São Paulo, Sábado, 08 de Maio de 1999
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O ensaísta e crítico literário Davi Arrigucci Jr. reúne seus ensaios em "Outros Achados e Perdidos"
A graça da miscelânea

AUGUSTO MASSI

Davi Arrigucci Jr. conseguiu escrever um livro antigo que é admiravelmente novo. Os 20 anos que separam a primeira publicação de "Achados e Perdidos" (1979) da sua versão atual, "Outros Achados e Perdidos", fizeram bem ao primeiro. Alguma coisa terão herdado do futuro. Para usar a linguagem dos computadores, ao expandir a memória da obra, Davi aumentou sua capacidade crítica.
À primeira leitura é possível traçar uma linha de continuidade entre os dois livros. Em ambos reencontramos uma endiabrada curiosidade intelectual, a fidelidade do leitor a certos autores e um universo crítico coeso, ainda que sempre disposto a contemplar o fragmentário. O que se nota de imediato é um forte desejo de integrar, criar redes de relações, aderir ao objeto. Talvez, por isso mesmo, manifeste um profundo interesse por tudo que se desgarra, a forma enigmática que fascina e resiste à interpretação.
Uma leitura mais cerrada revela alguns deslocamentos. No primeiro "Achados e Perdidos" os ensaios foram agrupados segundo imagens espaciais: "Retas, Curvas", "Linhas Cruzadas", "Paralelas", "Vão". Nesse segundo, o crítico permitiu maiores privilégios ao tempo: "O Instante e os Ciclos", "A Memória e os Relatos". A diferença sublinha não uma ruptura, mas, certamente, uma mudança de ênfase. Esse deslocamento indica a crescente presença do crítico no interior de seus próprios textos. Passados 20 anos, ele agora é um narrador que desentranha, dos perfis e dos relatos de outras vidas, o enredo da sua própria busca.
"Outros Achados e Perdidos" inventou um território fronteiriço: entre o Brasil e a América Latina, entre ficção e poesia, entre crônica e cinema, entre jornalismo e memória. Nessa entrevista, da qual também participaram Sérgio Micelli, Franklin de Matos e Ricardo Musse, o leitor poderá travar conhecimento com as idéias desse que é um dos maiores críticos do país. Aqueles que foram seus alunos ou já tiveram oportunidade de assistir a algumas de suas conferências, reconhecerão tanto a voz do narrador que ainda sabe dar conselhos quanto o olhar alumbrado e inventivo do crítico. Menino de cabeça branca, adulto encalacrado na infância. Davi Arrigucci continua um grande perseguidor.

Folha - Naquela época, final dos anos 70, o que motivou a publicação de "Achados e Perdidos"?
Davi Arrigucci Jr. -
Publiquei pela primeira vez "Achados e Perdidos", em 1979, depois de um estudo monográfico sobre Julio Cortázar, concluído em 72. Na minha cabeça o novo livro ainda não existia. Foi Victor Knoll quem me sugeriu a reunião dos ensaios e artigos publicados em jornais e revistas e que eu ainda não havia recolhido. Eu vinha do livro sobre Cortázar, que levei anos para fazer e exigiu muito trabalho pela reconstrução do contexto histórico-literário em que ele se inseria. Levei tempo lendo autores hispano-americanos para situar e entender o aparecimento de Cortázar. Eu queria fazer uma tese sobre Borges, mas li "O Bestiário" e escrevi um artigo para o "Suplemento Literário do Estado de São Paulo", dirigido pelo Décio de Almeida Prado.
Eu tinha uma formação sobretudo de literatura francesa e brasileira. Quando comecei a estudar os hispano-americanos, derivei para o Cortázar e tive de montar o quadro literário. Não era claro nem mesmo para a crítica hispano-americana. No Brasil, a idéia que se tinha de literatura hispano-americana era nenhuma. Os livros eram difíceis de encontrar. Era uma experiência muito diferente da nossa justamente por sugerir uma imaginação mais livre da tradição do realismo que costeia a experiência direta ou o documento. Depois, encontrei nos estudos históricos referências importantes sobre isso, principalmente nos trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda que tratam das diferenças da formação histórica da herança portuguesa com relação à espanhola.
