São Paulo, Sábado, 08 de Maio de 1999
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Quarenta minutos antes do nada

MILTON MEIRA DO NASCIMENTO

O ano de 1999 começou bem para o futebol carioca. As multidões voltaram aos estádios e, com este "Fla x Flu", podemos recuperar a memória de um clássico que é a cara do Rio de Janeiro e, ousaria dizer, o paradigma do futebol brasileiro. Para quem gosta das belas histórias do futebol, nada como voltar aos tempos heróicos da fundação, da época do futebol amador, das façanhas dos nossos pais fundadores do "violento sport bretão".
Os autores selecionaram 55 partidas entre os dois clubes, dentre as 325 disputadas, desde 7 de julho de 1912 até 22 de março de 1998. Antes de passarmos por alguns desses encontros, vejamos a história da fundação do Fla e do Flu. E logo aqui percebemos um desses paradoxos insolúveis, incompreensíveis para o vulgo, e que só cabe na lógica dos aficionados, dos que conhecem a matéria. Pois bem, o Fla nasceu ou não do Flu?
Sérgio Noronha, logo no prefácio, adverte o leitor: "Você sabia que esta história de o Flamengo ser filho do Fluminense é uma bela mentira?". Noronha está apenas reafirmando a opinião dos autores, que começam o primeiro capítulo assim: "Para início de conversa, é necessário destacar que o Flamengo não é, como alimenta o folclore, "filho do Fluminense'". E em seguida explicam que o Clube de Regatas do Flamengo foi fundado em novembro de 1895, sem o departamento de futebol, e o Fluminense em julho de 1902. E, mais adiante, relatam como foi criado o time de futebol do Flamengo, isto é, de uma dissidência do Fluminense. Em 1911, nove jogadores da equipe titular do Flu, descontentes com a comissão técnica, resolveram procurar um clube que ainda não tivesse um departamento de futebol. Fizeram a proposta para a direção do Clube de Regatas do Flamengo e logo este teria o time de futebol mais forte do Rio de Janeiro.
Para Nelson Rodrigues, só mesmo o Sobrenatural de Almeida para entender por que ninguém aceita o "óbvio ululante". Eu tenho um palpite. Não poderia ser de outra forma, pois Clóvis Martins é tricolor e Roberto Assaf rubro-nebro. Foi sempre assim, desde os tempos imemoriais, porque o Fla-Flu, segundo o tricolor mais ilustre, começou "40 minutos antes do Nada". A partir de então, como seria possível aceitar o óbvio? Impedimento? O juiz está roubando? Beques de fazenda, pernas-de-pau? Que nada, o meu tricolor nunca teve nada disso. Teve o Cafuringa, alegria do povo das Laranjeiras, tão criticado por driblar, fazer mil firulas e não fazer gols. Mas como não admirá-lo com seus dribles desconcertantes? O gol, ora, era "apenas um detalhe". Cafu não se preocupava com ninharias. O Fla de hoje tem Romário, especialista nos detalhes. Não preciso dizer mais nada.
Nos tempos heróicos, quando a equipe técnica era chamada de "ground comettee" e o juiz de "referee", certa vez, a 25 de junho de 1922, numa partida que não chegou ao final, porque a torcida tricolor ameaçou invadir o estádio, exigindo o gol legítimo anulado pelo juiz, aconteceu o inesperado. O juiz trancou-se no vestiário e redigiu a súmula nos seguintes termos: "Enganei-me, ao registrar aquela falta. Fui ladrão, e quase feito em pedaços, o que não se deu porque ajudaram-me alguns amigos. Não me julguem um venal e capaz de procedimentos menos probos. Os bons juízes, os diplomados, se enganam, quanto mais eu, que não sou oficial, e que só aceitei dirigir o encontro para atender aos reiterados pedidos dos dois grêmios".
Em 1916, em General Severiano, a bola foi parar na cobertura da arquibancada e só conseguiram tirá-la de lá 20 minutos depois. O jornal "O Correio da Manhã", no dia seguinte, foi implacável: "Deante da demora, os assistentes se impacientaram e emprehenderam uma ensurdecedora pateada, não aos teams, não ao referee, mas a essa agremiação que promove os jogos e não se lembra de providenciar a mais comesinha das exigências: as bolas para o jogo".

O toque do baixinho
Em outra ocasião, em 1941, quando o Fluminense precisava do empate para ser campeão, na Gávea, os tricolores gastaram os últimos minutos de jogo mandando a bola para a lagoa Rodrigo de Freitas, para desespero dos flamenguistas, que gritavam aos remadores para buscarem as bolas em seus barcos.
O que mais me impressionou neste "Fla x Flu" e, por isso mesmo, me levou a render homenagem aos dois autores, foi a lembrança da vitória de 1 x 0 do Fla, de 16 de setembro de 1956, no Maracanã. A reprodução da foto com Pinheiro correndo atrás do pequenino Babá, de 1m60, que deu um leve toque por cima de Castilho, trouxe-me a lembrança de como me tornei tricolor. A magia do toque do baixinho me impressionara tanto que parecia algo do outro mundo. Era como se todos nós moleques daquela época pudéssemos fazer o mesmo. O paradoxo, desta vez, vinha manifesto na admiração pelo toque genial e na pena de ver órfãos os dois grandalhões do Flu, Pinheiro e Castilho, este uma verdadeira lenda na história do tricolor e do futebol brasileiro. Sem contar que, nesse mesmo jogo, Pinheiro havia chutado um pênalti na trave. Por que não me tornei rubro-negro, então? Talvez porque eu naquela época já estivesse convencido de que o Fla era filho do Flu e que o gol de Babá não passava de uma molecagem. Mas essa é uma questão para o Sobrenatural resolver.
Além dos 55 jogos analisados, os autores nos apresentam informações sobre todos os Fla-Flus, com a escalação de cada time, o juiz, o público, o local, os gols, além da relação dos 1.279 jogadores que participaram dos jogos. Querem saber a escalação da "máquina" tricolor de Carlos Alberto e Rivelino, de 1976, ou então do Fla de Domingos da Guia e Zizinho, de 42? Ou ainda, por que em março de 1976 o "Jornal dos Sports" estampou a manchete "Zicovardia"? É só ir ao Fla x Flu.



Fla x Flu - O Jogo do Século
Roberto Assaf e Clóvis Martins Ed. Letras e Expressões (Tel. 021/259-6012) 254 págs., R$ 20,00




Milton Meira do Nascimento é professor de filosofia política no departamento de filosofia da USP.



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