São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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O túnel do diabo

MARIA HELENA CAPELATO

"Eu não tenho nenhum futuro, porque quem passou pelo túnel do diabo não tem futuro" (ADF, 17 anos, passa o dia limpando vidros de carros no semáforo da avenida Henrique Schaumann. O túnel a que se refere corresponde a tudo o que já viveu: entradas e saídas da Febem, a vida nas ruas, as violências que sofreu). Assim termina esse livro que apresento ao leitor com forte recomendação de leitura.
Impactada pelo depoimento de um jovem, que já deixou de sonhar e não tem mais pelo que esperar, passei a refletir sobre o sentimento de desesperança que hoje predomina no país, não sem razões. O Brasil é recordista em má distribuição de renda, em analfabetismo e violência infantil -cerca de cem crianças morrem, por dia, vítimas de maus-tratos. Diante desse quadro, é de se perguntar: qual o futuro desta nação?
Isabel Frontana nos conduz do começo ao fim ao "túnel do diabo" pelo qual passam os "menores". Como historiadora envolvida com as "questões do tempo presente", transita pelo passado, desvendando, com muita sensibilidade e análise bem fundamentada, a outra face de um Brasil que nem todos conhecem. Focaliza a cidade de São Paulo no período do regime militar (1964-1985) com o objetivo de "resgatar o modo de inserção social desse segmento específico da infância diante das particularidades que envolvem a questão do menor no âmbito complexo de uma metrópole". Nele são analisadas as circunstâncias históricas que produziram a miséria na qual está mergulhada grande parte das crianças de São Paulo e do país.
O livro parece ter sido feito sob encomenda para o momento atual. Além de um trabalho bem elaborado do ponto de vista historiográfico, pode ser lido como um livro-denúncia de uma história -a dos "menores"- que precisava vir a público para se dar a conhecer em toda a sua complexidade. Os brasileiros que assistiram, recentemente, ao vivo e em cores, o terrível espetáculo ocorrido na Febem, protagonizado por "menores" e seus responsáveis, jamais esquecerão o episódio.
A cena poderia fazer parte do final da obra que relata o início dessa instituição, criada nos idos da ditadura militar. Tinha como objetivo "readaptar e reintegrar o menor", proporcionando-lhe habilitação profissional e tornando-o merecedor da outorga de seus direitos de existir socialmente e de ser reconhecido como cidadão. Acabou se transformando numa "fábrica de criminosos", capaz de destruir e de se autodestruir.
A autora traz à tona as enormes contradições entre um projeto de cunho humanístico e a prática desastrosa que dela resultou. O último capítulo historia a construção da política de proteção ao menor, os mecanismos criados para pô-la em prática e o funcionamento dessa organização que foi fundada para "abrigar" os meninos de rua.
A primeira parte do texto reconstitui a construção da imagem do "menor", que "identifica crianças e adolescentes pertencentes às classes trabalhadoras de baixa renda -os filhos de negros, nordestinos ou brancos pobres-, que carregam as marcas e os estigmas da exclusão e os signos da discriminação". A identidade dos "menores" não foi construída por sua própria expressão ou por suas formas de auto-representação, mas pela "fala de outros", que não pertencem a essa categoria social e a retratam segundo seus valores e pontos de vista. Recuperando as representações discursivas produzidas pelo Estado e pela grande imprensa, Frontana mostra, também, de que forma o "menor" emergiu como parte da "questão social".
Tomando como ponto de partida o período pós-64, estabelece uma relação entre a política de proteção ao menor e a doutrina de segurança nacional. Nesse contexto, o menor adquiriu estatuto de "problema social" de âmbito nacional: tornou-se alvo de políticas especiais e tema de intenso debate. Aos poucos, foi sendo esculpido o perfil desse personagem que ora é representado no papel de vítima, ora no papel de criminoso.

Crianças e Adolescentes nas Ruas de São Paulo
Isabel C.R. da Cunha Frontana
Loyola (Tel. 0/xx/11/69141922)
247 págs., R$ 18,00



Alguns vêem os menores como delinquentes ou bandidos, que como tal representam ameaça à sociedade, outros os encaram como vítimas de um sistema econômico e social excludente, havendo, também, aqueles que experimentam um sentimento confuso, mescla de medo e compaixão. As divergências aparecem claramente quando se trata de apontar responsabilidades. Por ocasião do "crime da Candelária", o jornalista Janio de Freitas, da Folha, afirmou: "Os meninos de rua não são filhos da rua. São, como a pobreza paterna de que emergem, filhos da classe dirigente brasileira". Posição diferente assumiu o jornalista Maurício Stycer, que, em reportagem publicada no mesmo jornal, sobre os "meninos assaltantes da praça da Sé", responsabilizou apenas os pais pelos "crimes" que as crianças cometem na rua.
O relato sobre a Operação Camanducaia, que expulsou 93 "menores" de São Paulo com o propósito de "limpar as ruas" da grande metrópole, informa que eles foram espancados e despejados nus, na calada da noite, na cidade mineira que recebeu, perplexa, os "dejetos" paulistanos. As declarações do secretário estadual de Segurança Pública de São Paulo, coronel Erasmo Dias, sobre o episódio dispensam comentários. Segundo ele, a operação ocorreu por "excesso de zelo" de seus subordinados.
A violência policial nunca foi assumida como tal pelas autoridades e policiais que se atribuem o papel de protetores da sociedade, "vítima" dos "menores". O uso de termos como "profilaxia", "limpeza pública" e "pente fino", para designar as operações realizadas com o intuito de afastar os "meninos de rua" do convívio social, é extremamente revelador das intenções dos policiais.
O tratamento dispensado aos "menores" da Febem, pelos encarregados de manter a ordem, também provoca indignação. Eles punham em "movimento as engrenagens de uma máquina de disciplina e vigilância". A estrutura hierárquica dessa instituição caracterizava-se por uma relação direta do diretor com seus subordinados e destes com os internos. Fortes conflitos permeavam esse relacionamento. Os embates dos últimos anos, incluindo o mais recente, aconteceram nos momentos em que o termômetro que media a violência cotidiana acusava grau máximo de temperatura. Quando a máquina explodiu, destruindo os muros que isolavam e escondiam as mazelas da instituição, a sociedade assistiu atônita a um espetáculo horrendo. E logo surgiram as indagações: quem produziu aqueles monstros? O livro procura responder a essa questão.


Maria Helena Rolim Capelato é professora do departamento de história da USP.


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