A crítica literária dava mais a impressão de acompanhar antes manifestações literárias do que um processo orgânico. Não porque não existisse, mas porque a crítica tinha trabalhado menos e havia menos consistência que na tradição brasileira. Aqui havia a tradição do final do século -José Veríssimo, Sílvio Romero, Araripe Junior- e depois toda a contribuição modernista, a crítica militante dos anos 40 e Antonio Candido, que remontou todo o processo que permitia ler sistematicamente a literatura no Brasil. Era possível ver um quadro orgânico. Com essa perspectiva, os autores já não saíam do nada, uns dependiam dos outros, se liam mutuamente, constituíam uma tradição. Os temas não eram apenas universalistas, mas lidos aqui dentro e modificados segundo um novo ângulo particular, e as formas herdadas da tradição européia se transformavam aqui segundo um traço específico que determina de algum modo o processo de sua constituição. Pensei que devia haver no contexto hispano-americano algo semelhante. O "Escorpião Encalacrado" saiu em 1973, mas as articulações com a literatura de fora continuaram vivas no meu espírito.
Começei a escrever ensaios avulsos, mas ainda ligados às minhas preocupações e aos problemas que havia percebido. Victor Knoll propôs, então, o livro. E ele em grande parte nasceu dessa junção de coisas diversas, heranças do que eu tinha estudado da crítica hispano-americana e da literatura brasileira, sobre a qual eu estava também começando a escrever, mas, da qual eu ainda não havia me ocupado como desejava.
No título há algo de lúdico e irônico que resgata essa imaginação mais à solta, em parte pela influência do surrealismo que estudara bastante para entender seu impacto maior na América hispânica que no Brasil. Reuni os textos para ver a cara que aquilo tinha junto. De um lado, havia uma preocupação de reconstrução história como um aspecto do estudo sobre o Cortázar, mas de outro uma vontade poderosa de responder criticamente ao presente, de que a própria obra de Cortázar fazia parte. Eu havia me empapado da crítica militante brasileira: Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido. Em outras palavras, tentei combinar um pólo de reconstrução histórica e estudo orgânico e outro, de resposta imediata ao que estava acontecendo no Brasil.
Folha - Essa mesma dinâmica se repetiu com relação aos seus trabalhos posteriores. Primeiro, apareceu um novo livro de ensaios, "Enigma e Comentário" (1987), depois veio "Humildade, Paixão e Morte" (1990), estudo monográfico sobre Manuel Bandeira...
Arrigucci Jr. -
Eu sempre tive a vontade de fazer as duas coisas. Nesse caso, você é obrigado a responder em ritmos diversos, um ritmo mais amplo e um ritmo mais curto de intervenção imediata. Deste ângulo, "Achados e Perdidos" era um começo de conversa. Mas, embora a montagem do livro fosse uma resposta circunstancial à literatura dada, na verdade correspondia a coisas mais profundas que eu ainda não enxergava claramente. Hoje, ao remontar o livro, isso já me aparece de forma diversa: o espírito lúdico e a visada construtiva estão combinados, assim como o desejo de intervenção direta e as questões da experiência histórica.
Como todos os nossos atos, a leitura tem uma história, ela é um processo de compreensão. Quando decidi juntar os trabalhos de miscelânea, estava na verdade organizando a história da minha leitura e de um processo de compreensão. Cada uma dessas intervenções, aparentemente circunstanciais, reproduzem o desejo de um leitor e como ele se aproximou de muitos autores. Certamente, não escrevi sobre todos aqueles que gostaria -não escrevi sobre Drummond, embora tenha dado tantas aulas sobre a poesia dele-, infelizmente não damos conta de tudo. Mas os que estão ausentes muitas vezes acabam se agrupando em torno dos núcleos tratados e espero dar conta deles mais adiante.
