São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

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Arte e vida

A negatividade em três artistas plásticos brasileiros

Lygia Pape - Gávea de Tocaia
Guy Brett
Cosac e Naify
(Tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
334 págs., R$ 95,00

Waltércio Caldas
Paulo Sergio Duarte
Cosac e Naify
304 págs., R$ 220,00

Carmela Gross
Ana Belluzzo
Cosac e Naify
150 págs., R$ 55,00

RICARDO FABBRINI

A arte construtiva brasileira dos anos 50 e 60 aliou a experimentação artística ao primado da construção, herdado de Max Bill e Mondrian. Formou-se, desde então, no país uma tendência construtiva na arte que reúne artistas como Lygia Pape, que integrou o movimento neoconcreto no fim dos anos 50, e Waltércio Caldas ou Carmela Gross, que nos anos 70 aproximaram a arte construtiva da pop art e do conceitualismo.
Esses artistas de trajetórias singulares, mas que partilham o intento comum de articular arte e vida, têm agora sua obra registrada em livros cuidadosamente editados. São livros que pela riqueza iconográfica e pertinência dos ensaios reparam uma lacuna na crítica de arte contemporânea no Brasil. Não são catálogos, registros protocolares de uma exposição nem "livros de artistas", mas livros com projetos editoriais dos próprios artistas -com exceção de Gross-, que reforçam os conceitos de suas obras. Daí o título evanescente em fundo branco da capa de Caldas e o contraste vermelho e negro, indiciando ambivalência do desejo, na capa de Pape.

Centros de energia
As formas construtivas de Lygia Pape projetam-se além do suporte, fecundando o espaço circundante. "São sementes", dizia Oiticica: "Centros de energia aguardando o momento de irromper". Em suas pinturas de 54 a 56, triângulos, quadrados e traços, dispostos às margens do plano, deslizam para fora do quadro. Desses anos são seus relevos em madeira em que cubos emergindo do plano invadem materialmente o mundo. Nessa direção é ainda o "Livro da Criação", de 59, um livro-objeto, articulável, cujas páginas são pétalas, que narram com formas e cores a criação do Universo e a evolução humana. O leitor, desfolhando o livro com olho e tato, reconta ao seu modo, na intenção de Pape, a criação "do mar" e da "quilha", da "terra" e do "arado".
Tomando o corpo do participante como motor da obra, Lygia Pape criou em 67 a proposição "O Ovo", cubos de 80 cm, com faces de plástico azul, vermelho e branco. O participante entra no "ovo", acocora-se nele e então, subitamente, rompe sua "película-pele", revivendo a sensação de nascimento. "Ali dentro", dizia Oiticica, "me sentia mais ovo que o próprio ovo, pois sem vê-lo, me sabia dentro, mas num leve sopro já era ovo fora sob negra ova d'estrelas". Após esse "regressus ad uterum", o participante, lançando-se no extravéu redescobre o mundo, recupera a cor das cores, os tons do som, os lugares do espaço, a luminescência do céu.
Em 68, Pape criou "Divisor", um pano de 900m2 com fendas espaçadas, distribuídas regularmente por toda sua extensão. Cada participante, enfiando sua cabeça numa fenda vê tão-somente sobre o pano as cabeças de outros participantes. Vive, assim, uma experiência ambígua: a graça da multiplicação do número e a experiência da reificação, uma vez que cada participante ocupa temporariamente uma cavidade, tal como o louco ou o presidiário. Essas fendas traçam uma linha de força geral que coloca os corpos em série; são fatores locais de integração, agentes de estratificação global, que, embora múltiplos, obedecem a uma mesma "Lei": seja ela "O Estado", "O Pai", "O Ouro", "O Sexo" ou "A Língua". "Divisor" é assim um diagrama de forças, uma quadriculação do campo social que, imobilizando os passos, distancia os corpos: um "lógos" que formaliza o mundo da vida, administrando as singularidades.
Em "Eat Me: A Gula ou a Luxúria?", de 75, Pape colocou à venda, nos espaços de exposição, saquinhos intitulados "objetos de sedução", que continham calendários de mulheres nuas, loções afrodisíacas, mechas de cabelos, batons etc. Ao lado desses objetos, montou vitrinas com "gadgets" de glamour, como cílios, dentes, cabeças, perucas e seios, todos postiços.
"Eat Me" é o espaço do erotismo reificado, da conversão da mulher em objeto de consumo. Pape mostra que a sedução na economia capitalista do desejo não decorre de um gesto natural ou de um encontro acidental, mas do gesto artificial, praticado por um corpo de próteses, pós-biológico, moldado em função da cultura de massas.
Lygia Pape verteu a obra de arte em "atos de vida", em intervenção no mundo, como nota Guy Brett em ensaio certeiro de "Gávea de Tocaia". Toda sua trajetória de raiz vanguardista -incluindo a retomada nos anos 90 dos relevos e esculturas- visa introduzir no "socius" axiomatizado pelo capital uma forma de negatividade. Seu espaço é o lugar dos "fluxos descodificados do desejo", na língua de Deleuze e Guattari; pois nele algo imprevisto ocorre ao participante: seja uma sensibilização generalizada em que o desejo é vivido como possibilidade aberta, seja, em sentido inverso, a vivência da banalização do corpo e da mecanização do prazer.
O espaço de Lygia Pape é assim o da pura produção desejante em busca de inusitadas configurações: seu princípio -como em Lygia Clark e Hélio Oiticica- é que "a vida é na sua essência prodigalidade de vida", atingindo seu mais alto grau na afirmação de seu princípio: ou "que o mais essencial da vida é o incessante".

