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As origens do cinema
As relações entre cinema e modernidade
O Cinema e a Invenção
da Vida Moderna
Leo Charney e Vanessa Schwartz (orgs.)
Tradução: Regina Thompson
Cosac e Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444)
570 págs., R$ 68,00
LÚCIA NAGIB
"O Cinema e a Invenção da Vida Moderna", reunindo 13 ensaios de origem
americana em quase 600 páginas, abre a
coleção Cinema, Teatro e Modernidade,
dirigida por Ismail Xavier. O livro merece
atenção já pela chancela de Xavier, a
maior autoridade em teoria do cinema
no Brasil. "A Experiência do Cinema",
antologia organizada por ele, e "O Discurso Cinematográfico", de sua autoria,
permanecem há quase duas décadas referências básicas na área para os brasileiros.
Desta vez, porém, o leitor precisará
vencer algumas surpresas iniciais antes
de apreciar o verdadeiro valor da obra.
Leo Charney e Vanessa Schwartz são,
mesmo para os "experts", ilustres desconhecidos. Duas estrelas de primeira grandeza, Tom Gunning e Miriam Hansen,
compõem a moldura honorífica, abrindo
e fechando o volume, e há ainda alguns
nomes familiares, como Jonathan Crary e
Ben Singer, mas vários autores encontram-se no início da carreira acadêmica.
É, portanto, no mínimo ousada a opção
de traduzir este volume para abrir uma
coleção teórica no Brasil.
É de admirar o trabalho em equipe refletido no livro, certamente fruto da funcionalidade das universidades e agências
de fomento americanas, que proporcionam ao pesquisador o acesso a toda sorte
de documentação rara. Os ensaios parecem (e os agradecimentos de rodapé confirmam) ter sido lidos e comentados reciprocamente, conferindo-lhes uma complementaridade e uma organicidade que,
sem excluir a discordância, cercam o problema por todos os lados. Graças a isso,
ganha força a proposta inusitada de um
livro que, embora contenha "cinema" no
título, quase não fale de filmes. Cinema,
aqui, é um conceito mais amplo, cuja origem remonta a um período anterior a seu
próprio surgimento, identificando-se
com os atributos gerais da modernidade.
A narrativa no cinema
O livro promove um recuo ainda maior
que aquele empreendido por Noël Burch
e outros teóricos da narratologia, como
André Gaudreault, François Jost e o próprio Gunning, que estudaram a formação
da narrativa no cinema dos primeiros
tempos, ou seja, na virada do século 19
para o 20. Aqui, a referência é uma sociedade em vias de industrialização e urbanização a partir de meados do século 19.
Muito mais que (ou muito antes de) película e fotogramas em movimento, o cinema seria o próprio movimento social na
particular articulação de tempo e espaço
da modernidade.
Ele estaria no tráfego urbano, no trânsito dos trens, nos passeios do consumidor
pelas ruas comerciais. Ou na exploração
do corpo humano pela fotografia, nas
ilustrações sensacionalistas dos jornais,
nos cartazes publicitários, nos catálogos
de lojas, nas vitrines, enfim, em imagens
que se fragmentam e recompõem como
na montagem cinematográfica, provocando atenção e distração do olhar, este,
como no cinema, sujeito à continuidade
narrativa e à descontinuidade da sensação momentânea.
Toma-se, portanto, distância da teoria
cinematográfica "stricto sensu", ultrapassando-se também os estudos culturais -como observa Ismail Xavier em
seu prefácio-, já que a análise estética é
procedimento essencial. Estamos, antes
de tudo, no âmbito da história. "Historicizar", como também aponta Xavier, é o
comando unanimemente obedecido, na
contramão da crítica francesa de cinema,
em geral avessa às análises de contexto.
Aliás, vários ensaios desancam os franceses em seu próprio território, descobrindo pela pesquisa histórica uma Paris quase desconhecida. As referências, é verdade, são óbvias: o Walter Benjamin dos ensaios sobre Baudelaire e as passagens de
Paris; o Georg Simmel de "A Metrópole e
a Vida Mental"; o Kracauer crítico da cultura de massa. Porém o resultado surpreende pelo ineditismo da documentação.
O ensaio de Tom Gunning que abre a
primeira parte, "Corpos e Sensação", é
um dos poucos a chegar ao cinema em si.
Gunning toma Benjamin como ponto de
partida para definir a modernidade como
o colapso das experiências de espaço e
tempo anteriores a ela, provocado pelo
impacto da velocidade. O cinema desenvolve-se em relação direta com o movimento tecnológico e industrial, daí a tendência, nos primeiros tempos, de filmar
trens ou instalar neles a câmera para capturar esse movimento.