Neste novo "Achados e Perdidos" resolvi juntar, de forma espelhada, o primeiro livro e os últimos dez anos de intervenções ligeiras. O conjunto fornece a história de uma leitura, revela as várias tentativas de compreensão que ora enveredam por uma direção, ora tomam outro rumo. Hoje posso historiar cada uma delas: Borges, Bandeira, Murilo Rubião. O "Prefácio Esquisito", por exemplo, marcava uma exposição que já estava implícita na abordagem do Cortázar. O "Escorpião" também era um reflexão sobre a crítica e seus limites, na direção que escolhi: a hermenêutica. Que saiu em parte da estilística, um tanto das relações com o new criticism e o marxismo, sobretudo o marxismo heterodoxo da escola de Frankfurt, que foram as correntes que mais pesaram na minha formação. Essas idéias estavam presentes em Cortázar, havia muito Lukács, Benjamin, Adorno. Havia também Leo Spitzer, Erich Auerbach, Dámaso Alonso. No conjunto desses estudos mais breves estava, talvez de forma mais explícita, um itinerário crítico. Tanto nas repostas imediatas quanto na paixão da construção histórica. Sobretudo certas questões teóricas que foram enformando o percurso, especialmente a constituição de uma forma mesclada, dependente de temporalidades diversas que procurei estudar em sua particularidade concreta. Certamente essas idéias não são originais, mas dependem de uma visão pessoal, nascida de um sentimento também quanto à realidade brasileira e à hispano-americana e de como elas responderam aos descompassos da nossa modernização.
Tudo isso em parte é muito intuitivo, pois nasce da percepção formal do conjunto de signos, da forma significativa que é a obra literária que está ali, mas também da tentativa de reconstruir um quadro amplo, ainda que eu sinta um certo pudor de explicitar demais as questões gerais. Essa é em parte uma herança da crítica que li e mais aprecio. Quer dizer, respondo a uma forma enigmática sobre a qual não quero dar uma resposta cabal. Levo até um certo ponto para mostrar que a resposta cabal, para mim, é impossível. Toco em limites, com os quais no entanto me relaciono, ao procurar equacionar o processo de constituição das formas. Como aquilo se compôs?
Espelhado contra o primeiro livro, o segundo, com os dez últimos anos de minha militância crítica, se contrapõe em parte ao início, criando um quadro das minhas leituras e das mudanças de meu esforço de compreensão. Não há texto algum explicitando isso, mas é disso que se trata. Nesse quadro das leituras estão os dois pólos que me atraem, a aderência ao concreto e a mais desbragada imaginação.
É essa tensão que me atrai. Em "Enigma e Comentário", procurei mostrar, por exemplo, como Borges está próximo da experiência histórica, quando se imagina que esteja desgarrado do universo do mito, e como o Gabeira, que pensa estar reproduzindo o real, na verdade, está imerso no imaginário romanesco.
Os ensaios respondem a assuntos que são misturados. A graça da miscelânea é aqui fundamental, sugerindo a possibilidade de uma leitura arejada e livre. Borges sempre me atraiu muito, por esse lado, juntando desde o início autores e coisas aparentemente disparatados, mas que estão dados no quadro da sua leitura e ali fazem total sentido.
Espero ter aprendido um pouco com Auerbach. Um de seus pressupostos é de que a análise microscópica de textos pode conduzir a quadros gerais que nem sempre precisam ser explicitados para que estejam presentes na perspectiva da abordagem. Em "Mimesis" não há uma definição geral de realismo, conceito central ao livro, mas quem o ler saberá o que é realismo, em que consiste concretamente e quais suas implicações nas representações literárias do Ocidente. Não é preciso que ele faça um discurso explícito sobre isso, porque a análise particular dos textos, feita com todo o rigor e a arte que se exige dessa prática da leitura detida e reveladora, é capaz de remeter da parte ao todo, da mesma forma que o todo se mostra na parte. Como tantas vezes na literatura moderna, uma visão sintética do mundo pode estar posta em pequenos episódios aparentemente insignificantes da vida cotidiana, assim também a análise cerrada de um fragmento pode levar a descobertas de alcance geral.
