São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

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As origens do cinema

As relações entre cinema e modernidade

O Cinema e a Invenção
da Vida Moderna
Leo Charney e Vanessa Schwartz (orgs.)
Tradução: Regina Thompson
Cosac e Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444)
570 págs., R$ 68,00

LÚCIA NAGIB

"O Cinema e a Invenção da Vida Moderna", reunindo 13 ensaios de origem americana em quase 600 páginas, abre a coleção Cinema, Teatro e Modernidade, dirigida por Ismail Xavier. O livro merece atenção já pela chancela de Xavier, a maior autoridade em teoria do cinema no Brasil. "A Experiência do Cinema", antologia organizada por ele, e "O Discurso Cinematográfico", de sua autoria, permanecem há quase duas décadas referências básicas na área para os brasileiros.
Desta vez, porém, o leitor precisará vencer algumas surpresas iniciais antes de apreciar o verdadeiro valor da obra. Leo Charney e Vanessa Schwartz são, mesmo para os "experts", ilustres desconhecidos. Duas estrelas de primeira grandeza, Tom Gunning e Miriam Hansen, compõem a moldura honorífica, abrindo e fechando o volume, e há ainda alguns nomes familiares, como Jonathan Crary e Ben Singer, mas vários autores encontram-se no início da carreira acadêmica. É, portanto, no mínimo ousada a opção de traduzir este volume para abrir uma coleção teórica no Brasil.
É de admirar o trabalho em equipe refletido no livro, certamente fruto da funcionalidade das universidades e agências de fomento americanas, que proporcionam ao pesquisador o acesso a toda sorte de documentação rara. Os ensaios parecem (e os agradecimentos de rodapé confirmam) ter sido lidos e comentados reciprocamente, conferindo-lhes uma complementaridade e uma organicidade que, sem excluir a discordância, cercam o problema por todos os lados. Graças a isso, ganha força a proposta inusitada de um livro que, embora contenha "cinema" no título, quase não fale de filmes. Cinema, aqui, é um conceito mais amplo, cuja origem remonta a um período anterior a seu próprio surgimento, identificando-se com os atributos gerais da modernidade.