O corpo humano configura-se como alvo da circulação, e a imagem fotográfica
transforma-se em ferramenta para rastrear a identidade do novo indivíduo e
lhe imputar responsabilidade, como atesta seu uso na investigação policial. A documentação levantada é das mais instigantes, em particular a série de fotos policiais reproduzidas no livro como uma espécie de ponte entre o romance policial
do século 19 e o cinema.
Nos textos que se seguem, o cinema
abandona o centro da discussão. A pintura torna-se o campo para o estudo da
atenção moderna no fascinante ensaio de
Jonathan Crary. Tomando por base o
quadro "Na Estufa", de Manet, Crary não
apenas medita sobre o aspecto fisiológico
e psicológico do olhar vazio dos personagens, mas descobre nele a precariedade
do sujeito moderno. E amplia o raciocínio para incluir a moda e a introdução regular da novidade (a mercadoria) como
mecanismos para manter a atenção.
Fechando esta primeira parte do volume, Ben Singer analisa o sensacionalismo
popular a partir de uma concepção neurológica da modernidade extraída de
Georg Simmel. Segundo sua visão, a modernidade no fim do século 19 era percebida como um bombardeio de estímulos,
espelhados nas manchetes, ilustrações e
cartuns da imprensa nos quais o bonde, o
automóvel e a circulação geral da metrópole aparecem como geradores de catástrofes.
A segunda parte do livro volta-se para a
publicidade e o consumo. Estimulante
pela novidade da abordagem é, aqui, o
texto de Erika Rappaport sobre o desenvolvimento comercial do West End londrino, com destaque para a loja de departamentos Selfridge's. Rappaport narra
como o americano Harry Gordon Selfridge inovou o conceito de compras no
coração da Europa, redefinindo a posição
da mulher no ambiente urbano. A estratégia foi transformar sua loja num espetáculo, cujo palco eram as vitrines constantemente modificadas. No mesmo espírito, Alexandra Keller discorre sobre os catálogos da Sears, que, na zona rural americana, funcionavam como substitutos da
"flânerie" urbana e sua presença nas estantes concorria com a da Bíblia.
Na terceira parte, dedicada à efemeridade e ao instante, o destaque é o texto de
Leo Charney. Em sua visão da modernidade, Charney articula com originalidade
a idéia benjaminiana de desintegração da
aura pela experiência do choque com o
conceito de fotogenia de Jean Epstein,
que concebia o filme como uma cadeia de
momentos ou "trancos de atenção". Por
essa via, chega ao "cinema de atrações",
teoria desenvolvida por Gunning a partir
de Eisenstein e que Charney liga à cultura
moderna do instante.
Na última parte, sobre espetáculos e espectadores, Vanessa Schwartz, se não
tem o fôlego interpretativo de seu parceiro, impressiona pela revelação do papel
do necrotério de Paris no fim do século
19, que refletia um "gosto público pela
realidade" a seguir transferido para o cinema. Baseada em surpreendente documentação, Schwartz descreve o necrotério como um teatro que expunha cadáveres não identificados atrás de uma vitrine
dotada de cortinas, atraindo grandes
multidões. A ampla divulgação na mídia
do "plat du jour" (ou o cadáver do momento) completava o caráter espetacular
do local.
Fecha o volume o ensaio brilhante e polêmico de Miriam Hansen, que parece
efetivamente ter sido escrito a partir da
leitura dos demais, pois promove uma
reelaboração crítica deles. Diferindo dos
outros autores, Hansen contesta a concepção de uma "modernidade hegemônica", ligada ao século 19 e à visão benjaminiana da Paris de Baudelaire. Em seu
lugar, propõe um conceito de diferentes
modernidades, extraído da obra de Siegfried Kracauer que, segundo ela, tinha
um pensamento voltado para o contemporâneo e, portanto, para o século 20.
Profunda conhecedora de Kracauer,
Hansen acredita que sua obra oferece
"uma profusão de observações e reflexões sobre cinema e cultura de massa que
não encontramos em Benjamin".
Sem anular os argumentos dos benjaminianos convictos, essa visão enriquece
o volume com uma nova perspectiva, eximindo-o de um dogmatismo anacrônico
numa era que já se tem chamado de "pós-teórica".
Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e autora, entre outros
livros, de "Nascido das Cinzas - Autor e Sujeito nos
Filmes de Oshima" (Edusp).
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