Essas leituras formam um mosaico, que compõe um quadro de fundo e cuja diversidade revela um movimento. Estou interessado nesse movimento e em suas cristalizações. E creio que isso fica bastante claro na segunda parte do livro, dedicada aos "outros" achados e perdidos. Tenho sido atraído pelo que tenho chamado hoje de sedimentação formal de uma experiência histórica. Sobretudo nas suas formas oblíquas, quando a imaginação está aparentemente mais à solta. Aliás, quanto mais à solta, a imaginação assume uma forma convencional, como nos mitos. O realismo é um esforço para dar terra à imaginação, de torná-la um conhecimento de particularidades históricas. Solta ao deus-dará, ao sabor do livre desejo, a imaginação se cristaliza no mito. As tensões entre o mito e a particularidade histórica são o que me atrai. Esse é o ponto. Esse livro é uma tentativa pela junção de textos variados e entre si espelhados, de dar o processo de leitura dessas tensões.
Folha - De alguma forma a configuração de "Achados e Perdidos" remete aos trabalhos mais experimentais do Cortázar. Penso que, ainda hoje, o livro guarda um aspecto selvagem característico da modernidade. Você concorda?
Arriguci -
Sou muito atraído pela contingência do moderno. É como uma aderência da sensibilidade à beleza do contingente, do que é fugaz e morre. Flora Süssekind, ao escrever sobre o meu trabalho, falou do sentimento da falta. Eu sou muito ligado nas formas da elegia, à meditação sobre as coisas que não dão certo, tenho uma atração pela forma acabada que é ferida por algum grau de imperfeição. Num certo sentido sou muito perfeccionista, busco muito o acabamento, mas, ao mesmo tempo, desconfio dele. Gosto das marcas da contingência, como indícios de revelação. E do que se perde. Para nós, que somos resultado de uma modernização atrasada, a modernização traz um ressaibo de melancolia; me sinto atraído pelo miolo dessa melancolia. Ela está em tudo, nas coisas que se desgarram, nas coisas que não dão certo; é quase uma marca brasileira ou talvez latino-americana, uma contingência que, na origem do moderno, quebrou a idéia da organização equilibrada e clássica.
Folha - Isso fica evidente na análise que você fez do "Cacto" de Manuel Bandeira, porque ali há essa idéia de algo "belo" e, ao mesmo tempo, "áspero, intratável".
Arrigucci -
Exatamente, esse elemento meio selvagem que você mencionou, do primitivo que irrompe, é a marca da nossa diferença. Aqui a norma burguesa nunca se assentou de todo. O que se perde nessas frinchas e buracos, os nossos escritores captaram de mil formas. No Cortázar há um sentimento agudo disso. Os meus livros tentaram refletir sobre essa questão.
Naquela época era uma intuição que eu devia explorar a fundo e que ainda não estava de todo equacionada. Por isso brinco no "Prólogo", quando friso que os novos ensaios que ora se soldam aos primeiros dão continuidade às preocupações teórico-críticas anteriores -"alguma coisa terão aprendido com o passado". Hoje tenho mais consciência disso. É a forma como meu ensaio responde a uma experiência que é nossa ou pelo menos muito mais ampla.
