São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O todo inexistente

Estudo mostra como gêneros literários desvendam estrutura social

Máquina de Gêneros
Alcir Pécora
Edusp
(Tel. 0/xx/11/3818-4149)
246 págs., R$ 25,00

RAUL ANTELO

Tornou-se hábito abordar a literatura sob as três espécies que lhe atribuiu o século 19, isto é, o ajustamento recíproco e exaustivo de linguagem, espaço e nação. O que acontece, porém, quando, na modernidade que decai, esses rótulos não mais regulam o fenômeno literário?
Em "Máquina de Gêneros - Novamente Descoberta e Aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage", a resposta de Alcir Pécora é alegórica. O autor construiu uma máquina de gêneros que ilumina a trajetória do literário na ausência do ideal nacional, e bem poderíamos dizer que sua reflexão a respeito das correspondências jesuíticas, das máximas moralistas do século 17 ou da tragédia marítima de Gonzaga é também uma reflexão sobre a sociedade contemporânea.
Assim, o foco está prioritariamente lançado sobre o jogo das normas estéticas. São elas que desvendam, mais do que a dinâmica, a própria estrutura da vida social. Não exprimem conteúdos de verdade, ideais ou objetivos -apontam regimes de produção de enunciados. Nesse sentido, a modernidade do método consiste em seu caráter indicial. O gênero é tão-somente isto aí: uma determinação formal, mas, simultaneamente, cultural do sentido.

Outros críticos
O trabalho de Pécora guarda curiosa relação com a reflexão de outros críticos latino-americanos que, partindo igualmente da tradição formalista, nos fornecem a alternativa de um conjunto vazio, o gênero, definido como dispositivo ou máquina produtora de significados.
Tomemos, a título de exemplo, o caso de Josefina Ludmer. Seu ponto de partida é o ensaio "Tretas do Fraco", que se pode ler, como "Tricks of the Weak", na coletânea de Stephanie Merrim, "Feminist Perspectives on Sor Juana Ines de la Cruz" (Wayne State University Press, 1999); a radicalização teórica dessas hipóteses pode ser vista, por sua vez, em "O Gênero Gauchesco" (Sudamericana, Buenos Aires, 1988).
O alvo da reflexão de Ludmer é o gênero gauchesco. Atribui a esse gênero uma forma ideológica que sutilmente articula os planos da expressão estética e do conteúdo ético. A tese, em seu caso, é radical, mas bem poderia ser assinada por Pécora: em um momento de vacância ou inexistência do Estado, o próprio gênero é a pré-condição para a construção de identificações simbólicas.
Essa vacância ou inexistência da máquina estatal é tanto histórica (porque o liberalismo ainda não produziu uma aliança hegemônica) quanto geográfica (o gênero emerge nos próprios confins territoriais da nação). A tese do gênero como máquina cultural critica assim as teorias modernizadoras, replicantes da região, tanto na perspectiva integrada, que vê o regionalismo como efeito de uma política central de "regere fines", quanto na perspectiva apocalíptica, que ouve no regionalismo uma dicção feliz, antinacionalista ou simplesmente pré-nacionalista.
De forma semelhante, Pécora trabalha com formas verticais, anteriores à nação, ou que se explicam fundamentalmente por seu caráter transversal ou transnacional (cartas, diálogos, sermões, sátiras), mas que, mesmo assim, nos persuadem de que o gênero é um dispositivo disciplinador.
A partir dessas mesmas premissas, Ludmer isolou dois tons fundamentais que constituíram o gênero gauchesco e, consequentemente, contaminaram a máquina do gênero narrativo nacional. São eles a lamentação e o desafio. A lamentação volta-se para as promessas perdidas. O desafio para as promessas por vir. A lamentação é melancólica; o desafio, utópico.