Grafias no ar
As esculturas de Waltércio Caldas em aço inoxidável, em ferro de pouca espessura, em tiras de madeira ou fios de lã ou nylon são desenhos tridimensionais que conduzem o olho de cá para lá, impedindo-o de fixar-se num único plano. Ante essas grafias no ar, o olhar errante do observador, de tanto experimentar as distâncias, acaba por atribuir densidade ao vazio: centrando-se no lapso entre as linhas, dissolvendo a compacidade do mundo, faz do espaço "presença", no interior de uma galeria ou museu.
Esculturas como "Longínqua", de 86, situam-se no limiar da desaparição. É apenas uma lâmina de vidro que, sustentada por fios de nylon, pende do teto sem jamais tocar o chão. O observador mede a contração do espaço entre o vidro e o chão, sua distensão acima dele, entre o vidro e o teto, e então os relaciona ao entorno, sempre em busca do segredo da leveza. Em "Vidro e Vidro", de 94, ou "Fumaça", de 98, há a mesma busca do mínimo, acentuada pela ausência da cor, que, ao surgir em Caldas, como em "O Ar Mais Próximo", de 91, é mais luz que matéria; em regra emprega branco de carrara, preto de granito, veladura de "voile", cromo de metal, translucidez de acrílico.
Essas peças sem peso são elementares mesmo quando monumentais, mas nunca "minimalistas", pois, embora constituídas de materiais frios como o aço e o vidro, não são modulares nem produzem monotonia. Para caracterizar essas obras têm-se evocado, como figuras, a reflexão de Lucrécio, que introduziu o vácuo no coração da matéria, a "ontologia negativa" de Lacan, que rasgou o ser com sua "falta simbólica", e a brancura da página de "Coup de Dés" ("Lance de Dados") de Mallarmé, poema fechado à prosa do mundo, mas aberto ao espaço sem nome.
Em seu "Livro Velázquez", de 96, o vazio é pensado no espaço da representação, pois, manipulando as obras do artista espanhol, Caldas eliminou delas seus personagens, deixando-nos ver, em imagens esbatidas, cômodos abandonados. Em "Vênus ao Espelho", por exemplo, não há mais anjo, Vênus ou seu reflexo no espelho; nem em "As Meninas" vê-se a velha algaravia: princesa, damas de honra, anã, menina ou reis refletidos no espelho ao fundo. Subtraída a cena, restou ao observador apenas o cenário -o teatro de pedra da memória-, ou seja, o espaço da representação: espaço ermo em luz baça.
Caldas, que deve muito à concepção de Duchamp de que a obra é o suporte retiniano de uma idéia, criou também inúmeros objetos, entre os quais alguns "inutensílios": objetos que, apesar da aparente funcionalidade, não possuem nenhuma função. Seu fim não é aqui concretizar o vazio no sentido de suas esculturas e livros, mas provocar uma experiência de estranheza, um vazio de sentido. Exibiu, assim, em valiosas valises, como se fossem objetos úteis e raros, de grande precisão científica, "Condutores de Percepção", de 69 -uma vareta enigmática-, e "Anti-Sonhos", de 75 -duas lentes de ler mentes-, numa crítica carregada de ironia às ciências, da estereoscopia à psicoterapia.
Esses objetos têm um ar de família com os "objets-trouvés" de Man Ray ou com as "metamachines" de Jean Tinguely, pois também figuram o descarrilamento da razão científica em sua pretensão em quantificar a vida, embora possuam um design construtivo. Desafiado por esses objetos, o observador -como diz Paulo Duarte em seu ensaio sobre o artista-, dando-se conta de que o "índice de estranheza" da obra nunca soçobra, recolhe-se então num "distanciamento irônico" que acaba por se resolver em sorriso.

