na opinião democrática de todos, seria a vencedora.
Georg Lukács já apontou que a permanência viva do "Banquete", de Platão, não se deve apenas ao valor intelectual e histórico da sua matéria elevada,
mas à riqueza da caracterização realista
que dava grandeza de espírito verdadeira e concreta a cada um dos intelectuais
e cidadãos atenienses retratados, numa
experiência de conteúdos muito verdadeiros pela carne viva da forma de cada
um. Um encontro de homens livres formados na paidéia grega produzia tamanha riqueza de espírito e deleite humano que, desde então, todos os que por
acaso não estiveram lá, como nós, queriam estar, e a história foi contada, por
seus muitos narradores e por seu grande narrador Platão, de modo a nos incluir transferencialmente em seu mundo. É uma história de amor e inteligência, e nós bem que gostaríamos de ter
estado ao lado de Sócrates naquela festa.
A própria celebração erótica e sensual
daqueles homens em seu banquete fazia
parte do objeto celebrado, em uma
construção em abismo, que nos convidava a pensar e a apreender a própria
substância do amor acontecida entre os
homens que o festejavam.
Passados 2.400 anos, em nosso país
periférico, a reunião de "homens livres"
em uma imensa festa que dura meses é
acompanhada por todos nós, em tempo
real, e com uma participação interativa
quase universal. Estamos diante, ou
dentro, do "rebu" do "Big Brother Brasil", e a fofoca que acontece na casa é a
mesma que acontece fora dela. O tempo
e o espaço do programa, abertos ao real
que se atualiza constantemente em nossa consciência, aponta para uma outra
ordem de narrativa e experiência diante
do discurso, em que os termos clássicos
do acontecimento, do narrador mediador e do remetente, terceiro excluído,
que é aquele para quem se representa
uma história, estão todos confundidos e
agenciados simultaneamente. Estamos
todos convidados para o banquete, que
tem regras bastante diferentes daquele
verdadeiro excedente de erotismo e
pensamento que marcou a reunião antiga e sua narrativa.
No encontro atual, ao qual, se vemos
televisão, não podemos escapar, é possível reconhecermos a gradual mesquinharia que toma conta dos espíritos,
pobreza já programada na origem apenas econômica do jogo. Pessoas em geral com baixa ocupação e sem destino
na vida da cultura aguardam a oportunidade de ascender socialmente pela reprodução teleológica de sua imagem na
TV. No tempo da crise do emprego e de
todos os objetos do espírito, com exceção das mercadorias, da inflação dos
egos vazios pela cultura do espetáculo e
do mercado, alcançar a ascensão social
através da industria do fetichismo de si
mesmo é uma das poucas alternativas.
Por outro lado, se transfere às massas
desoladas e identificadas com aqueles
pobres diabos aprisionados, que tentam
vender qualquer coisa de si mesmos, o
direito de julgar a vida, o espírito e o
destino daquelas pessoas. Exatamente
como preconiza o oferecimento dos seres ao mercado, sem nenhum anteparo
ou direito real. Por algumas semanas todos nos tornamos patrões daqueles destinos e decidimos quem será demitido
ou quanto os prisioneiros devem comer, e assistimos contentes a dolorosos
processos de regressão e sofrimento humano, programados pela televisão para
o nosso próprio deleite.
No banquete sádico do "Big Brother"
há muito mais realidade psíquica do
que gostaríamos de ver. Seu curto-circuito espelhado em que pessoas comuns detêm o destino de outros, semelhantes a elas mesmas, com o atravessamento e agenciamento constante das
câmeras que passam a se misturar à vida, único espaço em que ela pode se dar,
como se fosse mesmo um espetáculo ou
mercadoria pronta a encontrar o seu
potencial de fetiche, aponta para o curto-circuito do espaço de compra e venda dos corpos e dos espíritos com todo o
espaço de representação ou simbolização -narrativa em quiasma- que tende ao real de nosso tempo. Os efeitos
das decisões estatísticas das massas sobre os brothers aprisionados na caixa de
Skinner da tevê são reais sobre o psiquismo e a vida daquelas pessoas. As
ansiedades radicais, a fome, a paranóia
que elas vivem, com as quais brincamos, têm correspondência efetiva na
própria ordem da vida social.
"Big Brother Brasil" é simplesmente a
ordem do real entre nós, cujo espaço
erótico não é simbólico ou reflexivo,
mas ato, de controle e de gozo.
Tales Ab'Sáber, 38, psicanalista, é professor do
Programa de Psicopatologia do Núcleo de Políticas e Estratégia da USP e autor de "A Imagem
Fria - Cinema e Crise do Sujeito no Brasil dos
Anos 80" (Ateliê Editorial, 2003).
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