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Novo estudo do americano Fredric Jameson discute a atualidade de Bertolt Brecht
O livro das reviravoltas
JOSÉ ANTONIO PASTA JR.
Nos debates sobre a atualidade de
Brecht, o reconhecimento cerrado dos
aspectos em que o legado do dramaturgo
foi duramente afetado pela história recente produz um curioso contra-efeito
dialético, certamente esperado: torna cada vez mais vivo o sentimento de que
nem tudo, ali, se desmanchou no ar, de
que algo de sólido perdura e persiste, para além de tudo aquilo que a história foi
minando por dentro, e o trabalho da crítica, metodicamente, faz desabar (Cf., a
propósito, o estudo exemplar de Roberto
Schwarz: "Altos e Baixos da Atualidade
de Brecht", in "Sequências Brasileiras",
Cia. das Letras).
Este algo, embora seja sólido e esteja "à
mão" (conforme uma aspiração que
Brecht herdou de Goethe e transformou
em exigência), não se deixa apreender
sem mais. Como boa parte da arte e do
pensamento modernos, para refugir à
reificação, ele se retirou da esfera das coisas feitas e se apresenta indisponível para
o consumo. Nenhum mistério, entretanto: trata-se de algo que "está presente em
todo Brecht e em cada um de seus fragmentos" (para falar como um dia o fez J.
Thibaudeau) e que vale como uma verdadeira condição de sua apreensão, mas
que não está pronto de uma vez por todas.
Assim, esse algo que perdura, e que parece consistir naquela dimensão da obra
de Brecht a mais resistente às infinitas armadilhas da reificação, não se pode confundir inteiramente com as figuras particulares em que se investe o seu trabalho
artístico, nem com um "sistema", doutrina ou conjunto de procedimentos, independente daquelas, que se pudesse tomar
em si mesmo, à semelhança do que fez
certa vulgata brechtiana. Trata-se, antes,
daquele modo de proceder que, em
Brecht, desenvolveu-se não "do lado de
fora da obra, mas sim organizando-a e
sendo organizado" pela historicidade
concreta dos materiais com que opera
(para empregar a síntese que Sérgio de
Carvalho fez em resenha recente). Algo
como um método em plena imanência,
no qual a prática, em cada palavra, encontra-se no estádio teórico, e vice-versa.
Brecht e o método
Por isso, este livro de Fredric Jameson,
que se volta justamente para essa dimensão da obra de Brecht (creio que procurando dar corpo àquele sentimento aludido no início destas linhas), só a chama
de "método" com infinitas precauções. O
título do original inglês, aliás, é, cautelosamente, "Brecht and Method". Mas não
creio que, nisso, andou mal a tradução
brasileira, ao optar por "O Método
Brecht". A supressão da preposição "de"
sugere, acredito, uma consubstancialidade de procedimento e obra, que corresponde aos desígnios do original e faz lembrar o modo pelo qual um Sainte-Beuve
falava em uma "Folie Baudelaire" e, recentemente, J.E. Jackson passou a falar
em "la Mort Baudelaire".
Porém, se Jameson é cauteloso no emprego da indigitada palavra método,
mostra-se finalmente arrojado ao sublinhar essa dimensão "teórica" que o interessa: redefinida como conjunção de teoria e prática, "a teoria de Brecht inclui as
suas obras "literárias", (...) é ela em si nosso objeto de estudo quando examinamos
aquela obra; ela é o que é "realmente" ou
"na realidade" brechtiano em Brecht".
Para fazer justiça ao ponto de vista de
Jameson, todavia, é preciso deixar claro
que não se trata, em seu livro, de "salvar"
o Brecht "teórico", em oposição a outros
de seus aspectos, fragmentando assim o
seu legado. O estudo de Jameson se constrói declaradamente contra essa fragmentação, o que dá lugar a um dos seus
raros momentos de indignação explosiva: "(...) não há algo de profundamente
não-brechtiano em si na tentativa de
reinventar e reviver "Brecht para os nossos tempos", algo como "o que sobrevive e
o que morreu em Brecht", ou o Brecht
pós-moderno ou Brecht para o futuro,
um Brecht pós-socialista ou mesmo pós-marxista, o Brecht da teoria homossexual
ou da política de identidade, o Brecht deleuziano ou derridiano, ou talvez o Brecht
do mercado e da globalização, um Brecht
da cultura de massas, um Brecht do capital financeiro, por que não? Slogans ignóbeis, que carregam em si uma concepção
reprimida da posteridade e inconscientemente fantasiam o cânon como forma de
imortalidade pessoal, cujo oposto deve
naturalmente ser a extinção pessoal".
