São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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Uma figura polêmica


Historiador retrata Feijó como brasileiro comum


MIRIAM DOLHNIKOFF

"Diogo Antônio Feijó" é o primeiro volume da coleção "Formadores do Brasil", que se inspira numa outra, a "Retratos do Brasil" (Companhia das Letras), e mantém a proposta de tornar acessíveis autores do passado, contribuindo para aproximar o leitor moderno das idéias dos homens envolvidos na construção do país. Uma introdução do organizador e notas explicativas de fatos e personagens procuram facilitar a compreensão de textos escritos no século 19.
Os artigos e discursos mais importantes do padre Feijó encontram-se reproduzidos no livro. É de se lamentar, entretanto, que estejam misturados com peças sem nenhum interesse, de cunho meramente administrativo. Algumas delas nem mesmo podem ser consideradas de sua autoria. É o caso das atas do Conselho Geral da Presidência de São Paulo, assinadas por Feijó apenas porque era secretário desse órgão. Além disso, a economia de notas explicativas torna os textos muitas vezes incompreensíveis para o leitor que não conheça bem o período.
Deputado, senador, ministro e regente, o padre Feijó foi uma personagem polêmica, cuja compreensão exige do historiador que o apresenta ao grande público um esforço de pesquisa e de interpretação. Nisso residem os principais problemas do livro. Em sua introdução, Caldeira pretende retratar Feijó como um "brasileiro comum", que representou o anseio do povo por democracia. Sua eleição para regente, em 1835, demonstraria "que, desde cedo, os brasileiros livres desejavam o caminho da lei e da democracia, e se opunham à escravidão e à multidão de gente influente contrária a qualquer mudança". O tema central de seus escritos e de sua atuação política teria sido a "substituição do arbítrio pelo império da lei como etapa fundamental da transformação da antiga colônia num país digno desse nome", o que aqui é sinônimo de justiça social e democracia.

Sucessão de contradições
Para quem tem alguma familiaridade com a história brasileira ou mesmo simplesmente conhece as mazelas que afligem o país, a interpretação de Caldeira provoca grande surpresa. Passado o susto inicial, contudo, em um esforço de boa vontade, o leitor há de procurar as evidências que necessariamente o autor deveria apresentar para sustentar suas afirmações. Mas a busca será inútil. Em vez de evidências, o que o espera é uma sucessão de contradições.
Feijó é apresentado por Caldeira como um homem pobre, sem dinheiro e sem terras. No entanto, na pág. 25 verifica-se que, na verdade, graças a uma herança recebida de sua avó, o padre era proprietário de terras e escravos, bem distante do que se poderia chamar de "brasileiro comum", seja lá o que isso signifique. Mais adiante, Feijó passa a representar "o grupo intermediário dos cidadãos livres". O que vem a ser esse grupo, Caldeira não esclarece. Seria uma espécie de classe média em plena sociedade escravista? De que cidadãos fala Caldeira? Daqueles que tinham direito de serem votantes ou dos que eram eleitores? O que os separava, como se sabe, era a renda, já que a Constituição consagrava o voto censitário.
Para sustentar sua tese, Caldeira parte do princípio de que era possível, em 1835, em um país agrário, escravista, de passado colonial recente, a realização de eleições livres. Apenas um profundo desconhecimento da história brasileira poderia explicar essa crença. É verdade que ele próprio reconhece que havia obstáculos nesse sentido e que as eleições eram manipuladas pelos grandes proprietários, mediante fraude e violência.
Mas contorna essa dificuldade, que inviabilizaria a imagem da eleição de Feijó como expressão da vontade do "brasileiro comum", afirmando que em 1835 os conservadores se recusaram a participar das eleições, como se a fraude e a violência fossem resultado apenas da ação dos perversos inimigos do padre. O problema é que os conservadores não só participaram, como quase ganharam. Um de seus mais importantes líderes, Holanda Cavalcanti, perdeu de Feijó por cerca de 600 votos.
Caldeira insiste ainda em apresentar seu herói como o paladino da democracia e da lei. Deixemos o próprio Feijó elucidar tal ponto: "Eu confesso que amo mais o governo absoluto de um só que o chamado liberal de muitos, quer sejam democratas, quer sejam aristocratas" (pág.64). Nem podia ser diferente, uma vez que nutria profunda desconfiança pelo "povo sem educação, sem religião, sem moral" (pág.109).
Não há espaço disponível aqui para enumerar as contradições e equívocos de Caldeira. Mais interessante é discutir quem foi Feijó e qual sua importância. O padre integrava o grupo de fazendeiros e comerciantes de São Paulo, entre eles Nicolau Vergueiro e Paula Souza, que se empenharam em aprovar, na década de 1830, uma série de reformas que pretendiam dar um desenho federativo ao Estado nacional. Como afirmou Sergio Buarque de Holanda, os liberais paulistas guardaram "uma fisionomia política apreciavelmente unitária. Podiam sobreviver às diferenças pessoais, que mal perturbariam a coerência fundamental do pensamento político". Basta ler os anais da Câmara dos Deputados e do Senado para atestar não só a unidade de pensamento, mas também a de ação em torno de um projeto comum.

