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Hibridismo selvagem
Um mapa do pensamento latino-americano
A Exaustão da Diferença
A Política dos Estudos Culturais
Latino-Americanos
Alberto Moreiras
Tradução: Eliana Lourenço de Lima Reis e
Gláucia Renate Gonçalves
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/3449-4650)
405 págs., R$ 43,00
VERA LÚCIA F. DE FIGUEIREDO
O propósito de Alberto Moreiras é
apontar um caminho para a reflexão sobre a cultura latino-americana capaz de ir
além do engajamento na busca de descrições identitárias ou diferenciais. Segundo
o autor, a insistência nos conceitos "batidos" de identidade e diferença tem caracterizado o passado recente do pensamento latino-americanista, sem conseguir
dar conta dos efeitos provocados pela
globalização do capital financeiro sobre a
produção, distribuição, circulação e consumo do saber. Para atingir seu objetivo,
Moreiras realiza um trabalho de mapeamento de diversas vertentes do pensamento latino-americanista, com as quais
dialoga.
Assim, independentemente da concordância ou não com as teses do autor, o livro é de grande interesse para o leitor
brasileiro, já que descortina um amplo
horizonte de reflexões, colocando em cena o debate acadêmico entre hispano-americanos e latino-americanistas do
norte. Moreiras insere-se nesses debates
-que abordam, dentre outros temas polêmicos, o das relações desestabilizadoras
entre estudos culturais e estudos literários- como latino-americanista não latino-americano, cujo lugar de produção é
a Duke University, nos EUA.
Em "A Exaustão da Diferença", a abordagem dos discursos latino-americanistas está orientada pela crítica radical à
modernidade como articuladora de um
saber/poder hegemônico a serviço de
uma ideologia dominante. Esse pensamento legitimaria a dominação do Ocidente sobre seus "outros", internos ou
externos, servindo de base para as diferentes formas de colonialismo. Tal crítica
se estende à chamada pós-modernidade,
uma vez que esta consistiria simplesmente na consumação da ordem anterior, em
relação à qual, portanto, estaria longe de
constituir uma ruptura. Por isso, é à luz
do questionamento da hermenêutica
moderna que o autor vai indagar se é possível reafirmar o destino não-imperial da
razão crítica, e se a atual reflexão latino-americanista pode se propor como produtividade crítica efetiva.
Considera, então, um primeiro discurso latino-americanista que, ligado à universidade enquanto lugar do saber/poder
voltado para o fortalecimento do Estado-nação, prende-se ao essencialismo particularista, ao fundamentalismo civilizacional ou ao hibridismo: tendências que
se nivelariam, hoje em dia, pela falta de
parâmetros para pensar a crise das categorias modernas que as sustentam.
Um segundo discurso latino-americanista, voltado para os estudos culturais,
seria, na verdade, a maior parte das vezes,
uma busca neo-regional de formações
substitutas para as categorias do primeiro. Prendendo-se ao localismo, constituiria uma forma de resistência que ainda se
circunscreve no círculo hermenêutico
moderno, seguindo o diapasão das dicotomias dominante/dominado, dentro/
fora, interior/exterior.
Os interlocutores
Nos dois tipos de latino-americanismo
mencionados está incluída a maior parte
dos interlocutores de Moreiras. Assim, ao
mesmo tempo em que, num esforço "auto-arqueológico", dialoga com textos de
Antonio Candido e de Borges, assinala a
distância que o separa desses autores, já
que suas reflexões estariam delimitadas
pela ideologia nacional-popular. Considera também que a transculturação, tal
como formulada por Angel Rama ou pelos criadores do realismo mágico, levada
ao limite, promoveria a auto-sujeição da
cultura latino-americana à modernidade
eurocêntrica. O mesmo aconteceria com
as diferentes modalidades do hibridismo
cultural, inclusive a sugerida por Néstor
García Canclini -ainda que chame a
atenção para o fato de Canclini ter aberto
perspectivas para os estudos culturais
com sua crítica ao paradigma estético-historicista.
