São Paulo, terça-feira, 31 de dezembro de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A ética após a rendição

Suponhamos que o novo governo tenha adiado a reconstrução do modelo econômico; que se sinta constrangido a essa opção pelo excesso de dívidas e pela falta de dólares, fatos que deveriam, ao contrário, tornar mais urgente a demarcação de outro rumo; que, movido por confusão de idéias e por sentimentos de inferioridade pessoal e nacional, haja caído sob a hegemonia do ideário dominante; que se proponha, portanto, a persistir no que se tem feito no Brasil, que é combinar a busca da confiança financeira com políticas de compensação social e com socorros concedidos às grandes empresas, e que tenha, enfim, adotado as lições dos manuais que os países ricos escrevem para os pobres. Diante de tanta rendição antecipada, pode haver mudança em direção ao desenvolvimento democratizante?
Pode, desde que o governo radicalize na moralidade. Moralizar a política significa romper os elos entre poder público e privilégio privado. Um exemplo mostra o que isso representa. Imagine que um grande empresário, chegado ao presidente, tenha lhe dado dinheiro na campanha. Agora, apresenta a conta. Quer continuar obra de vulto, iniciada por estrangeiros. Cobre-se com a bandeira do nacionalismo econômico. Sua empresa, porém, não está sequer qualificada no ramo. O empresário tenta comprar prerrogativa e vender proximidade. Se o presidente aceitar, começa a destruir seu governo. Se rejeitar, começa a construí-lo.
O divórcio entre poder público e privilégio privado significa culto de transparência, guerra contra o tráfico de influência, substituição de favores casuísticos por regras impessoais e por critérios de desempenho e apoio aos emergentes como condição de ajuda aos estabelecidos. Nada de telefonemas do empresário suplicante ao governante cúmplice para perguntar se este gosta do que aquele pretende fazer. Distância e dignidade. Desprivatização do Estado e privatização do setor privado. Essa ética é gêmea da eficiência e mãe da justiça. É o mesmo espírito que insiste em colocar meritocracia no lugar de nepotismo, cooperação no lugar de hierarquia e concorrência no lugar de conluio.
Duas iniciativas são decisivas para romper o vínculo entre poder público e privilégio privado. A primeira é o financiamento público das campanhas eleitorais para tirar os políticos dos bolsos dos endinheirados. A segunda é a privatização das falências para tirar o Estado da atividade corruptora de garantir qualquer grande negócio no Brasil. O problema não é, como diz a propaganda conservadora, que o credor não tem como cobrar do devedor (nenhum país foi historicamente mais favorável aos devedores do que os Estados Unidos); é que faltam mecanismos privados suficientes para recuperar as empresas e para decidir quando são irrecuperáveis. Na nossa prática, só o Estado salva e decide. Organizemos processo que dê prazo e meios para o auto-salvamento das empresas. E que deixe o governo fora.
Se o governo for fundo nesse esforço para moralizar a ação do Estado, iniciará duas dinâmicas transformadoras convergentes. A primeira dinâmica é resgatar espaço público livre do domínio dos interesses poderosos. Espaço que poderá ser preenchido mais tarde pela estratégia nacional que agora faltou. A segunda dinâmica é criar condições para que a sociedade brasileira faça a mudança com as próprias mãos. A decência no trato da coisa pública começará a desfazer os resultados da rendição e a abrir o caminho da resistência. Será o primeiro passo para reconciliar o Brasil com a idéia de sua própria grandeza.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

Internet: www.law.harvard.edu/unger


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