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O todo inexistente
Estudo mostra como gêneros literários desvendam estrutura social
Máquina de Gêneros
Alcir Pécora
Edusp
(Tel. 0/xx/11/3818-4149)
246 págs., R$ 25,00
RAUL ANTELO
Tornou-se hábito abordar a literatura sob as três espécies que lhe
atribuiu o século 19, isto é, o ajustamento recíproco e exaustivo de
linguagem, espaço e nação. O que
acontece, porém, quando, na modernidade que decai, esses rótulos
não mais regulam o fenômeno literário?
Em "Máquina de Gêneros - Novamente Descoberta e Aplicada a
Castiglione, Della Casa, Nóbrega,
Camões, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e
Bocage", a resposta de Alcir Pécora é alegórica. O autor construiu
uma máquina de gêneros que ilumina a trajetória do literário na
ausência do ideal nacional, e bem
poderíamos dizer que sua reflexão a respeito das correspondências jesuíticas, das máximas moralistas do século 17 ou da tragédia marítima de Gonzaga é também uma reflexão sobre a sociedade contemporânea.
Assim, o foco está prioritariamente lançado sobre o jogo das
normas estéticas. São elas que
desvendam, mais do que a dinâmica, a própria estrutura da vida
social. Não exprimem conteúdos
de verdade, ideais ou objetivos
-apontam regimes de produção
de enunciados. Nesse sentido, a
modernidade do método consiste
em seu caráter indicial. O gênero é
tão-somente isto aí: uma determinação formal, mas, simultaneamente, cultural do sentido.
Outros críticos
O trabalho de Pécora guarda curiosa relação com a reflexão de
outros críticos latino-americanos
que, partindo igualmente da tradição formalista, nos fornecem a
alternativa de um conjunto vazio,
o gênero, definido como dispositivo ou máquina produtora de
significados.
Tomemos, a título de exemplo,
o caso de Josefina Ludmer. Seu
ponto de partida é o ensaio "Tretas do Fraco", que se pode ler, como "Tricks of the Weak", na coletânea de Stephanie Merrim, "Feminist Perspectives on Sor Juana
Ines de la Cruz" (Wayne State
University Press, 1999); a radicalização teórica dessas hipóteses pode ser vista, por sua vez, em "O
Gênero Gauchesco" (Sudamericana, Buenos Aires, 1988).
O alvo da reflexão de Ludmer é
o gênero gauchesco. Atribui a esse
gênero uma forma ideológica que
sutilmente articula os planos da
expressão estética e do conteúdo
ético. A tese, em seu caso, é radical, mas bem poderia ser assinada
por Pécora: em um momento de
vacância ou inexistência do Estado, o próprio gênero é a pré-condição para a construção de identificações simbólicas.
Essa vacância ou inexistência da
máquina estatal é tanto histórica
(porque o liberalismo ainda não
produziu uma aliança hegemônica) quanto geográfica (o gênero
emerge nos próprios confins territoriais da nação). A tese do gênero como máquina cultural critica assim as teorias modernizadoras, replicantes da região, tanto na
perspectiva integrada, que vê o regionalismo como efeito de uma
política central de "regere fines",
quanto na perspectiva apocalíptica, que ouve no regionalismo
uma dicção feliz, antinacionalista
ou simplesmente pré-nacionalista.
De forma semelhante, Pécora
trabalha com formas verticais, anteriores à nação, ou que se explicam fundamentalmente por seu
caráter transversal ou transnacional (cartas, diálogos, sermões, sátiras), mas que, mesmo assim, nos
persuadem de que o gênero é um
dispositivo disciplinador.
A partir dessas mesmas premissas, Ludmer isolou dois tons fundamentais que constituíram o gênero gauchesco e, consequentemente, contaminaram a máquina
do gênero narrativo nacional. São
eles a lamentação e o desafio. A lamentação volta-se para as promessas perdidas. O desafio para
as promessas por vir. A lamentação é melancólica; o desafio, utópico.
O desafio utópico
De maneira surpreendentemente análoga, nos ensaios de Alcir, a melancolia sustenta uma reflexão da distância e da diferença,
que foca os costumes locais e contemporâneos por meio do filtro
da tradição metropolitana. Entretanto, o desafio utópico transparece quando, como no caso de
Manuel da Nóbrega, a construção
do todo inexistente -o Brasil-
dá-se mediante o recurso dialógico.
