|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Arte e vida
A negatividade em três artistas plásticos brasileiros
Lygia Pape - Gávea de Tocaia
Guy Brett
Cosac e Naify
(Tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
334 págs., R$ 95,00
Waltércio Caldas
Paulo Sergio Duarte
Cosac e Naify
304 págs., R$ 220,00
Carmela Gross
Ana Belluzzo
Cosac e Naify
150 págs., R$ 55,00
RICARDO FABBRINI
A arte construtiva brasileira dos anos 50
e 60 aliou a experimentação artística ao
primado da construção, herdado de Max
Bill e Mondrian. Formou-se, desde então,
no país uma tendência construtiva na arte que reúne artistas como Lygia Pape,
que integrou o movimento neoconcreto
no fim dos anos 50, e Waltércio Caldas ou
Carmela Gross, que nos anos 70 aproximaram a arte construtiva da pop art e do
conceitualismo.
Esses artistas de trajetórias singulares,
mas que partilham o intento comum de
articular arte e vida, têm agora sua obra
registrada em livros cuidadosamente editados. São livros que pela riqueza iconográfica e pertinência dos ensaios reparam
uma lacuna na crítica de arte contemporânea no Brasil. Não são catálogos, registros protocolares de uma exposição nem
"livros de artistas", mas livros com projetos editoriais dos próprios artistas -com
exceção de Gross-, que reforçam os
conceitos de suas obras. Daí o título evanescente em fundo branco da capa de
Caldas e o contraste vermelho e negro, indiciando ambivalência do desejo, na capa
de Pape.
Centros de energia
As formas construtivas de Lygia Pape
projetam-se além do suporte, fecundando o espaço circundante. "São sementes", dizia Oiticica: "Centros de energia
aguardando o momento de irromper".
Em suas pinturas de 54 a 56, triângulos,
quadrados e traços, dispostos às margens
do plano, deslizam para fora do quadro.
Desses anos são seus relevos em madeira
em que cubos emergindo do plano invadem materialmente o mundo. Nessa direção é ainda o "Livro da Criação", de 59,
um livro-objeto, articulável, cujas páginas são pétalas, que narram com formas e
cores a criação do Universo e a evolução
humana. O leitor, desfolhando o livro
com olho e tato, reconta ao seu modo, na
intenção de Pape, a criação "do mar" e da
"quilha", da "terra" e do "arado".
Tomando o corpo do participante como motor da obra, Lygia Pape criou em
67 a proposição "O Ovo", cubos de 80 cm,
com faces de plástico azul, vermelho e
branco. O participante entra no "ovo",
acocora-se nele e então, subitamente,
rompe sua "película-pele", revivendo a
sensação de nascimento. "Ali dentro", dizia Oiticica, "me sentia mais ovo que o
próprio ovo, pois sem vê-lo, me sabia
dentro, mas num leve sopro já era ovo fora sob negra ova d'estrelas". Após esse
"regressus ad uterum", o participante,
lançando-se no extravéu redescobre o
mundo, recupera a cor das cores, os tons
do som, os lugares do espaço, a luminescência do céu.
Em 68, Pape criou "Divisor", um pano
de 900m2 com fendas espaçadas, distribuídas regularmente por toda sua extensão. Cada participante, enfiando sua cabeça numa fenda vê tão-somente sobre o
pano as cabeças de outros participantes.
Vive, assim, uma experiência ambígua: a
graça da multiplicação do número e a experiência da reificação, uma vez que cada
participante ocupa temporariamente
uma cavidade, tal como o louco ou o presidiário. Essas fendas traçam uma linha
de força geral que coloca os corpos em série; são fatores locais de integração, agentes de estratificação global, que, embora
múltiplos, obedecem a uma mesma
"Lei": seja ela "O Estado", "O Pai", "O
Ouro", "O Sexo" ou "A Língua". "Divisor" é assim um diagrama de forças, uma
quadriculação do campo social que, imobilizando os passos, distancia os corpos:
um "lógos" que formaliza o mundo da vida, administrando as singularidades.
Em "Eat Me: A Gula ou a Luxúria?", de
75, Pape colocou à venda, nos espaços de
exposição, saquinhos intitulados "objetos de sedução", que continham calendários de mulheres nuas, loções afrodisíacas, mechas de cabelos, batons etc. Ao lado desses objetos, montou vitrinas com
"gadgets" de glamour, como cílios, dentes, cabeças, perucas e seios, todos postiços.
"Eat Me" é o espaço do erotismo reificado, da conversão da mulher em objeto
de consumo. Pape mostra que a sedução
na economia capitalista do desejo não decorre de um gesto natural ou de um encontro acidental, mas do gesto artificial,
praticado por um corpo de próteses, pós-biológico, moldado em função da cultura
de massas.