Dessa forma, o autor retoma o pensamento de vários latino-americanistas,
dentre eles Cornejo Pilar, Beatriz Sarlo,
Mabel Morãna, George Yúdice, Jean
Franco, Doris Sommer e Nelly Richard,
destacando sempre a dívida maior ou
menor que mantêm com um conceito de
razão crítica que não consegue ultrapassar a afirmação de um espaço identitário
de resistência, seja do ponto de vista continental, nacional ou intranacional.
Moreiras propõe, então, um terceiro latino-americanismo que parte do reconhecimento da impossibilidade dos anteriores. Denominado "estudos subalternos latino-americanos", produziria um
discurso crítico que anunciaria o fim do
próprio latino-americanismo, porque,
sendo capaz de ir além das polarizações
modernas, despreocupa-se até com marcas identitárias. Rejeita as categorias da
identidade e da diferença porque, inscritas no interior do círculo hegemônico, estariam sempre sujeitas à domesticação. O
subalternismo se constitui como um programa "contra a identidade imperial,
contra a diferença que subordina, contra
o poder cultural e contra a própria interioridade". Numa perspectiva nietzschiana, procura pensar além dos valores, pois
os considera como repositórios ideais da
ideologia sedimentada. A perspectiva subalternista é, assim, fortemente marcada
pela negatividade.
O caminho apontado para escapar do
beco sem saída em que se encontraria o
pensamento latino-americanista, entretanto, pode ser lido como uma radicalização da postura crítica daqueles intelectuais latino-americanos que vêm afirmando a inviabilidade de trabalhar com
dicotomias excludentes, quando o objeto
de reflexão é a cultura na América Latina.
Nesse sentido, não se pode deixar de
lembrar que, nos anos 20 do século passado, num contexto bem diverso do contemporâneo, de euforia com o processo
de industrialização do Brasil, a Antropofagia de Oswald de Andrade já propunha
uma revisão do paradigma da razão moderna. Na década de 30, Borges referia-se
ao lugar fronteiriço da cultura latino-americana, cuja vantagem seria propiciar
uma leitura irreverente da tradição ocidental. Em 1971, Silviano Santiago escreve o ensaio "O Entrelugar do Discurso
Latino-Americano", no qual a diferença
latino-americana está longe de ser postulada no âmbito de um particularismo essencialista, mas se insinua no movimento
sutil de perversão, de traição do modelo,
que rasura as fronteiras criadas pelas categorias modernas. O "entrelugar" se
constitui como um espaço aberto em que
o discurso latino-americano se afirma
pelo seu caráter relacional e crítico.
O hibridismo selvagem -solução
apresentada por Moreiras, recorrendo ao
pensamento de Homi Bhabha, para evitar o perigo do subalternismo se tornar
um niilismo absoluto que nos colocaria à
beira do silêncio- distingue-se das posições teóricas que nos situam num "entrelugar", por se definir como uma "a-topia", onde pairaríamos, resistindo a toda
e qualquer localização. Como "a-topia",
pretende criar as condições para um universalismo ideal que consagraria o fim do
latino-americanismo.
O hibridismo selvagem distingue-se
também do não-lugar consignado pela
utopia: em "utopia", o prefixo grego de
negação refere-se ao pólo negativo que se
opõe ao positivo no interior da categoria
de lugar. Em "a-topia", o prefixo expressa
a privação, a erradicação do conceito de
lugar e das antinomias por ele criadas como lugar/não-lugar. Cabe, então, indagar
se o hibridismo selvagem "enquanto base
diaspórica", para usar as palavras do autor, não acabaria por se confundir com
uma política da dispersão, caso em que
seria mais um instrumento do processo
de mundialização da cultura, em tempos
de globalização da economia, e daí seu
"labor negativo" também resultaria domesticado.
Vera Lúcia Follain de Figueiredo é professora
do departamento de comunicação social da Pontifícia Universidade Católica - RJ e autora de "Da
Profecia ao Labirinto - Imagens da História na Ficção Latino-Americana Contemporânea" (Ed. UERJ)
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