São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

No fio da navalha

SIMÃO JATENE


Falar em reforma tributária como questão resolvida é desconhecer ou pretender esconder a complexidade do problema


O ideal federalista aparece inicialmente na Europa, nas obras de Kant e Proudhon. Ligado ao conceito de organização em contraponto à anarquia, tida como geradora de conflitos e ameaça à estabilidade, pontua, como pressuposto à construção da paz, manifestações liberais, democráticas e socialistas, que fazem a efervescência do século 19.
Por aqui, a pluralidade espacial de centros de poder disciplinados pela Constituição, que tem a primazia sobre todos e em qualquer circunstância, parece ter surgido como caminho, talvez único, para conformar uma jovem nação que se pretendia continental.
Todavia, se o federalismo no Brasil ajuda a tecer fantástica unidade do diverso num cenário de províncias autônomas, também é verdade que, marcado por histórica tendência centralizadora, pouco tem ajudado na construção de um país menos desigual, que use a sua diversidade para reduzir suas desigualdades.
Oportuno, esse debate coincide com a generalizada queixa dos prefeitos que encerraram mandatos e com a apreensão dos que assumiram, diante do desafio de compatibilizar atribuições e meios, tudo emoldurado por recorrente alerta dos governadores para a iminente falência da federação brasileira.
Não se pode resumir a questão federativa ao viés tributário ou fiscal. É inegável que a arrecadação e a distribuição dos recursos fiscais e parafiscais é um dos pilares de qualquer arranjo federativo. Com carga tributária de mais de 35% do PIB (de cada R$ 10,00 que o país produz, quase R$ 4,00 vão para os cofres públicos), o Brasil tem a tributação concentrada nas mãos da União, que arrecada algo em torno de 70% dos tributos, enquanto os Estados recolhem 26%, e os municípios, 4%. Esse perfil se mantém a despeito das transferências constitucionais, que, em tese, se prestariam à descentralização. Mesmo após o "jogo redistributivo", a União fica com 60%, os Estados, com 24%, e os municípios, com 16% da receita líquida, embora estes últimos sejam os responsáveis pelos serviços essenciais à população -o que é mais grave.
Diante da irracionalidade do aumento da carga tributária, impõe-se a Estados e municípios a eficiência na gestão fiscal e o crescimento econômico como únicos caminhos para a expansão de receitas. Seria natural e até desejável e suficiente, não fosse o atraso a ser superado, principalmente, na educação, saúde e segurança pública.
Carga tributária elevada e concentrada, enorme dívida social, profunda desigualdade espacial e ausência de uma política de desenvolvimento regional têm empurrado as unidades federativas a uma competição, cuja "guerra fiscal" é a face mais evidente, e a perda geral da eficiência arrecadadora, a feição mais contraditória.
Desse modo, falar em reforma tributária como questão resolvida ou dependente apenas da boa vontade dos estados é desconhecer ou pretender esconder a complexidade do problema, contribuindo para lançar por terra laços que ainda cimentam a Federação.
Urge admitir que a reforma aprovada pouco representou para a revisão do modelo fiscal concentrador -que fortalece contribuições que a União arrecada sem compartilhar, como a CPMF e a Cofins, e enfraquece tributos partilhados, como o Imposto de Renda e o IPI.
A reforma necessária parece fadada ao esquecimento, deixando sem resposta questões graves, como redução e redistribuição da carga fiscal e a compensação pela desoneração das exportações aos Estados superavitários, como bem exemplifica o caso do Pará.
Fechando o ano com exportações na casa dos US$ 3,8 bilhões e importações inferiores a US$ 300 milhões, o Pará, que historicamente contribui com mais de 10% do saldo da balança comercial do país, é punido três vezes. Proibido de tributar o que exporta, não tem importação em escala para taxar e torna-se ainda devedor do ICMS recolhido em outros Estados por empresas exportadoras. "Além da queda, o coice."
Em defesa de um senso de brasilidade, é prudente registrar que em raros momentos da história republicana o pacto federativo esteve, como agora, no fio da navalha: sensação de que a União, Estados e municípios são estranhos entes condenados a um paralelismo que os torna distantes e irreconciliáveis.
Nessa guerra nada silenciosa, os contendores travam intermináveis e infrutíferos diálogos nos quais a argumentação técnica, mesmo a irrefutável, não raro é interpretada como contramedida partidária desprovida de razão e sentido. Perde a nação.
Sem "catastrofismo", é razoável imaginar que o Brasil se vê em um impasse que, se não é fruto do agora, tampouco pode ser creditado aos Estados e municípios. Resta-lhe decidir, já, se continua na perigosa trilha centralizadora, que transforma até repasses constitucionais em gestos de bondade, ou, com humildade e coragem, busca a Federação cooperativa. Se optar pela parceria que o ideal federalista secularmente difunde, ganhará a nação.
Simão Jatene, 55, mestre em economia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é governador do Pará pelo PSDB. Foi secretário do Planejamento (1995-98) e secretário especial de Produção (1999-2002).

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