São Paulo, Sábado, 08 de Maio de 1999
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Pesquisa reconstitui a trajetória do médico e cientista Nina Rodrigues, um dos "inventores" da antropologia brasileira
O enigma da mestiçagem

SERGIO MICELI

O belo trabalho de Mariza Corrêa examina o período da história brasileira em que uma parcela expressiva da intelectualidade estava empenhada em desfazer as ilusões de igualdade política invocada na primeira constituição republicana, mirando a "economia étnica" da população como desafio-chave de análise. A concentração das atividades culturais nas faculdades de direito e medicina, únicos núcleos institucionalizados de saber até a década de 30, tornava o trabalho intelectual indissociável do exercício de funções políticas, da gestão de instituições públicas e da formulação de políticas sociais.
Ao empreender a reconstrução da trajetória de Nina Rodrigues (1862-1906) e prosélitos, a autora deslinda as amarras de inteligibilidade dessa experiência: faz um histórico apurado de "panelas" na elite dirigente, recuperando o cipoal de prestações e contra-prestações em que vão se enredando seus integrantes; explora informações inéditas a respeito da importação e readaptação de sistemas de pensamento estrangeiros pelos adeptos locais; escarafuncha os andaimes de "construção institucional" nas áreas de atuação dos personagens; reavalia a enxurrada de escritos de circunstância motivados pelas iniciativas desses médicos e advogados fascinados pela atividade intelectual.
Uma das qualidades do trabalho é não se deixar seduzir por uma abordagem anacrônica tanto dos resultados das pesquisas como das noções veiculadas nos textos da época. Em lugar de assumir a batida posição crítica de denunciar o travo evolucionista ou flagrar o vezo racista, perceptíveis no ideário de Nina Rodrigues, a autora reabsorve esses ingredientes no contexto, buscando ancorar inferências, conceitos e hipóteses, que hoje soam disparatados e ingênuos, nas teias de relações que lhes deram tônus e sentido.

Demônio da ciência
Raimundo Nina Rodrigues, nascido no município maranhense de Vargem Grande, era um dos seis filhos de um proprietário rural à beira da falência. O destino da prole restante -três funcionários públicos (dois civis e um militar), um louco e a única irmã às voltas com a filha leprosa- é um sinal tangível do rebaixamento familiar. O "franzino" e "muito feio" Nina Rodrigues completou os estudos secundários em São Luís, tendo ingressado, aos 20 anos, na faculdade de medicina da Bahia; no início da quarta série, transfere-se para o Rio de Janeiro, aí concluindo o curso com a tese, aprovada "com distinção", sobre três casos de paralisia progressiva numa mesma família.
Em 1889, aos 27 anos, Nina Rodrigues assume um duplo compromisso que definiria os rumos pessoais e profissionais dos 17 anos que ainda teria de vida: casou-se com dona Maricas, filha do conselheiro imperial José Luiz de Almeida Couto (1833-1895) e obteve em concurso o lugar de professor adjunto da cadeira de Clínica Médica, cujo titular era o sogro e patrono, a quem dedicara a tese e seu primeiro livro. Republicano histórico, deputado provincial em quatro mandatos, presidente de São Paulo, duas vezes presidente da Bahia, senador e intendente de Salvador no regime republicano, Almeida Couto era político de projeção nacional, médico com sólida reputação acadêmica e um concorrido consultório privado, um dos homens fortes no panorama político baiano na transição do Império para a República.
Logo depois, Nina Rodrigues se transfere para a disciplina de medicina legal, campo inexplorado de atividade científica, num terreno de atuação disputado por médicos, advogados e peritos policiais. A reforma Benjamin Constant havia criado a cadeira de medicina legal nos cursos jurídicos, instituíra seu ensino prático nas delegacias e elevara o salário dos lentes. Tais medidas tornavam atrativa a nova especialização, dando margem a oportunidades de investimento e retorno considerável para os que chegassem primeiro.
Sua obra de estréia, "As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil" (1894), alia experimentos em medicina legal ao papel exercido pela raça na patologia social, constando do panteão de influências os preitos aos criminalistas italianos e legistas franceses. Assume a cátedra de medicina legal aos 33 anos, no mesmo momento em que funda a sociedade e a revista da área no estado. Essa diversificada base de operações lhe garante acesso a uma rede de especialistas no país e no exterior, com os dividendos usuais: viagens e reuniões científicas, difusão de seus artigos em francês e espanhol, filiação às entidades internacionais, coroando essa etapa com a redação de um manual de autópsia.
Em janeiro de 1905, um incêndio destrói parte da faculdade e o laboratório de medicina legal em Salvador, inclusive sua coleção de ossos humanos; no ano seguinte, esse pesquisador apaixonado, do qual se dizia possuir o "demônio da ciência", morre em Paris, aos 44 anos, vitimado por um câncer no fígado, sendo aí mesmo embalsamado por um dos médicos da especialidade. Ao invés das mutilações a que sujeitava os cadáveres dos "inferiores" de cor, as substâncias injetadas desta feita visavam retardar a decomposição da imagem física do sinhozinho branco bem sucedido.
O desaparecimento na pujança da maturidade profissional, detentor de um cabedal invejável de trunfos de toda ordem, como que favoreceu a rápida tessitura de aura em torno de sua figura, amplificando a relevância de seus feitos, infundindo aos escritos um rótulo pioneiro e fazendo dele um dos mitos de origem da antropologia. Não fora esse imprevisto desfecho, o perfil de sua carreira, enquanto homem bem plantado na elite, decerto enveredaria pelos rumos pragmáticos a que se lançaram os discípulos. Nina Rodrigues morreu antes de poder impulsionar suas pretensões político-institucionais na estatura que lhe teria ensejado o cacife herdado do sogro e amealhado por mérito próprio, tendo-se transmutado, à sua revelia, em protomártir da nascente ciência social brasileira.