O que há de "profundamente não-brechtiano" nessa fragmentação, na qual
se mostra muito visível a mão do mercado, que tudo corta em pedaços e os dispõe em gamas variadas para o consumo,
é o fato de ela contrariar um movimento
essencial ao trabalho de Brecht, que, reconhecendo essa potência fragmentadora, tratou de dotar crescentemente sua
obra de dispositivos que lhe garantissem
a resistência e a integridade. Esse movimento, em Brecht, é o oposto simétrico
de suas ênfases na separação e na descontinuidade e dirige-se para formas peculiares de totalização e integração, cuja relativa falta de reconhecimento crítico é um
mistério que valeria a pena desvendar.
Fragmentação mercadológica
Creio que justamente porque Jameson
vive e escreve no olho do turbilhão da
"theory" e dos pós-modernismos, em
que a fragmentação mercadológica assume forma discursiva dita teórica, tornaram-se particularmente visíveis, para ele,
esses dispositivos totalizadores do trabalho de Brecht. Eles estão no centro do livro e constituem seu verdadeiro Leitmotiv, nem sempre fácil de discernir. Mas isso talvez ajude a compreender sua ênfase,
que tem algo de desafiador, no alcance
desses dispositivos. Depois de ter roçado
perigosamente, para defini-los, nos termos anatemizados de "método" e "totalidade", ele não hesita em ir a coisa ainda
mais arriscada, caracterizando-os como
fenômenos "paradigmáticos da expansão da obra de Brecht em direção à metafísica em última análise ou visão de mundo".
Mas cedo essa que é, em "última análise", uma "metafísica", desvenda-se como
"uma estratégia sábia e sutil: pois em todos os âmbitos do moderno a própria
idéia de uma visão de mundo ou de metafísica foi a primeira perda fatal da própria
modernidade" (idem). Essa estratégia
consiste não em restaurar uma totalidade
perdida, nem em substituí-la pelo marxismo, que assim se degradaria, mas em
projetá-la como um horizonte efetivo,
onde ela existiria como uma promessa de
sentido, ao mesmo tempo plena e vacante. Na interpretação de Jameson, o lugar
dessa totalidade é ocupado, em Brecht,
pela sua peculiar imagem do Tao chinês,
especialmente corporificado em seu trabalho "Me-Ti (Livro das Reviravoltas").
O grande fluxo do Tao, na mutação de todas as coisas, ocuparia o lugar dessa totalidade perdida, não como sua substância
efetiva, mas "como aquilo que Lacan teria
chamado de "tenant lieu", algo que garante um lugar para a metafísica que se tornou impossível".
O recurso a essa estratégia da, digamos,
totalidade vacante, explica-se, para Jameson, finalmente, de um modo mais historicamente concreto: ela se deve ao estágio
atual do capitalismo (prefigurado em
Brecht), que tendo bloqueado ou neutralizado todas as possibilidades de transformação efetiva e mesmo de reforma,
"ultrapassou os limites da iniciativa humana, tornando-a obsoleta", devolvendo-nos, assim, ao puro fluxo do tempo
-em meio ao qual se trata de reencontrar a atividade possível: "Eis por que a
concepção brechtiana da atividade hoje
em dia deve vincular-se a um renascimento do antigo sentido pré-capitalista
do próprio tempo, da mudança ou do fluxo de todas as coisas: é o movimento deste grande rio do tempo ou o Tao que lentamente nos levará correnteza abaixo novamente em direção ao momento da práxis (...)".