Há muito de acaso nisso. Grande parte da literatura moderna responde a objetos que não sabe reconhecer. Por exemplo, em "Poemas por Acaso da Prosa de Manuel Bandeira", num primeiro momento fiz uma glosa do método dele, estava brincando com uma idéia central que só mais tarde, em "Humildade, Paixão e Morte", pude estudar melhor e explicar como essa operação de "desentranhar" resultou numa atitude estética de enormes implicações na construção da obra poética. Naquela época, no contexto do estruturalismo, a paródia adquiriu uma grande importância. Ela entrou como uma forma do moderno incorporar determinados materiais que eram necessários para a construção, eram materiais do moderno. Essas idéias estavam no ar. Certos textos do Tynianov, um dos formalistas russos, como aquele sobre as relações entre Dostoiévski e Gógol, iam nessa direção. A renovação da crítica sobre o Oswald de Andrade decerto dependeu muito da descrição desse procedimento e do reconhecimento de seu papel nas mudanças de obras e gêneros. Ela é uma forma de se distanciar de um modelo, aproximando-se dele; parodiar obras ou gêneros como um meio de transformá-los.
Em literatura sempre se está às voltas com a idéia de imitação; o velho e sempre presente conceito de mimesis. Todo escritor aprende imitando o outro. A tarefa de se aproximar ou de se afastar de um modelo pode se dar de formas diferentes, mas a imitação é sempre o passo inicial da aprendizagem. Benjamin observou que talvez não haja função superior do homem que não seja condicionada de forma decisiva pelo poder de imitação. Os críticos também aprendem assim. Eu me lembro do Antonio Candido dizendo que copiava textos de Augusto Meyer, transcrevendo trechos dos ensaios do crítico gaúcho para saber como ele produzia aquela prosa extraordinária. Eu aprendi assim também: imitando meus mestres. Não há vergonha nenhuma nisso. Imita-se, para depois se afastar. Esse é o processo de aprendizagem. E também o processo interno da literatura.
Esse procedimento é largamente intuitivo, primeiro você intui, depois você explica. A vontade é juntar para ver que cara tem. Por exemplo, com relação ao "Prefácio Esquisito" -que é uma brincadeira com o "Prefácio Interessantíssimo" do Mário de Andrade-, qual era a esquisitice? Tentar mostrar um processo que estava se formando e que eu, apesar de intuir, não conhecia de todo; sabia parte dos buracos.
Folha - Outro aspecto que parece ser decisivo, tanto para os temas tratados quanto para a própria estruturação do livro, não é a idéia de montagem?
Arrigucci Jr. -
Essa questão é importante e ainda não a explicitei. Sempre fui atraído pela montagem. E ela vem através do cinema. Sempre fui um cinéfilo. Eu adoro cinema. Ainda não disse tudo sobre esse assunto: a idéia da montagem, o aproveitamento dos dejetos, dos materiais informes. Aliás no meu próximo livro "Sertão, Oeste, Pampa" vou falar de John Ford, de Guimarães Rosa e de Borges. É um livro sobre o processo de modernização na região de fronteira.
Mas a idéia de montagem era central para o livro do Cortázar. Nesse livro pesou muito para mim a teoria de Eisenstein sobre a montagem, exposta em vários de seus ensaios. Também pesou a leitura de um crítico, hoje pouco nomeado, Arnold Hauser, um crítico de herança marxista, com sensibilidade para a análise formal das obras e muito atento às questões construtivas decorrentes da incorporação da heterogeneidade do real pela literatura e pelas artes sob o signo do cinema.
Folha - Você tem enfatizado o princípio formal, o mosaico, a paródia e a montagem. Mas na sua postura crítica parece pesar bastante a configuração de relações históricas. Como o discurso histórico entra no livro?
Arrigucci Jr. -
Tudo isso deriva de coisas muito arraigadas na minha forma de lidar com a literatura. Eu trato de formas particulares e quase nunca delineio os quadros gerais, a que no entanto podem conduzir as análises. Não sou propriamente um crítico da cultura, caso do Roberto Schwarz, o mais notável que surgiu por aqui. Ele tende a construir a explicação pelos processos gerais, ainda que seja obrigado a explicar por meio da análise de formas particulares. Nisso, me sinto mais próximo da paixão do concreto que tanto marcou Antonio Candido. Certamente, eu nunca tive a atração pela história literária que também o caracteriza. Eu sou um ensaísta que dá respostas abertas e incompletas às obras e seus enigmas, o que mais me fala à imaginação.
