São Paulo, terça-feira, 31 de dezembro de 2002

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MÁRIO MAGALHÃES

Brasil 1964, Venezuela 2003

RIO DE JANEIRO - O aprisionamento de fatos e processos históricos distintos em camisas-de-força que buscam identidades onde elas inexistem constitui erro recorrente tanto na academia como no jornalismo.
Em 1964, o golpe militar no Brasil inaugurou uma sucessão de quarteladas que infestaram a América Latina nos anos seguintes. Nada indica que o caos que agora toma a Venezuela possa se espalhar. Os tempos são outros.
As semelhanças entre o Brasil de 38 anos atrás e o vizinho de hoje são, contudo, mais numerosas do que certo noticiário contaminado pelo partidarismo deixa transparecer.
Em 64, João Goulart era um presidente malsucedido em todas as frentes. Comandava um governo em que a corrupção, conforme testemunho póstumo de Samuel Wainer, não era exceção, mas regra.
Por esses dias, Hugo Chávez pena para sobreviver à vocação suicida de enfrentar tudo e todos simultaneamente. Cavou um isolamento do qual não se livra. Talvez seja, como parece, um mau governante.
Em comum, Jango era e Chávez é um presidente constitucional. Os mandatos de ambos foram conferidos por voto popular. Para afastá-los com legitimidade, somente com nova decisão do eleitorado ou de seus representantes, no marco da lei.
Não é o que se arma na Venezuela, onde a Constituição só permite referendo para impor pleito extraordinário a partir do segundo semestre de 2003. Lá, como aqui há 38 anos, a classe média toma as ruas por uma deposição que configuraria golpe de Estado. O país é mestiço, mas só se vêem brancos nas manifestações.
A mídia excitada clama "Marcha vitoriosa" ("El Universal" de ontem, sobre ato anti-Chávez da véspera), como clamou "Basta" e "Fora" no Brasil em 64 ("Correio da Manhã"). Chávez é acusado de agente comunista, como era o latifundiário Jango.
Na contramão das semelhanças, o contraste maior: Chávez tem um nascente governo vizinho que acena com o apoio à ordem democrática que faltou a Jango. O que pode ser significativo para o desfecho da Venezuela em 2003 não repetir o do Brasil em 64.


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