Lygia Pape verteu a obra de arte em
"atos de vida", em intervenção no mundo, como nota Guy Brett em ensaio certeiro de "Gávea de Tocaia". Toda sua trajetória de raiz vanguardista -incluindo
a retomada nos anos 90 dos relevos e esculturas- visa introduzir no "socius"
axiomatizado pelo capital uma forma de
negatividade. Seu espaço é o lugar dos
"fluxos descodificados do desejo", na língua de Deleuze e Guattari; pois nele algo
imprevisto ocorre ao participante: seja
uma sensibilização generalizada em que
o desejo é vivido como possibilidade
aberta, seja, em sentido inverso, a vivência da banalização do corpo e da mecanização do prazer.
O espaço de Lygia Pape é assim o da pura produção desejante em busca de inusitadas configurações: seu princípio -como em Lygia Clark e Hélio Oiticica- é
que "a vida é na sua essência prodigalidade de vida", atingindo seu mais alto grau
na afirmação de seu princípio: ou "que o
mais essencial da vida é o incessante".
Grafias no ar
As esculturas de Waltércio Caldas em
aço inoxidável, em ferro de pouca espessura, em tiras de madeira ou fios de lã ou
nylon são desenhos tridimensionais que
conduzem o olho de cá para lá, impedindo-o de fixar-se num único plano. Ante
essas grafias no ar, o olhar errante do observador, de tanto experimentar as distâncias, acaba por atribuir densidade ao
vazio: centrando-se no lapso entre as linhas, dissolvendo a compacidade do
mundo, faz do espaço "presença", no interior de uma galeria ou museu.
Esculturas como "Longínqua", de 86,
situam-se no limiar da desaparição. É
apenas uma lâmina de vidro que, sustentada por fios de nylon, pende do teto sem
jamais tocar o chão. O observador mede a
contração do espaço entre o vidro e o
chão, sua distensão acima dele, entre o vidro e o teto, e então os relaciona ao entorno, sempre em busca do segredo da leveza. Em "Vidro e Vidro", de 94, ou "Fumaça", de 98, há a mesma busca do mínimo,
acentuada pela ausência da cor, que, ao
surgir em Caldas, como em "O Ar Mais
Próximo", de 91, é mais luz que matéria;
em regra emprega branco de carrara,
preto de granito, veladura de "voile", cromo de metal, translucidez de acrílico.
Essas peças sem peso são elementares
mesmo quando monumentais, mas nunca "minimalistas", pois, embora constituídas de materiais frios como o aço e o
vidro, não são modulares nem produzem
monotonia. Para caracterizar essas obras
têm-se evocado, como figuras, a reflexão
de Lucrécio, que introduziu o vácuo no
coração da matéria, a "ontologia negativa" de Lacan, que rasgou o ser com sua
"falta simbólica", e a brancura da página
de "Coup de Dés" ("Lance de Dados") de
Mallarmé, poema fechado à prosa do
mundo, mas aberto ao espaço sem nome.
Em seu "Livro Velázquez", de 96, o vazio é pensado no espaço da representação, pois, manipulando as obras do artista espanhol, Caldas eliminou delas seus
personagens, deixando-nos ver, em imagens esbatidas, cômodos abandonados.
Em "Vênus ao Espelho", por exemplo,
não há mais anjo, Vênus ou seu reflexo
no espelho; nem em "As Meninas" vê-se
a velha algaravia: princesa, damas de
honra, anã, menina ou reis refletidos no
espelho ao fundo. Subtraída a cena, restou ao observador apenas o cenário -o
teatro de pedra da memória-, ou seja, o
espaço da representação: espaço ermo
em luz baça.
Caldas, que deve muito à concepção de
Duchamp de que a obra é o suporte retiniano de uma idéia, criou também inúmeros objetos, entre os quais alguns
"inutensílios": objetos que, apesar da
aparente funcionalidade, não possuem
nenhuma função. Seu fim não é aqui concretizar o vazio no sentido de suas esculturas e livros, mas provocar uma experiência de estranheza, um vazio de sentido. Exibiu, assim, em valiosas valises, como se fossem objetos úteis e raros, de
grande precisão científica, "Condutores
de Percepção", de 69 -uma vareta enigmática-, e "Anti-Sonhos", de 75 -duas
lentes de ler mentes-, numa crítica carregada de ironia às ciências, da estereoscopia à psicoterapia.