Folha - O livro traz duas entrevistas expressivas. Na primeira, quase uma conversa, você disfarçadamente arma um quadro histórico sobre o romance brasileiro. Na segunda, por intermédio de um olhar retrospectivo, você refaz o seu itinerário crítico...
Arrigucci Jr. -
A primeira, sobre o romance brasileiro dos anos 70, é justamente uma resposta incompleta à uma conjunção de fatos que permitiria montar um quadro da ficção brasileira da época. O jornal foi então um fator condicionante muito forte para a ficção: os modos e os procedimentos formais que o jornal oferecia à literatura, o interesse em singularidades, as formas de ocultar a realidade, a sugestão alegórica, tudo isso parecia interessar vivamente os romancistas. Pensei que seria um caminho para compreender os principais problemas da ficção daquele tempo. No fundo, tratava-se ainda do desejo de fazer crítica militante numa época em que ela já estava fora de moda. Penso que uma das funções fundamentais da crítica é reconhecer situações. Toda situação é um quadro de tensões e contradições. De alguma forma, "Jornal, Realismo, Alegoria - O Romance Brasileiro Recente" é uma resposta de crítico militante às contradições do tempo e aos modos de dar forma a ele ligados.
A segunda entrevista já privilegia o retrospecto, o itinerário crítico, o quadro de geração. Estou sempre debruçado sobre a memória. Quase tudo que escrevo tem relação com a memória. Com a memória e os relatos. Veja, neste livro ainda está presente a questão de combinar dois ritmos, há respostas curtas e imediatas e ritmos de hausto longo. "Movimentos de Um Leitor", sobre Antonio Candido, "A Noite de Cruz e Sousa" e "Agora Tudo É História", sobre José Paulo Paes, são ensaios abrangentes, este último é uma tentativa de dar um quadro da vida inteira de um poeta e o que significou no interior dessa vida a poesia.
Folha - Como os autores responderam aos ensaios?
Arrigucci Jr. -
Muitos desses ensaios me tornaram amigo dos autores das obras comentadas. Quando saiu o "Achados e Perdidos", mandei um exemplar para o Carlos Drummond de Andrade, que, ao ler "Onde Andará o Velho Braga?", passou o exemplar dele para o Rubem Braga ler. Eu mesmo não mandei para o Rubem Braga. Ele gostou tanto que acabou me escrevendo uma carta. Aí começou uma relação de amizade, que durou até a morte dele.
Folha - Depois desse convívio você teria condições de escrever um outro ensaio sobre ele...
Arrigucci Jr. -
Mas eu escrevei. Escrevi, a pedido dele, para uma antologia das "Melhores Crônicas de Rubem Braga", publicada pela editora Global. Este ensaio desdobrado, "Braga de Novo por Aqui" também figura em "Enigma e Comentário".
No caso do Antonio Callado a história é mais curiosa. Quando saiu o "Reflexos do Baile", Alberto Dines escreveu um artigo naquela coluna, "Jornal dos Jornais" -creio que era o nome-, dizendo que não havia crítica brasileira, porque se houvesse alguém teria escrito sobre o livro do Callado. Aí eu escrevi esse ensaio, "O Baile das Trevas e das Águas", para responder a ele. Quando mandei o texto ele já tinha deixado aquele emprego. No fim, como nunca tive relação com ele, acabei não sabendo se ele recebeu ou não. Depois o Gasparian tentou publicar o texto no jornal "Opinião". Na primeira tentativa a censura vetou, um mês depois, ele tentou de novo e saiu. Callado falava, brincando, para mim: "Você é o crítico do meu coração". E acabou fazendo uma dedicatória com essa expressão. Ele se sentiu lido, o que nem sempre ocorre com nossos escritores, que podem permanecer por muitos anos, mesmo em caso de valor evidente, sem resposta. Vai se rotinizando essa falta de resposta em nosso meio. Não há debate intelectual. Faltam revistas e suplementos. A literatura viva parece destinada a um poço de silêncio e esquecimento.