Múltiplas linguagens
As obras de Carmela Gross em diferentes materiais, pobres ou nobres, e várias linguagens, da pintura ao néon, "resistem à sistematização", como notou com zelo Ana Belluzzo. Em sua trajetória, Gross apropriou-se da pop art (em "Nuvem", de 67), da "arte povera" (em "A Carga e Presunto", de 68), do conceitualismo (em "Projeto para a Construção de um Céu", de 80-81), do minimalismo (em "Seis Telas", de 84) ou da "earth art" (em "Praia", de 90), sem deixar-se aprisionar por esses estilos modernos.
Dos anos 60 aos 90 manteve-se, assim, sincronizada com as mutações da arte contemporânea, sem perder jamais seu prumo: a criação de um espaço de desconstrução dos códigos.
"Carimbos", de 77 e 78, são carimbos em madeira e borracha, com sinais de linhas, pinceladas, rabiscos e manchas. Signos que indiciam autoria são transformados, com fina ironia, em marcas impessoais: os "mínimos sensíveis" de um "fluxo expressivo", na escrita de Belluzzo, são convertidos em sinais de uma escrita homogênea, burocratizada. O "Carimbo-Mancha", por exemplo, mostra que o próprio gesto, dito livre após Pollock ou Kline, não é uma terra incógnita, pois está sempre no limiar do clichê expressivo, estilizado ou teatral, que o territorializa. Esse carimbo figura também na captura do "figural" -é preciso lembrar-, a ditadura dos anos 70 na qual a força sensível e libidinal do desejo foi aprisionada nas grades da cultura de massas e da censura de Estado.
"Quasares", de 83, é uma série de 11 imagens-enigma impressas em offset sobre papel. Gross parte de figuras banais, plantas ou animais pinçados de enciclopédias, manipula-as em xerox, para então fotografá-las, ampliando por fim o negativo obtido. O efeito é de blow-up: imagens estouradas, de difícil reconhecimento. Diante desses buracos negros que se irradiam pelo branco da página, o observador não logra fixar figura familiar.
Gross verifica em que medida ainda é possível produzir uma imagem que não seja de imediato codificada: uma "pequena sensação" à Cézanne que escape ao "simulacro" à Jean Baudrillard. Reage assim à hiper-realidade dos signos, à pletora de imagens estandardizadas que levam à cegueira em nossa sociedade do espetáculo: em outros termos, examina se é possível devolver ao olho saturado de signos da cultura de consumo o ato de ver enquanto percepção natural.
Esses livros sobre artistas tão diversos, mas próximos na intenção de construir espaços de negatividade, são contribuições relevantes à fortuna crítica da arte contemporânea brasileira. Aguarda-se, contudo, que esses enxutos ensaios estimulem a produção de textos mais exaustivos sobre a trajetória desses mesmos artistas. Findos os livros, fica uma evidência: se a arte atual não mais acede ao "sublime moderno", à verdade ou absoluto, isso não significa que esteja reduzida ao belo ou ao decorativo; pois da falência das vanguardas como projeto de emancipação não resultou o fim dos poderes de negação da arte, mas uma arte que sem restaurar as utopias -sem lugar no imaginário contemporâneo-, articula formas de resistência cultural, criando no interior do espaço aparentemente sem fissuras do capitalismo globalizado "outros espaços": como o espaço do puro prazer ("jouissance") em oposição ao espaço da distração ("entertainment") em Lygia Pape; o espaço como "presença do vazio" em Waltércio Caldas, que se opõe à concreção física, estrepitosa e agressiva do mundo da moeda e da mercadoria; e, por fim, o espaço de desconstrução dos signos em Carmela Gross, que recusa o mundo dos simulacros, penetrando no âmago de cada código para, então, desprogramar suas bulas e posologias prévias. Espaços, em suma, que sintonizam com outras formas de resistência por vir.


Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "O Espaço de Lygia Clark" (Atlas).



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