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São Paulo, sábado, 08 de fevereiro de 2003

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O esquecimento da fala

BENEDITO NUNES

Para um filósofo como Heidegger, que faz da palavra a emergência sonora do sentido, ao mesmo tempo "poiesis" e "logos", fala recuperada na linguagem, voz falada na escrita, pensamento enquanto caminho que avança dos objetos à coisa, do ente ao ser, retraindo-se à objetificação dos signos -para um filósofo, enfim, que pensa poeticamente e para quem, portanto, se torna mínima a diferença entre pensar e poetar, a língua se reveste de importância fundamental. Um pensamento desse tipo, gerador de um vocabulário próprio, só pode admitir, em tácito acordo com o nosso poeta Drummond, que, mesmo sem nascerem amarradas, as palavras subsistem em estado de dicionário. A filosofia heideggeriana vive nesse estado.
No entanto, só agora essa filosofia ganhou de um autor inglês, Michael Inwood, o dicionário que ela própria sugeria, ainda que a linguagem filosófica de Heidegger seja uma busca, e não um sistema, segundo acertadamente nos diz Marcia Cavalcanti Schuback, coordenadora da publicação.
Necessária era essa coordenação, porquanto o dicionário de Inwood vigora numa dupla pauta linguística, a inglesa original e a portuguesa de recepção. Essa dupla pauta exigiu não só que se vertesse o vocabulário próprio do filósofo da primeira significação que lhe deu o dicionarista inglês, mas também que se o readaptasse do alemão de origem ao português, idioma no qual já se concertou uma prática de tradução dos textos heideggerianos, além de "Ser e Tempo", pelo qual o dicionarista se norteou, e cuja versão integral para a nossa língua devemos à coordenadora (Vozes, 2 volumes,1988-89).
Assim, teria a obra, antes de tudo, de colocar-se sob o ângulo da importância da língua para o pensamento. Do que cuidou excelentemente Michael Inwood, escrevendo para o seu texto uma introdução acurada a respeito, sob o título de "Heidegger e Sua Linguagem", a seguir resumida em proveito do futuro leitor da obra.
Quanto à coordenadora, responsável pela bibliografia em português da obra do filósofo -na qual se constatam as omissões de importantes textos de Ernildo Stein ("Seis Estudos Sobre "Ser e Tempo'", 1988, e "Seminário Sobre a Verdade", 1993) e de Zeljko Loparic ("Heidegger Réu: Um Ensaio sobre a Periculosidade da Filosofia", 1990)-, deve-se registrar sua não menos importante tarefa de dotar cada verbete de "duplas entradas, a primeira correspondendo à tradução em língua portuguesa já existente e a segunda traduzindo a tradução inglesa". Detenhamo-nos um pouco na introdução de Michael Inwood sobre a linguagem heideggeriana.
Essa linguagem é heterogênea e paradoxal: comporta um vocabulário pé no chão, feito de palavras triviais, usadas no intercurso cotidiano, e um vocabulário peregrino, valorizado pela sua ancestralidade. Assim, ela tanto acolhe a inovação linguística quanto a arcaização, ambas exigindo um constante trabalho poético do pensamento: o nosso filósofo ora forja palavras, ora as decompõe. Num caso e noutro, o pensamento dele ancorado está na linguagem; e da linguagem não se separam nem o pensamento nem a experiência.
Gostaríamos de acrescentar: conforme Heidegger nos ensina, o mundo que tal ancoragem pressupõe é algo verbalizado e só perceptível porque verbal, isto é, suscetível de enunciação e de passagem do falado ao escrito. Antes de ser racional, o homem é um falante. As mudanças de experiência acompanham as mudanças de linguagem, sujeitas a constante movimento de despersonalização ou de objetificação. Quem fala sou eu, mas a minha fala pode ser a anônima e impessoal ressonância do outro ou dos outros que me invadem, expulsando-me de mim, substituído pelo sujeito coletivo no qual me anonimizo.
Dir-se-ia que, em Heidegger, a anonimia linguística se combina à possibilidade existencial das formas de alienação social e econômica. O esquecimento do ser ("Seinsvergessenheit"), acrescentamos ainda, também pode ser o esquecimento do originário ato da fala. E a recuperação da lembrança do ser redundaria numa recuperação da fala, enquanto linguagem autêntica, salva da armadilha da objetificação por efeito de sua nativa "poiesis", graças à qual o mundo se amplifica e o "Dasein" conquista-se a si mesmo.
Por isso, conhecido texto de Heidegger, clamando pela estreita proximidade entre pensar e poetar, admite que o pensamento do ser é poético. Daí ser fluido o vocabulário de Heidegger, em que as palavras se entrosam, dançáveis, e têm uma de suas pedras de toque no termo "Dasein".
A recapitulação do uso de "Dasein", desde o seu significado pé no chão no alemão corrente até o seu enriquecimento nocional quando decomposta na forma "Da-sein" (aquele que busca o ser, atende a seu apelo, a ele se abrindo), é a mais completa possível. Mas o verbete assinalado é um dos poucos, senão o único, que ficou sem nenhuma tradução, fugindo, portanto, da regra de duplas entradas estabelecida pela coordenadora. Mas a vantagem dessa transgressão foi nossa: ao assim proceder, a coordenadora restabeleceu a dança heideggeriana das palavras e a luta agonística do filósofo com e contra elas, em vez de fixá-la numa só palavra: a "pre-sença" de sua versão completa, já citada, de "Ser e Tempo".
Em sua comprovada competência de tradutora de Heidegger e de Schelling, Marcia C. Schubach terá obedecido, livre de etimologismos, à injunção do significado ambíguo de "Da-sein", que se move entre o ente humano e o ser por ele buscado. Assim, mais acorde ficou o dicionário com a concepção do próprio Heidegger, segundo a qual palavras são acenos ("Winke") da fala e por isso, também, caminhos ("Wege") do pensamento abertos na linguagem.


Dicionário Heidegger
Michael Inwood
Tradução: Luisa Buarque de Holanda
Jorge Zahar Editor
(Tel. 0/xx/21/ 2240-0226)
244 págs., R$ 32,00


Benedito Nunes é professor titular emérito na Universidade Federal do Pará e autor, entre outros livros, de "Heidegger & Ser e Tempo" (Jorge Zahar Editor).


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