Em consequência de um repentismo rapsódico, o Brasil torna-se
assim efeito, e não mais causa ou
determinação, de um jogo de linguagem. O diálogo, nesse caso, é
"gênero particularmente adequado para a defesa de uma posição,
entre outras possíveis, formuladas a respeito de um tema potencialmente polêmico, dado numa
situação prática, cuja resolução
satisfatória implica a consideração progressiva de aspectos universais desconhecidos em graus
diversos pelas suas personagens".
Um caso emblemático de como
enunciações singulares operam
como máquinas transversais disciplinadoras aparece no caso das
cartas. Da análise da correspondência jesuítica, Pécora conclui
que "as cartas estão longe de ser
efeito espontâneo das novas experiências dos padres em regiões
desconhecidas dos europeus. A
preceptiva epistolar inaciana, amparada na longa e profícua reflexão medieval e renascentista do
gênero, de alguma forma previa
ou esboçava retoricamente os
contornos básicos de personagens, ações e caracteres que jamais haviam visto antes".
A descrição parece aludir não só
às práticas jesuíticas, mas aos desafios pós-coloniais, na agonia do
modelo modernista. De fato, e em
sintonia com o declínio da fé surrealista pelo "inconnu", que se
traduz na descoberta espontânea
de novas experiências em regiões
pouco ou mal conhecidas dos europeus, a figura de Inácio e seus
discípulos latino-americanos
atraíram poderosamente alguns
surrealistas-etnógrafos europeus.
É possível, sem cometer maior
violência, aproximar a correspondência jesuítica das estratégias
dialógicas de muitos outros pensadores contemporâneos. Penso,
por exemplo, em alguém igualmente egresso da dissidência acefálica, Jacques Lacan. Como no
caso dos diálogos e sermões, a
transmissão se dá nele por meio
de seminários e da segmentação
de sociedades contratuais onde
não mais opera a lei universal do
sistema, porém a singularidade
discursivamente auto-implicada.
Penso ainda em Peter Sloterdijk, que combate a estabilidade
hegeliana do sistema, ainda presente na dialética do esclarecimento, apontando, em compensação, na direção da filosofia como um diálogo disponível e incessante, uma correspondência
virtual em que sempre se desconhece o real destinatário de uma
dicção. A conclusão, em todo o
caso, é clara: volta-se a um universalismo antiuniversalista e a um
modernismo antimodernista.
Consumo ou dilapidação
Creio, enfim, que a posição de
Alcir Pécora pauta-se por esses
mesmos caminhos de saída da fenomenologia material. De que
modo isso se verifica? É necessário constatar, nesse sentido, que
formas de escrita biográfica, como as cartas, adotam o valor de
uso ou "at face value", como as
chamou Sylvia Molloy, o que é
uma forma de desgaste ou excesso em que o valor não se fixa mais
por conservação, mas por consumo ou dilapidação. As formas valem quanto pesam.
No plano de uma economia cultural, o diálogo ou a correspondência se constituem a partir de
técnicas que Marcel Mauss chamaria de corporais, técnicas que
exigem repetição ou, ao menos,
regularidade. Esse fenômeno cria,
portanto, um paradoxo constitutivo da nação, do assim chamado
sistema literário, que por intermédio dessas cartas ou diálogos
se encontra em formação: até
mesmo as práticas mais transgressivas, como os hábitos supranacionais e residuais dos jesuítas,
precisam, para prevalecerem como tais, de disciplina e submissão.
Talvez essa transgressão, reinscrita no marco da inclusão nacionalista posterior, seja um dos paradoxos da modernização mais
sutilmente desentranhados pela
erudita reflexão de Alcir Pécora,
suplemento, certamente involuntário, da noção de literatura como
máquina temporal disjunta, idéia
que essa sutil admiradora das máquinas de pensar de Raimundo
Lullio, Flora Sussekind, nos apresentara em "A Voz e a Série".
Nenhum dos dois críticos, com
efeito, nos apresenta a literatura
como passagem de uma dimensão a outra, como um processo ou
um devir. Pelo contrário, a literatura, tal como o tempo, é nessas
leituras a diferença absoluta, a
imediata correlação integral de
heterogeneidades "incompossíveis", sem conceito de centro que
subjaz aos próprios enunciados,
nem pólo identitário que funciona como meta.
Pluridimensional e intensiva,
uma tal concepção do literário é
tão acefálica quanto vertiginosa, e
a máquina de gêneros funciona,
nesse caso, como uma memória
impessoal para a qual, como já
disse Novalis, os escritos são os
pensamentos do Estado e os arquivos, sua memória efetiva.
Raul Antelo é professor de literatura na
Universidade Federal de Santa Catarina.
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