A sucessão dos termos empregados por
Jameson, e que já pude levantar aqui, ganha talvez, agora, um sentido mais geral:
teoria, método, visão de mundo, metafísica -ao confluírem para a imagem político-poética do Tao- revelam seu pertencimento comum à figura da totalidade, tal como aparece em Brecht. Assim,
aquela parte de Brecht que persiste e perdura é precisamente... a totalidade -ou
a sua exigência, em meio ao reconhecimento de sua mais completa impossibilidade ou de sua falsidade necessária.
O efeito de distanciamento
Onde, todavia, esse movimento do trabalho de Brecht encontra, no livro de Jameson, sua percepção mais aguda, é, na
minha opinião, em sua inusitada consideração do efeito de estranhamento (ou
distanciamento). Este é, talvez, a forma
central da atitude analítica em Brecht,
fundada na descontinuidade e na separação, além de ser o recurso brechtiano que
hoje parece estar mais enfraquecido em
seus efeitos. Para Jameson, sua validade
encontra-se muito além de sua possibilidade de estranhar objetos: está nele mesmo, como operador simbólico da junção
de teoria e prática, na qual manifestaria
seu verdadeiro sentido metodológico, finalmente fundado em um "ideal de completude". Na sua formulação última: "A
idéia de estranhamento é maior do que
qualquer estranhamento individualmente realizado, e a performance final é também um pretexto para todos os questionamentos teóricos que necessariamente
a precedem na prática e portanto devem
segui-la na teoria".
Como se pode ver, então, no exemplo
central do efeito "V", o essencial do "método Brecht" não estaria, para Jameson,
em nenhum dos elementos integrantes
de sua obra, por mais importantes que
sejam, mas, precisamente, na remissão
obrigatória de uns a outros, que os conjuga a todos na constituição de uma totalidade em processo, ao mesmo tempo
exigida e negada. Jameson tratará de demonstrá-lo laboriosamente no que chama de "triangulações" entre os níveis da
"doutrina" (ou modo de pensar), da linguagem (ou estilo) e dos modelos narrativos, níveis cuja remissão recíproca daria corpo a uma "Haltung" brechtiana
-o seu "método".
A peculiaridade do procedimento de
Jameson, entretanto, está em que ele o fará em diálogo direto com a tópica mais
saliente da dita pós-modernidade, a meu
ver com vantagens e desvantagens igualmente notáveis. Assim, a autonomia do
estético, em Brecht, se revelará mais
complexa que a pura auto-referencialidade narcísica das "metalinguagens"; a
fragmentação das "identidades" pós-modernas terá que se olhar no espelho da
crítica do consumo; a mistificação atual
da alegoria se verá subsumida na estratégia materialista das triangulações e do
distanciamento; a fetichização do "intertexto" se mostrará como versão apologética da contradição; a "morte do sujeito"
se revelará como feição conformista das
formas históricas de sua vacância em
Brecht e, finalmente, naquele que é talvez
o "tour de force" do livro, as "diferanças"
deleuzianas e assemelhadas terão de se
haver com a "Ciência da Lógica", de Hegel, contra a qual sua pretensa originalidade radical se revela mera redução e se
estilhaça.
O principal efeito positivo desse conjunto de confrontos é o de puxar, nesse
emaranhado, o fio vermelho do legado
brechtiano, mostrando como ele se encontra na matriz recalcada desses desenvolvimentos teoréticos, nos quais finalmente se embaraça, entretecido numa
teia ideológica em que muda de cor e de
fibra. O efeito negativo talvez seja a deriva
exasperante a que submete o leitor, na
qual não poucas vezes é o fio da própria
reflexão que se perde nos meandros da
controvérsia pós-moderna, cujo peso sobre o autor torna-se excessivo e indisfarçável. Mas ainda aí há uma vantagem
perceptiva: diante disso, nós, os leitores
destas baixas latitudes, temos a súbita
sensação de voltar no tempo e, mirando-nos no espelho do centro do império, enxergar a nossa própria situação -uns 20
anos atrás. O "Livro das Reviravoltas" talvez nos ajudasse a explicá-lo.
O Método Brecht
Fredric Jameson
Tradução: Maria Sílvia Betti
Revisão técnica: Iná Camargo Costa
Vozes (Tel. 0/xx/24/237-5112)
240 págs., R$ 26,00
José Antonio Pasta Jr. é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Trabalho de Brecht" (Ática).
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