São Paulo, terça, 31 de março de 1998

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Diadema e Cidade de Deus, filme inacabado


Esperamos não ser necessário filmar a truculência policial mais uma vez para que o sistema seja reformado
JAMES CAVALLARO

Noite de 31 de março de 1997. Imagens de um vídeo amador mostram policiais militares de São Paulo praticando extorsão, espancando, torturando e matando na favela Naval, em Diadema, liderados pelo PM Otávio Lourenço Gambra, conhecido como Rambo.
O Brasil fica chocado, perplexo e indignado. As cenas grotescas provocam forte reação contra a truculência policial e levam a um consenso nacional de que é preciso repensar e reformular o modelo de segurança pública no país.
Há tempos, ONGs brasileiras e internacionais chamam a atenção da sociedade para o perigo representado por uma polícia agressiva e pouco profissional. No entanto, os inúmeros casos de homicídios ou tortura denunciados quase sempre receberam a mesma resposta das autoridades competentes: eram todos tiroteios entre policiais e bandidos ou distorções produzidas por quem "defendia bandidos".
As imagens de Diadema permitiram mostrar que a questão é mais profunda do que o "bate-boca" entre a polícia e as ONGs. Elas deixaram a sociedade estarrecida exatamente porque mostraram que não era bandido quem apanhava, mas sim quem batia -a polícia.
Uma semana depois, em 7 de abril, cenas semelhantes são gravadas em Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Como em Diadema, policiais militares fluminenses espancam, prendem, praticam extorsão. O clamor faz-se ainda maior. Autoridades das mais diversas áreas repudiam a violência policial.
No meio da discussão, o Congresso aprovou em tempo recorde a lei 9.455/97, que tipifica o crime de tortura, cumprindo assim a obrigação internacional assumida pela ratificação da Convenção contra a Tortura das Nações Unidas, em setembro de 1989.
Mesmo levantando controvérsias, o debate público levou a uma série de sugestões para melhorar a polícia.
Entre os pontos de maior consenso, destacam-se o fim da competência da Justiça Militar para crimes contra civis, a profissionalização da polícia por meio de treinamento e reciclagem, melhores salários, o controle externo da instituição pela criação de ouvidorias ou órgãos semelhantes, a independência das entidades de perícia, a federalização de crimes contra os direitos humanos e a criação de um programa federal de proteção às testemunhas.
Todas essas recomendações -e algumas outras- constam do nosso relatório "Brutalidade Policial Urbana no Brasil", lançado em abril do ano passado. No entanto, as únicas que tiveram um grau razoável de realização foram as relacionadas com o aumento salarial dos policiais e a criação de programas de proteção às testemunhas.
Como ficou evidente, os aumentos salariais, em vários Estados, resultaram das greves de policiais, não da vontade independente das autoridades.
Os programas de proteção às testemunhas estão sendo implementados em alguns Estados devido principalmente aos esforços de ONGs, seguindo o modelo do Provita, de Pernambuco, no qual o governo fornece assistência financeira e a sociedade civil viabiliza a proteção das testemunhas.
Em nível federal, o programa de proteção às testemunhas foi recentemente aprovado pelo Senado, mas ainda terá de passar pela Câmara.
Essas medidas, porém, foram poucas, e a violência policial e a impunidade têm persistido. No Rio de Janeiro, a Secretaria da Segurança Pública continua premiando policiais envolvidos nos chamados atos de bravura com gratificações e promoções.
A Human Rights Watch divulgou, em abril de 1997, um levantamento mostrando que, na maioria das promoções, os policiais envolvidos tinham matado alguém. No total, 72 pessoas foram mortas em 92 intervenções policiais premiadas.
Não comprovamos sozinhos a relação entre essas políticas e os homicídios praticados por policiais. Pesquisa detalhada do Iser (Instituto de Estudos Religiosos), comissionada pela Assembléia Legislativa, concluiu o mesmo no ano passado. Segundo o Iser, depois da implementação das premiações, a taxa de homicídios de civis por policiais pulou de 16 para 32 por mês.
Em São Paulo, depois de dois anos de queda no número de civis mortos por policiais, graças ao trabalho da Ouvidoria da Polícia e do programa Proar, que retira policiais violentos da rua, as taxas de homicídio de civis por PMs voltaram a subir nos primeiros meses de 1998, sob o comando do coronel Carlos Alberto de Camargo, novo chefe da Polícia Militar paulista.
Atualmente, os processos dos dez homens envolvidos nos crimes da favela Naval estão parados tanto na Justiça Militar como na comum. Rambo e seus companheiros aguardam julgamento afastados das ruas, cumprindo pena no presídio Romão Gomes.
No Rio, cinco dos policiais envolvidos nos abusos em Cidade de Deus foram condenados a um ano e dez meses de prisão, com direito a sursis, o que significa ficar fora da cadeia. Um dos seis policiais foi absolvido. O major Álvaro Rodrigues Garcia, que comandava a operação, nem sequer foi expulso da Polícia Militar.
O ano de 1997 foi marcado por um discurso consciente sobre a problemática da segurança pública no país. Um ano depois das chocantes cenas de Diadema -que provocaram esse discurso-, resta a sensação de que ele se dissolveu no ar, enquanto os abusos policiais e a impunidade continuam.
Neste ano, esperamos não ser necessário que a truculência policial seja filmada mais uma vez para que as autoridades cumpram o compromisso assumido de reformar o sistema de segurança pública.

James Louis Cavallaro, 35, advogado formado pelas universidades Harvard e de Berkeley (EUA), é diretor no Brasil da Human Rights Watch/Americas.



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