São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Hibridismo selvagem

Um mapa do pensamento latino-americano

A Exaustão da Diferença A Política dos Estudos Culturais
Latino-Americanos
Alberto Moreiras
Tradução: Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/3449-4650)
405 págs., R$ 43,00

VERA LÚCIA F. DE FIGUEIREDO

O propósito de Alberto Moreiras é apontar um caminho para a reflexão sobre a cultura latino-americana capaz de ir além do engajamento na busca de descrições identitárias ou diferenciais. Segundo o autor, a insistência nos conceitos "batidos" de identidade e diferença tem caracterizado o passado recente do pensamento latino-americanista, sem conseguir dar conta dos efeitos provocados pela globalização do capital financeiro sobre a produção, distribuição, circulação e consumo do saber. Para atingir seu objetivo, Moreiras realiza um trabalho de mapeamento de diversas vertentes do pensamento latino-americanista, com as quais dialoga.
Assim, independentemente da concordância ou não com as teses do autor, o livro é de grande interesse para o leitor brasileiro, já que descortina um amplo horizonte de reflexões, colocando em cena o debate acadêmico entre hispano-americanos e latino-americanistas do norte. Moreiras insere-se nesses debates -que abordam, dentre outros temas polêmicos, o das relações desestabilizadoras entre estudos culturais e estudos literários- como latino-americanista não latino-americano, cujo lugar de produção é a Duke University, nos EUA.
Em "A Exaustão da Diferença", a abordagem dos discursos latino-americanistas está orientada pela crítica radical à modernidade como articuladora de um saber/poder hegemônico a serviço de uma ideologia dominante. Esse pensamento legitimaria a dominação do Ocidente sobre seus "outros", internos ou externos, servindo de base para as diferentes formas de colonialismo. Tal crítica se estende à chamada pós-modernidade, uma vez que esta consistiria simplesmente na consumação da ordem anterior, em relação à qual, portanto, estaria longe de constituir uma ruptura. Por isso, é à luz do questionamento da hermenêutica moderna que o autor vai indagar se é possível reafirmar o destino não-imperial da razão crítica, e se a atual reflexão latino-americanista pode se propor como produtividade crítica efetiva.
Considera, então, um primeiro discurso latino-americanista que, ligado à universidade enquanto lugar do saber/poder voltado para o fortalecimento do Estado-nação, prende-se ao essencialismo particularista, ao fundamentalismo civilizacional ou ao hibridismo: tendências que se nivelariam, hoje em dia, pela falta de parâmetros para pensar a crise das categorias modernas que as sustentam.
Um segundo discurso latino-americanista, voltado para os estudos culturais, seria, na verdade, a maior parte das vezes, uma busca neo-regional de formações substitutas para as categorias do primeiro. Prendendo-se ao localismo, constituiria uma forma de resistência que ainda se circunscreve no círculo hermenêutico moderno, seguindo o diapasão das dicotomias dominante/dominado, dentro/ fora, interior/exterior.