Esses objetos têm um ar de família com
os "objets-trouvés" de Man Ray ou com
as "metamachines" de Jean Tinguely,
pois também figuram o descarrilamento
da razão científica em sua pretensão em
quantificar a vida, embora possuam um
design construtivo. Desafiado por esses
objetos, o observador -como diz Paulo
Duarte em seu ensaio sobre o artista-,
dando-se conta de que o "índice de estranheza" da obra nunca soçobra, recolhe-se então num "distanciamento irônico"
que acaba por se resolver em sorriso.
Múltiplas linguagens
As obras de Carmela Gross em diferentes materiais, pobres ou nobres, e várias
linguagens, da pintura ao néon, "resistem
à sistematização", como notou com zelo
Ana Belluzzo. Em sua trajetória, Gross
apropriou-se da pop art (em "Nuvem",
de 67), da "arte povera" (em "A Carga e
Presunto", de 68), do conceitualismo (em
"Projeto para a Construção de um Céu",
de 80-81), do minimalismo (em "Seis Telas", de 84) ou da "earth art" (em "Praia",
de 90), sem deixar-se aprisionar por esses
estilos modernos.
Dos anos 60 aos 90 manteve-se, assim,
sincronizada com as mutações da arte
contemporânea, sem perder jamais seu
prumo: a criação de um espaço de desconstrução dos códigos.
"Carimbos", de 77 e 78, são carimbos
em madeira e borracha, com sinais de linhas, pinceladas, rabiscos e manchas.
Signos que indiciam autoria são transformados, com fina ironia, em marcas impessoais: os "mínimos sensíveis" de um
"fluxo expressivo", na escrita de Belluzzo,
são convertidos em sinais de uma escrita
homogênea, burocratizada. O "Carimbo-Mancha", por exemplo, mostra que o
próprio gesto, dito livre após Pollock ou
Kline, não é uma terra incógnita, pois está
sempre no limiar do clichê expressivo, estilizado ou teatral, que o territorializa. Esse carimbo figura também na captura do
"figural" -é preciso lembrar-, a ditadura dos anos 70 na qual a força sensível e
libidinal do desejo foi aprisionada nas
grades da cultura de massas e da censura
de Estado.
"Quasares", de 83, é uma série de 11
imagens-enigma impressas em offset sobre papel. Gross parte de figuras banais,
plantas ou animais pinçados de enciclopédias, manipula-as em xerox, para então fotografá-las, ampliando por fim o
negativo obtido. O efeito é de blow-up:
imagens estouradas, de difícil reconhecimento. Diante desses buracos negros que
se irradiam pelo branco da página, o observador não logra fixar figura familiar.
Gross verifica em que medida ainda é
possível produzir uma imagem que não
seja de imediato codificada: uma "pequena sensação" à Cézanne que escape ao
"simulacro" à Jean Baudrillard. Reage assim à hiper-realidade dos signos, à pletora de imagens estandardizadas que levam
à cegueira em nossa sociedade do espetáculo: em outros termos, examina se é
possível devolver ao olho saturado de signos da cultura de consumo o ato de ver
enquanto percepção natural.
Esses livros sobre artistas tão diversos,
mas próximos na intenção de construir
espaços de negatividade, são contribuições relevantes à fortuna crítica da arte
contemporânea brasileira. Aguarda-se,
contudo, que esses enxutos ensaios estimulem a produção de textos mais exaustivos sobre a trajetória desses mesmos artistas. Findos os livros, fica uma evidência: se a arte atual não mais acede ao "sublime moderno", à verdade ou absoluto,
isso não significa que esteja reduzida ao
belo ou ao decorativo; pois da falência
das vanguardas como projeto de emancipação não resultou o fim dos poderes de
negação da arte, mas uma arte que sem
restaurar as utopias -sem lugar no imaginário contemporâneo-, articula formas de resistência cultural, criando no
interior do espaço aparentemente sem
fissuras do capitalismo globalizado "outros espaços": como o espaço do puro
prazer ("jouissance") em oposição ao espaço da distração ("entertainment") em
Lygia Pape; o espaço como "presença do
vazio" em Waltércio Caldas, que se opõe
à concreção física, estrepitosa e agressiva
do mundo da moeda e da mercadoria; e,
por fim, o espaço de desconstrução dos
signos em Carmela Gross, que recusa o
mundo dos simulacros, penetrando no
âmago de cada código para, então, desprogramar suas bulas e posologias prévias. Espaços, em suma, que sintonizam
com outras formas de resistência por vir.
Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade
Católica (SP) e autor de "O Espaço de Lygia Clark"
(Atlas).
Texto Anterior: Quatro espelhos Próximo Texto: O todo inexistente Índice
|