A invenção do mestiço
Após analisar as medidas cefálicas, estabelecer a genealogia familiar e hipnotizar um rapaz que teria assassinado o pai aos nove anos de idade, Nina Rodrigues aprontou o diagnóstico desse "pardo em que os caracteres do mulato e do mameluco estão bem combinados": "O criminoso tem 18 anos, é ladrão, pederasta passivo, jogador, bêbado, um ser completamente desmoralizado, enfim, um incorrigível temível. (...) Mas a precocidade deste criminoso, a natureza do seu crime em que se revela uma ausência completa (...) de simpatia para com o seu progenitor, (...) a invenção mentirosa de um mandante, atribuindo o crime a um indivíduo que sabia inimigo de seu pai, (...) a indiferença que revela em todos seus atos, tudo enfim me faz crer que se trata de um grande criminoso da classe dos criminosos natos". Tal veredicto sintetiza a matriz teórico-interpretativa, os métodos de análise, o léxico conceitual e a ginga expressiva dessa mescla de legista, psiquiatra, cientista, letrado, moralista, reformador e patologista do social.
Conforme demonstra o caprichado rastreamento da autora, o trabalho de Nina Rodrigues foi tomando feição em meio às práticas de registro da medicina legal, daí passando aos levantamentos estatísticos dos traços das populações a serem tuteladas, até chegar aos sistemas classificatórios mobilizados para dar conta dos enigmas envolvendo a sociedade brasileira. O universo doutrinário de então incitava à busca de marcas nos corpos dos segmentos sociais inferiores -negros, criminosos, loucos, homossexuais etc.-, e censurava evidências discordantes que por acaso surgissem no correr do trabalho de campo. Não havia como escapar ao rigor de uma cultura científica obcecada por identificar, quantificar e categorizar deformidades, enfermidades e atavismos, passo indispensável à confecção de sinais manifestos de sua condição subalterna.
A elite de médicos e advogados pós-Abolição definiu um povo estigmatizado pela inferioridade inscrita no código da raça, no suporte da natureza, fazendo com que o negro deixasse de ser apenas "máquina de trabalho" para convertê-lo em "objeto de ciência". Nina Rodrigues pretendia garantir foros de verdade ao implantar aqui a tradição da antropologia médica voltada para coleta de medidas e escalas que, naquele momento, faziam as vezes de provas, tanto das origens das diferenças sociais como dos fatores responsáveis por sua reprodução. A mensuração e pesagem do crânio e de seu conteúdo precediam o ordenamento de traços faciais, com vistas a reconhecer estigmas conducentes ao crime, à loucura, ao desvio sexual e, numa dinâmica coletiva, aptos a desvendar desigualdades entre "inferiores" e "superiores".
Segundo depreende-se dos textos selecionados por Mariza, a hereditariedade como "destino individual e social" constituía a viga mestra dessa perspectiva analítica, predeterminando o comportamento de cada um pela pertinência a certas "classes biológicas". À medida que avançava o trabalho de pesquisa, Nina Rodrigues foi dando mostras de decepção com esses exames invasivos em favor de um paradigma espiritual. Passa a privilegiar os aspectos psíquicos em detrimento dos fisiológicos, e daí se arrisca a uma explicação cripto-sociológica.
A mestiçagem constitui seu principal invento conceitual, o pilar em que se assenta a produção da diferença e do conflito, a baliza dos graus de "degeneração" existente na sociedade brasileira: uma espécie de feitiço incontornável que vai se impregnando no sangue dos brancos, de onde se espraia por diferentes domínios institucionais, a começar pelas manifestações religiosas, passando pela sociabilidade familiar, até atingir o cerne da vida política ao inviabilizar uma cidadania igualitária. O passo subsequente consistiu na fixação de critérios de classificação das raças, sensíveis a ponto de apreender as variações mais sutis do processo de mestiçagem, desde então o foco privilegiado na agenda de discussão das relações raciais no país.
As misturas raciais se faziam replicar numa hierarquia subjacente de categorias culturais. O mestiço era o nervo da interação entre superiores e inferiores, uma categoria intermediária e ambígua na raiz de outras desigualdades, o parâmetro étnico de uma dilacerada tragédia cultural. A raça conferia substância ao argumento a respeito da debilidade, física e mental, da população brasileira e, por extensão, de sua inanição cultural.
Todavia, não escapavam aos sentidos do pesquisador atilado evidências gritantes de que os objetos pareciam escapar às camisas de força, trazendo à tona contradições que desarrumavam o enredo escorado na mestiçagem. As senhoras brancas de "famílias distintas" que frequentavam os terreiros das mães de santo ou, então, os médicos clientes de cartomantes, entre muitos exemplos de atitudes incompreensíveis à luz de suas premissas, como que atiçaram ainda mais sua obsessão pelo enigma de como era possível uma raça considerada inferior possuir tamanha influência na dinâmica do mundo social.