Os interlocutores
Nos dois tipos de latino-americanismo mencionados está incluída a maior parte dos interlocutores de Moreiras. Assim, ao mesmo tempo em que, num esforço "auto-arqueológico", dialoga com textos de Antonio Candido e de Borges, assinala a distância que o separa desses autores, já que suas reflexões estariam delimitadas pela ideologia nacional-popular. Considera também que a transculturação, tal como formulada por Angel Rama ou pelos criadores do realismo mágico, levada ao limite, promoveria a auto-sujeição da cultura latino-americana à modernidade eurocêntrica. O mesmo aconteceria com as diferentes modalidades do hibridismo cultural, inclusive a sugerida por Néstor García Canclini -ainda que chame a atenção para o fato de Canclini ter aberto perspectivas para os estudos culturais com sua crítica ao paradigma estético-historicista.
Dessa forma, o autor retoma o pensamento de vários latino-americanistas, dentre eles Cornejo Pilar, Beatriz Sarlo, Mabel Morãna, George Yúdice, Jean Franco, Doris Sommer e Nelly Richard, destacando sempre a dívida maior ou menor que mantêm com um conceito de razão crítica que não consegue ultrapassar a afirmação de um espaço identitário de resistência, seja do ponto de vista continental, nacional ou intranacional.
Moreiras propõe, então, um terceiro latino-americanismo que parte do reconhecimento da impossibilidade dos anteriores. Denominado "estudos subalternos latino-americanos", produziria um discurso crítico que anunciaria o fim do próprio latino-americanismo, porque, sendo capaz de ir além das polarizações modernas, despreocupa-se até com marcas identitárias. Rejeita as categorias da identidade e da diferença porque, inscritas no interior do círculo hegemônico, estariam sempre sujeitas à domesticação. O subalternismo se constitui como um programa "contra a identidade imperial, contra a diferença que subordina, contra o poder cultural e contra a própria interioridade". Numa perspectiva nietzschiana, procura pensar além dos valores, pois os considera como repositórios ideais da ideologia sedimentada. A perspectiva subalternista é, assim, fortemente marcada pela negatividade.
O caminho apontado para escapar do beco sem saída em que se encontraria o pensamento latino-americanista, entretanto, pode ser lido como uma radicalização da postura crítica daqueles intelectuais latino-americanos que vêm afirmando a inviabilidade de trabalhar com dicotomias excludentes, quando o objeto de reflexão é a cultura na América Latina.
Nesse sentido, não se pode deixar de lembrar que, nos anos 20 do século passado, num contexto bem diverso do contemporâneo, de euforia com o processo de industrialização do Brasil, a Antropofagia de Oswald de Andrade já propunha uma revisão do paradigma da razão moderna. Na década de 30, Borges referia-se ao lugar fronteiriço da cultura latino-americana, cuja vantagem seria propiciar uma leitura irreverente da tradição ocidental. Em 1971, Silviano Santiago escreve o ensaio "O Entrelugar do Discurso Latino-Americano", no qual a diferença latino-americana está longe de ser postulada no âmbito de um particularismo essencialista, mas se insinua no movimento sutil de perversão, de traição do modelo, que rasura as fronteiras criadas pelas categorias modernas. O "entrelugar" se constitui como um espaço aberto em que o discurso latino-americano se afirma pelo seu caráter relacional e crítico.
O hibridismo selvagem -solução apresentada por Moreiras, recorrendo ao pensamento de Homi Bhabha, para evitar o perigo do subalternismo se tornar um niilismo absoluto que nos colocaria à beira do silêncio- distingue-se das posições teóricas que nos situam num "entrelugar", por se definir como uma "a-topia", onde pairaríamos, resistindo a toda e qualquer localização. Como "a-topia", pretende criar as condições para um universalismo ideal que consagraria o fim do latino-americanismo.
O hibridismo selvagem distingue-se também do não-lugar consignado pela utopia: em "utopia", o prefixo grego de negação refere-se ao pólo negativo que se opõe ao positivo no interior da categoria de lugar. Em "a-topia", o prefixo expressa a privação, a erradicação do conceito de lugar e das antinomias por ele criadas como lugar/não-lugar. Cabe, então, indagar se o hibridismo selvagem "enquanto base diaspórica", para usar as palavras do autor, não acabaria por se confundir com uma política da dispersão, caso em que seria mais um instrumento do processo de mundialização da cultura, em tempos de globalização da economia, e daí seu "labor negativo" também resultaria domesticado.


Vera Lúcia Follain de Figueiredo é professora do departamento de comunicação social da Pontifícia Universidade Católica - RJ e autora de "Da Profecia ao Labirinto - Imagens da História na Ficção Latino-Americana Contemporânea" (Ed. UERJ)



Texto Anterior: As origens do cinema
Próximo Texto: Ciência entre nós
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.