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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
A ética após a rendição
Suponhamos que o novo governo
tenha adiado a reconstrução do
modelo econômico; que se sinta constrangido a essa opção pelo excesso de
dívidas e pela falta de dólares, fatos
que deveriam, ao contrário, tornar
mais urgente a demarcação de outro
rumo; que, movido por confusão de
idéias e por sentimentos de inferioridade pessoal e nacional, haja caído
sob a hegemonia do ideário dominante; que se proponha, portanto, a persistir no que se tem feito no Brasil, que
é combinar a busca da confiança financeira com políticas de compensação social e com socorros concedidos
às grandes empresas, e que tenha, enfim, adotado as lições dos manuais
que os países ricos escrevem para os
pobres. Diante de tanta rendição antecipada, pode haver mudança em direção ao desenvolvimento democratizante?
Pode, desde que o governo radicalize na moralidade. Moralizar a política
significa romper os elos entre poder
público e privilégio privado. Um
exemplo mostra o que isso representa.
Imagine que um grande empresário,
chegado ao presidente, tenha lhe dado
dinheiro na campanha. Agora, apresenta a conta. Quer continuar obra de
vulto, iniciada por estrangeiros. Cobre-se com a bandeira do nacionalismo econômico. Sua empresa, porém,
não está sequer qualificada no ramo.
O empresário tenta comprar prerrogativa e vender proximidade. Se o presidente aceitar, começa a destruir seu
governo. Se rejeitar, começa a construí-lo.
O divórcio entre poder público e privilégio privado significa culto de
transparência, guerra contra o tráfico
de influência, substituição de favores
casuísticos por regras impessoais e
por critérios de desempenho e apoio
aos emergentes como condição de
ajuda aos estabelecidos. Nada de telefonemas do empresário suplicante ao
governante cúmplice para perguntar
se este gosta do que aquele pretende
fazer. Distância e dignidade. Desprivatização do Estado e privatização do
setor privado. Essa ética é gêmea da
eficiência e mãe da justiça. É o mesmo
espírito que insiste em colocar meritocracia no lugar de nepotismo, cooperação no lugar de hierarquia e concorrência no lugar de conluio.
Duas iniciativas são decisivas para
romper o vínculo entre poder público
e privilégio privado. A primeira é o financiamento público das campanhas
eleitorais para tirar os políticos dos
bolsos dos endinheirados. A segunda
é a privatização das falências para tirar
o Estado da atividade corruptora de
garantir qualquer grande negócio no
Brasil. O problema não é, como diz a
propaganda conservadora, que o credor não tem como cobrar do devedor
(nenhum país foi historicamente mais
favorável aos devedores do que os Estados Unidos); é que faltam mecanismos privados suficientes para recuperar as empresas e para decidir quando
são irrecuperáveis. Na nossa prática,
só o Estado salva e decide. Organizemos processo que dê prazo e meios
para o auto-salvamento das empresas.
E que deixe o governo fora.
Se o governo for fundo nesse esforço
para moralizar a ação do Estado, iniciará duas dinâmicas transformadoras convergentes. A primeira dinâmica é resgatar espaço público livre do
domínio dos interesses poderosos. Espaço que poderá ser preenchido mais
tarde pela estratégia nacional que agora faltou. A segunda dinâmica é criar
condições para que a sociedade brasileira faça a mudança com as próprias
mãos. A decência no trato da coisa pública começará a desfazer os resultados da rendição e a abrir o caminho da
resistência. Será o primeiro passo para
reconciliar o Brasil com a idéia de sua
própria grandeza.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
Internet: www.law.harvard.edu/unger
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