A tradição da identidade
No capítulo final, Mariza interpreta a chamada escola Nina Rodrigues na chave acertada de uma estratégia de apropriação por parte de discípulos obstinados em redefinir os temas e objetos tratados pelo mestre em seus próprios termos e a serviço de seus interesses. Oscar Freire, Afrânio Peixoto, Leonídio Ribeiro, entre outros integrantes dessa "panela" baiana, exerceram atividades intelectuais em conexão íntima com as demandas de seus partidos.
A carreira profissional de quase todos se desenvolveu nos laboratórios de medicina legal, que se transformaram, ao longo da década de 30, em Institutos Médico-Legais (Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro). As iniciativas desses bacharéis faziam parte das lutas corporativas pela conquista de um aparato institucional, àquela altura sob controle da esfera policial. Os médicos aferrados à institucionalização da medicina legal elegeram os desviantes como objeto de análise, enquanto os antropólogos e sociólogos (Roquette-Pinto, Gilberto Freyre, sobretudo Arthur Ramos) encontraram meios de refutar o determinismo biológico e focalizar o problema da identidade de grupos ou classes constitutivos da sociedade brasileira.
Os primeiros tiveram uma influência institucional e política acachapante, levando às últimas consequências os encargos de fiadores da ordem, especialistas na identificação dos indivíduos e grupos a serem tutelados ou mesmo excluídos. Os cientistas sociais, por sua vez, se lançaram à cata das raízes da identidade desses grupos até então considerados "marginais". Arthur Ramos, a figura mais expressiva da ala antropológica, tentou elaborar uma abordagem inovadora da interação racial ao enxergá-la como fulcro de uma cultura brasileira. Ao substituir raça por cultura, mestiçamento por aculturação, ele quis reformatar os exemplos do mestre numa linguagem de feitio culturalista e psicanalítico.
Uns e outros serviram-se de Nina Rodrigues, de suas pesquisas, obras e projetos, como instrumentos de legitimação, se autodesignando herdeiros do nome, depois de espaços na divisão do trabalho político, enfim de um mito de invenção da especialidade. Essa tradição sobreviveu às custas dos lampejos de epígonos, ao reinaugurar, a cada nova conjuntura, o problema da identidade do povo brasileiro como se fora a questão nuclear de nossa história, placebo heurístico da enrascada societária na qual estamos metidos, valendo-se de categorias sibilinas, de forte apelo ao senso comum, capazes sobretudo de mascarar e dessorar a violência das relações de dominação.
O volume em pauta foi originalmente apresentado como tese de doutorado na Universidade de São Paulo em 1982 e sai agora em livro sem sofrer ajustes. Ainda que se possa avaliar a trabalheira de atualizar um texto quase 20 anos após sua feitura, as linhas de força do argumento teriam muito a ganhar em diálogo com a literatura recente. Talvez a autora pudesse ter fixado como tarefa mínima a redação de um texto introdutório, em que confrontaria seus achados às contribuições dos colegas. A decisão de publicá-lo, tal como foi concebido, é responsável por numerosas repetições, pela abundância de digressões e detalhes documentais não incorporados à análise, pela transcrição pouco seletiva de longos trechos do material coligido, emperrando a leitura, turvando os eixos da interpretação, dificultando a recepção de um precioso trabalho pioneiro.



As Ilusões da Liberdade - A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil
Mariza Corrêa Ed. da Universidade de São Francisco (Tel. 011/7844-1825) 497 págs., R$ 10,00




Sergio Miceli é professor titular de sociologia na USP e autor, entre outros, de "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira - 1920-1940" (Companhia das Letras).



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