Se eu tivesse forças teria escrito sobre muitas outras pessoas. Os que saíram foram os que eu acertei a mão e pude fazer; muitas vezes tentei e não consegui. Nem sempre dá certo. Mas a verdade é que eu adoro responder de imediato. Agora, por exemplo, poderia escrever sobre a situação atual da lírica no Brasil, ou melhor, sobre alguns poetas. Eu tenho uma opinião sobre isso. Mas estou empenhado em outros trabalhos. Dessa perspectiva, o título também é alusivo ao trabalho crítico, porque muitos ensaios resultaram em "Achados", com o mesmo sentido de "hallazgos" em espanhol. Outros se perderam num buraco negro e, mesmo alguns que eu julguei ter achado, também tem pontos perdidos.
Na arte, o mais interessante nem sempre é o perfeito. Só para dar um exemplo, o acabamento fez mal a Mário de Andrade. É o que eu tento dizer em "O Que É Mais Fundo". O inacabado era o terreno dele. Toda vez em que ele apostou nessa vertente deu certo. Talvez, por isso, os "Contos de Belazarte" sejam melhores que os "Contos Novos", que, no entanto, são bem mais elaborados. Essa idéia vai muito contra mim, que sou um perfeccionista, mas justamente, por esta razão que o título me pareceu adequado, aponta para as tensões da minha personalidade crítica.
Folha - Comente mais detalhadamente o seu diálogo crítico com o Antonio Callado, que, a exemplo de Rubem Braga, foi um autor ao qual você sempre retornou.
Arrigucci Jr. -
A história das minhas leituras se manifesta sempre por intermédio de autores recorrentes, alguns dos maiores, como Borges, Cortázar, Bandeira, e outros que quase chegaram lá, Murilo Rubião e Antonio Callado. Callado é um caso curioso. Um dos problemas para mim foi entender como um homem tão fino, com sólida formação e tanto conhecimento sobre a história do Brasil, não conseguiu realizar uma obra ficcional à altura do que almejava. O romancista, ao contrário do poeta lírico, não responde ao instantâneo, mas a grandes ciclos, depende de uma construção histórica. Callado era um homem armado para isso e com um notável domínio da linguagem. Ele tentou, em diferentes momentos, o esforço de realismo crítico em que se empenhava para construir uma sólida obra ficcional, coerente e desdobrada em vários planos, capaz de recuperar várias dimensões da experiência histórica brasileira. Na condição de repórter teve contanto com a realidade do Brasil contemporâneo; desde mocinho viajou pelo país, andou pelo sertão. Além disso, era um homem de larga experiência internacional, acompanhou a Segunda Grande Guerra na Europa e viveu durante anos no exterior. Fez algumas das mais notáveis reportagens sobre o Brasil. No primeiro ensaio estudei "Reflexos do Baile", que julgo a sua obra mais perfeita, embora não seja a melhor. Acho "Quarup" mais importante que "Reflexos do Baile", um livro mais poderoso e ambicioso, apesar das muitas falhas. O acabamento dos "Reflexos" era notável; soube penetrar pelas frestas numa realidade aparentemente impenetrável, construindo uma imagem alegórica e irônica dos escaninhos da repressão e da tortura e das agonias de quem lutou na luta armada contra a ditadura militar.