Feijó e o federalismo
Seu ponto principal era a afirmação de que a unidade de todo o território luso-americano, sob a hegemonia de um único Estado, só seria aceitável se fosse garantida autonomia para que os grupos dominantes regionais mantivessem o controle político em suas províncias e desfrutassem de influência nas decisões de âmbito nacional. Pretensões que lhes foram negadas no Primeiro Reinado, quando D. Pedro 1º encabeçou a implementação de um regime centralizado. É essa centralização que Feijó condena quando acusa seus inimigos de absolutistas. Ao fazê-lo, não tem em mente um regime democrático, mas o federalismo que garantiria aos grupos regionais o controle que almejavam. Isso fica evidente nas reformas aprovadas pelos liberais entre 1832 e 1834, em cuja defesa Feijó pegou em armas em 1842 e nas quais era prevista, entre outras coisas, a autonomia tributária e legislativa dos governos provinciais.
O que não quer dizer que Feijó e seu grupo fossem meros representantes dos grandes fazendeiros. Foram uma elite política empenhada na construção de um Estado nacional, porque entendiam ser a única maneira de manter a ordem que os interessava. Na defesa deste Estado entraram algumas vezes em confronto com os fazendeiros. Mas certificaram-se também de que excluíam todos os demais setores do jogo político. Esta a grande complexidade do pensamento e atuação de Feijó: seu projeto era simultaneamente nacional e comprometido com os interesses regionalistas. A federação tornaria isso possível.

Diogo Antônio Feijó
Jorge Caldeira (org.) Editora 34 (Tel. 0/xx/11/816-6777) 360 págs., R$ 33,00



Caldeira deixou-se iludir pela retórica. Para compreender seu objeto, o historiador precisa saber ler de maneira crítica a documentação e inseri-la no contexto em que foi elaborada. No calor do embate político, Feijó e seus pares lançavam mão de valores consagrados -como a lei, a liberdade e a Constituição- para justificar suas posições. Um bom exemplo disso é o debate sobre a escravidão. Em um tempo em que o trabalho escravo era já amplamente condenado na Europa e nos EUA, era comum os políticos brasileiros declararem seu repúdio a ele, sem no entanto estarem comprometidos com a causa da abolição. Feijó denuncia veementemente os males da escravatura, mas apenas o faz para legitimar sua proposta de manutenção do trabalho escravo, e não por se tratar de um ardoroso abolicionista, como quer Caldeira.
Em um artigo do seu jornal "O Justiceiro", ele advoga que a escravidão, apesar de ser um grande mal, deveria permanecer até que fosse encontrado um substituto satisfatório para o escravo, sob pena de se desorganizar toda a economia do país. Por essa razão, a lei que proibira o tráfico negreiro em 1831 "deve o quanto antes ser derrogada, para evitar os males que causa atualmente e para o futuro causará" (pág. 154). Posição similar à sustentada pelos cafeicultores paulistas e que acabaria prevalecendo: a abolição só viria em 1888, quando o imigrante italiano chegou para trabalhar nas fazendas de café.
Caldeira mitifica Feijó, ansioso que está por demonstrar a existência de um sentimento democrático no seio do povo brasileiro. Em nome de sua tese, sacrifica a análise e a pesquisa, transformando a história na luta entre o bem e o mal.


Miriam Dolhnikoff é doutoranda em história na USP e organizadora do livro "José Bonifácio de Andrada e Silva - Projetos para o Brasil" (Companhia das Letras).


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