A narrativa no cinema
O livro promove um recuo ainda maior que aquele empreendido por Noël Burch e outros teóricos da narratologia, como André Gaudreault, François Jost e o próprio Gunning, que estudaram a formação da narrativa no cinema dos primeiros tempos, ou seja, na virada do século 19 para o 20. Aqui, a referência é uma sociedade em vias de industrialização e urbanização a partir de meados do século 19. Muito mais que (ou muito antes de) película e fotogramas em movimento, o cinema seria o próprio movimento social na particular articulação de tempo e espaço da modernidade.
Ele estaria no tráfego urbano, no trânsito dos trens, nos passeios do consumidor pelas ruas comerciais. Ou na exploração do corpo humano pela fotografia, nas ilustrações sensacionalistas dos jornais, nos cartazes publicitários, nos catálogos de lojas, nas vitrines, enfim, em imagens que se fragmentam e recompõem como na montagem cinematográfica, provocando atenção e distração do olhar, este, como no cinema, sujeito à continuidade narrativa e à descontinuidade da sensação momentânea.
Toma-se, portanto, distância da teoria cinematográfica "stricto sensu", ultrapassando-se também os estudos culturais -como observa Ismail Xavier em seu prefácio-, já que a análise estética é procedimento essencial. Estamos, antes de tudo, no âmbito da história. "Historicizar", como também aponta Xavier, é o comando unanimemente obedecido, na contramão da crítica francesa de cinema, em geral avessa às análises de contexto. Aliás, vários ensaios desancam os franceses em seu próprio território, descobrindo pela pesquisa histórica uma Paris quase desconhecida. As referências, é verdade, são óbvias: o Walter Benjamin dos ensaios sobre Baudelaire e as passagens de Paris; o Georg Simmel de "A Metrópole e a Vida Mental"; o Kracauer crítico da cultura de massa. Porém o resultado surpreende pelo ineditismo da documentação.
O ensaio de Tom Gunning que abre a primeira parte, "Corpos e Sensação", é um dos poucos a chegar ao cinema em si. Gunning toma Benjamin como ponto de partida para definir a modernidade como o colapso das experiências de espaço e tempo anteriores a ela, provocado pelo impacto da velocidade. O cinema desenvolve-se em relação direta com o movimento tecnológico e industrial, daí a tendência, nos primeiros tempos, de filmar trens ou instalar neles a câmera para capturar esse movimento.
O corpo humano configura-se como alvo da circulação, e a imagem fotográfica transforma-se em ferramenta para rastrear a identidade do novo indivíduo e lhe imputar responsabilidade, como atesta seu uso na investigação policial. A documentação levantada é das mais instigantes, em particular a série de fotos policiais reproduzidas no livro como uma espécie de ponte entre o romance policial do século 19 e o cinema.
Nos textos que se seguem, o cinema abandona o centro da discussão. A pintura torna-se o campo para o estudo da atenção moderna no fascinante ensaio de Jonathan Crary. Tomando por base o quadro "Na Estufa", de Manet, Crary não apenas medita sobre o aspecto fisiológico e psicológico do olhar vazio dos personagens, mas descobre nele a precariedade do sujeito moderno. E amplia o raciocínio para incluir a moda e a introdução regular da novidade (a mercadoria) como mecanismos para manter a atenção.
Fechando esta primeira parte do volume, Ben Singer analisa o sensacionalismo popular a partir de uma concepção neurológica da modernidade extraída de Georg Simmel. Segundo sua visão, a modernidade no fim do século 19 era percebida como um bombardeio de estímulos, espelhados nas manchetes, ilustrações e cartuns da imprensa nos quais o bonde, o automóvel e a circulação geral da metrópole aparecem como geradores de catástrofes.
A segunda parte do livro volta-se para a publicidade e o consumo. Estimulante pela novidade da abordagem é, aqui, o texto de Erika Rappaport sobre o desenvolvimento comercial do West End londrino, com destaque para a loja de departamentos Selfridge's. Rappaport narra como o americano Harry Gordon Selfridge inovou o conceito de compras no coração da Europa, redefinindo a posição da mulher no ambiente urbano. A estratégia foi transformar sua loja num espetáculo, cujo palco eram as vitrines constantemente modificadas. No mesmo espírito, Alexandra Keller discorre sobre os catálogos da Sears, que, na zona rural americana, funcionavam como substitutos da "flânerie" urbana e sua presença nas estantes concorria com a da Bíblia.
Na terceira parte, dedicada à efemeridade e ao instante, o destaque é o texto de Leo Charney. Em sua visão da modernidade, Charney articula com originalidade a idéia benjaminiana de desintegração da aura pela experiência do choque com o conceito de fotogenia de Jean Epstein, que concebia o filme como uma cadeia de momentos ou "trancos de atenção". Por essa via, chega ao "cinema de atrações", teoria desenvolvida por Gunning a partir de Eisenstein e que Charney liga à cultura moderna do instante.
Na última parte, sobre espetáculos e espectadores, Vanessa Schwartz, se não tem o fôlego interpretativo de seu parceiro, impressiona pela revelação do papel do necrotério de Paris no fim do século 19, que refletia um "gosto público pela realidade" a seguir transferido para o cinema. Baseada em surpreendente documentação, Schwartz descreve o necrotério como um teatro que expunha cadáveres não identificados atrás de uma vitrine dotada de cortinas, atraindo grandes multidões. A ampla divulgação na mídia do "plat du jour" (ou o cadáver do momento) completava o caráter espetacular do local.
Fecha o volume o ensaio brilhante e polêmico de Miriam Hansen, que parece efetivamente ter sido escrito a partir da leitura dos demais, pois promove uma reelaboração crítica deles. Diferindo dos outros autores, Hansen contesta a concepção de uma "modernidade hegemônica", ligada ao século 19 e à visão benjaminiana da Paris de Baudelaire. Em seu lugar, propõe um conceito de diferentes modernidades, extraído da obra de Siegfried Kracauer que, segundo ela, tinha um pensamento voltado para o contemporâneo e, portanto, para o século 20. Profunda conhecedora de Kracauer, Hansen acredita que sua obra oferece "uma profusão de observações e reflexões sobre cinema e cultura de massa que não encontramos em Benjamin".
Sem anular os argumentos dos benjaminianos convictos, essa visão enriquece o volume com uma nova perspectiva, eximindo-o de um dogmatismo anacrônico numa era que já se tem chamado de "pós-teórica".


Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e autora, entre outros livros, de "Nascido das Cinzas - Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima" (Edusp).



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