Na segunda abordagem, tratei do "Esqueleto na Lagoa Verde", que sempre considerei uma obra-prima, como tantas vezes comentei com Alexandre Eulálio, que tinha a mesma opinião. Um pouco antes da morte de Callado, voltei àquela velha reportagem levado por uma entrevista muito triste que ele deu ao Matinas Suzuki. Falava com amargura de como o Brasil não tinha dado certo e de como a obra dele também não tinha dado certo. Voltei a me debruçar sobre aquele texto da sua mocidade para responder a ele, dizendo exatamente o contrário, que ele tinha feito uma coisa notável e como o miolo dessa obra estava também no centro de toda sua obra de ficção posterior e de certo modo também o centro de sua busca pelo coração do Brasil, para onde caminha a narrativa do "Quarup". Centro buscado com todas as forças, mas nunca achado, como nessa reportagem insólita, a que serve de móvel a ossada de um coronel inglês desaparecido na mata brasileira. Nela falta precisamente o objeto da busca, para sempre perdido.
A missão da crítica não é dizer se isso é bom ou ruim. É participar da visão do outro. Pratico um tipo de hermenêutica que acompanha o olhar do outro, uma hermenêutica da identificação. Toda a obra do Callado é de grande interesse, trata-se de um projeto coerente, de um escritor sério, que nunca se entregou ao mercado. Um crítico não pode deixar de responder a um homem desses.
Folha - Nessa segunda safra de "Achados e Perdidos", a poesia -algumas vezes por vias oblíquas, como no caso do livro de memórias de Ferreira Gullar- parece ter sido mais contemplada. Você poderia comentar rapidamente alguns destes textos?
Arrigucci Jr. -
Nunca havia escrito sobre Ferreira Gullar, a quem considero um grande poeta, por questões meramente circunstanciais. Escrevi "Tudo É Exílio" depois de ter lido seu livro de memórias, "Rabo de Foguete". Foi o modo que encontrei de comentar a poesia deslocada que está entranhada de forma notável nesse depoimento tão importante, que pode ser lido como um romance. Nele surge um narrador que é a outra face do poeta. De um lado, ele responde ao destino histórico vivido por nós e cujo enredo reproduz em boa parte a história da América Latina, no século 20. De outro, explica muito da sua poesia e a gênese do "Poema Sujo". A experiência individual do poeta está atravessada pelos acontecimentos históricos. É outro autor que revela uma forte aderência ao real.
Já o Dante Milano, no sentido eliotiano, é um poeta menor. O Antonio Candido, a certa altura me disse que faltava força, eu não acho que falte. Escrevi "A Extinta Música" por ocasião de sua morte. Nesse momento achei que era preciso recuperar o Dante Milano para a poesia brasileira. Trata-se de uma poesia reflexiva, nos termos de Mário de Andrade, "pesamenteada". E de grande importância para a nossa tradição lírica.
No caso do Cruz e Souza, até hoje um imbróglio difícil de compreender, queria, por meio de um poema notável e antecipatório, compreender a sua poesia. No Cruz e Souza há uma tentativa de dizer num imaginário de sonho a experiência do terrível destino de um poeta negro e pobre no Brasil. A poesia dele é uma teoria da alucinação, tem uma poética da alucinação, no sentido preciso do termo.
No caso do José Paulo Paes também foi para mim uma descoberta. José Paulo é um intelectual finíssimo, um exemplo acabado do homem de letras, com uma formação absolutamente informal. Um homem que quis ser poeta e usou a poesia para dizer a que veio no mundo. Ele foi fiel a isso a vida inteira. Com pequenos poemas ele contou a curva de um homem que vai responder no instantâneo o que é o mundo para ele. É curioso, porque traduz a experiência, muito comum no Brasil, de um escritor provinciano. É a história do Lima Barreto, do Cruz e Souza, a história de grandes poetas que ficaram à margem e que de repente deram certo. São construções estéticas a partir de dificuldades enormes. Mas, num certo sentido, eles são muito "Achados e Perdidos".


Augusto Massi é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Negativo" (Companhia das Letras).



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