O desafio utópico
De maneira surpreendentemente análoga, nos ensaios de Alcir, a melancolia sustenta uma reflexão da distância e da diferença, que foca os costumes locais e contemporâneos por meio do filtro da tradição metropolitana. Entretanto, o desafio utópico transparece quando, como no caso de Manuel da Nóbrega, a construção do todo inexistente -o Brasil- dá-se mediante o recurso dialógico.
Em consequência de um repentismo rapsódico, o Brasil torna-se assim efeito, e não mais causa ou determinação, de um jogo de linguagem. O diálogo, nesse caso, é "gênero particularmente adequado para a defesa de uma posição, entre outras possíveis, formuladas a respeito de um tema potencialmente polêmico, dado numa situação prática, cuja resolução satisfatória implica a consideração progressiva de aspectos universais desconhecidos em graus diversos pelas suas personagens".
Um caso emblemático de como enunciações singulares operam como máquinas transversais disciplinadoras aparece no caso das cartas. Da análise da correspondência jesuítica, Pécora conclui que "as cartas estão longe de ser efeito espontâneo das novas experiências dos padres em regiões desconhecidas dos europeus. A preceptiva epistolar inaciana, amparada na longa e profícua reflexão medieval e renascentista do gênero, de alguma forma previa ou esboçava retoricamente os contornos básicos de personagens, ações e caracteres que jamais haviam visto antes".
A descrição parece aludir não só às práticas jesuíticas, mas aos desafios pós-coloniais, na agonia do modelo modernista. De fato, e em sintonia com o declínio da fé surrealista pelo "inconnu", que se traduz na descoberta espontânea de novas experiências em regiões pouco ou mal conhecidas dos europeus, a figura de Inácio e seus discípulos latino-americanos atraíram poderosamente alguns surrealistas-etnógrafos europeus.
É possível, sem cometer maior violência, aproximar a correspondência jesuítica das estratégias dialógicas de muitos outros pensadores contemporâneos. Penso, por exemplo, em alguém igualmente egresso da dissidência acefálica, Jacques Lacan. Como no caso dos diálogos e sermões, a transmissão se dá nele por meio de seminários e da segmentação de sociedades contratuais onde não mais opera a lei universal do sistema, porém a singularidade discursivamente auto-implicada.
Penso ainda em Peter Sloterdijk, que combate a estabilidade hegeliana do sistema, ainda presente na dialética do esclarecimento, apontando, em compensação, na direção da filosofia como um diálogo disponível e incessante, uma correspondência virtual em que sempre se desconhece o real destinatário de uma dicção. A conclusão, em todo o caso, é clara: volta-se a um universalismo antiuniversalista e a um modernismo antimodernista.

Consumo ou dilapidação
Creio, enfim, que a posição de Alcir Pécora pauta-se por esses mesmos caminhos de saída da fenomenologia material. De que modo isso se verifica? É necessário constatar, nesse sentido, que formas de escrita biográfica, como as cartas, adotam o valor de uso ou "at face value", como as chamou Sylvia Molloy, o que é uma forma de desgaste ou excesso em que o valor não se fixa mais por conservação, mas por consumo ou dilapidação. As formas valem quanto pesam.
No plano de uma economia cultural, o diálogo ou a correspondência se constituem a partir de técnicas que Marcel Mauss chamaria de corporais, técnicas que exigem repetição ou, ao menos, regularidade. Esse fenômeno cria, portanto, um paradoxo constitutivo da nação, do assim chamado sistema literário, que por intermédio dessas cartas ou diálogos se encontra em formação: até mesmo as práticas mais transgressivas, como os hábitos supranacionais e residuais dos jesuítas, precisam, para prevalecerem como tais, de disciplina e submissão.
Talvez essa transgressão, reinscrita no marco da inclusão nacionalista posterior, seja um dos paradoxos da modernização mais sutilmente desentranhados pela erudita reflexão de Alcir Pécora, suplemento, certamente involuntário, da noção de literatura como máquina temporal disjunta, idéia que essa sutil admiradora das máquinas de pensar de Raimundo Lullio, Flora Sussekind, nos apresentara em "A Voz e a Série".
Nenhum dos dois críticos, com efeito, nos apresenta a literatura como passagem de uma dimensão a outra, como um processo ou um devir. Pelo contrário, a literatura, tal como o tempo, é nessas leituras a diferença absoluta, a imediata correlação integral de heterogeneidades "incompossíveis", sem conceito de centro que subjaz aos próprios enunciados, nem pólo identitário que funciona como meta.
Pluridimensional e intensiva, uma tal concepção do literário é tão acefálica quanto vertiginosa, e a máquina de gêneros funciona, nesse caso, como uma memória impessoal para a qual, como já disse Novalis, os escritos são os pensamentos do Estado e os arquivos, sua memória efetiva.


Raul Antelo é professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina.



Texto Anterior: Arte e vida
Próximo Texto: Dois sicilianos fundamentais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.