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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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Pele negra, máscara branca

Antologia do ensaísta Stuart Hall comentada pelo crítico Silviano Santiago

SILVIANO SANTIAGO

Os velhos arautos da cristianização dos trópicos e do nacionalismo brasileiro devem ainda se lembrar, talvez com certo pavor, da tese maior de Roger Bastide sobre a identidade dupla dos africanos no Brasil. O "princípio do corte", configurado em 1954 no ensaio "Le Principe de Coupure et le Comportement Afro-Brésilien", instituía a "viagem" entre dois mundos sociais e culturais como índice da não-marginalidade do grupo étnico no Brasil. O afro-brasileiro podia ser, ao mesmo tempo e serenamente, adepto fervoroso do candomblé e agente econômico perfeitamente adaptado à racionalidade moderna.
Calcule-se como um britânico de boa cepa, com formação marxista-leninista, não deve ter temido as teorizações do jamaicano Stuart Hall, em plena cena londrina, sobre a identidade múltipla da bucha de canhão afro-caribenha no mercado de trabalho europeu. Hall acata inicialmente os ensinamentos eurocêntricos sobre a luta de classes e opta, posteriormente, por teorizar sobre a identidade daqueles que, via Caribe, elegeram como lugar de trabalho e domicílio permanente a nação européia que os tinha retirado do solo africano e lhes emprestado solo caribenho, que os tinha escravizado e lhes dado de presente nova língua e novos costumes. Peles negras, máscaras brancas -como escreveu Franz Fanon em meados do século passado.
Stuart Hall é o pensador que virou pelo avesso as gavetas burocráticas e militares do império britânico. Mais do que o exercício das leis nacionais contra o preconceito racial, mais do que o enquadramento do cidadão intolerante pelas exigências dos direitos humanos, os movimentos diaspóricos têm-se revelado como o mais eficiente e legítimo desconstrutor dos antigos impérios coloniais e dos impérios neocoloniais. Tanto a margear os canais de Amsterdã quanto a caminhar pelas praças e ruas de Lisboa, Londres e Nova York, lá estão eles a trabalhar, definitivamente incorporados à paisagem humana das megalópoles ocidentais. Stuart Hall é um leitor apaixonado dos problemas humanos, sociais, políticos e econômicos que os movimentos diaspóricos passaram a colocar no pós-guerra e colocam de maneira estridente depois de 11 de setembro de 2001.
Ao contrário de Roger Bastide, que centrava o interesse da pesquisa sobre os afro-brasileiros na questão religiosa, Hall se deixou motivar por uma vertente cultural ampla e pós-moderna, abrindo a porta de entrada da universidade para o que será mais tarde denominado "cultural studies". Na diáspora afro-caribenha, Hall salienta uma "rede e local de memória", que são definidos pela "família ampliada".
O principal interesse do jamaicano é o de desmistificar o processo único de assimilação identitária, que, a partir de meados do século 19, circunscreveu a aculturação de todo e qualquer imigrante europeu, de todos os ex-escravos africanos a um Estado-nação do Novo Mundo.
Por esse processo de mão única, a "terceira geração" pouco ou nada guardava das origens, como se lê na bibliografia sobre americanização, mexicanização ou abrasileiramento. Ou na célebre frase de Margaret Mead: "Somos todos terceira geração". Por ela a antropóloga apresentava sem diferença as discriminações e os amálgamas econômicos e raciais, encontrados no tecido social ianque. Indiscriminadamente, os pracinhas "norte-americanos" iriam combater unidos e lá fora as forças malignas do Eixo.
Ao desmistificar o processo oitocentista de assimilação do imigrante pela nação de destino, sempre verossímil se a migração for ocidental e branca, Hall lança as bases para teorizações que instituem uma configuração identitária plurívoca para os afro-descendentes caribenhos que optaram pelo exílio e o trabalho em terras britânicas. Eles ainda mantêm contato estreito com as ilhas de origem. O canal crucial e permanente é, repitamos, a família ampliada, em situação semelhante à das levas de "wet-backs" mexicanos e dos trabalhadores manuais porto-riquenhos, que, no século passado, fixaram residência na Califórnia e na região de Nova York.
No entanto, segundo Hall, a questão identitária do afro-descendente no Reino Unido não se reduz a essa mão dupla, onde melhor podem se exercer a discriminação e o preconceito dos poderosos locais. Daí a complexidade polêmica da sua análise.
Ao elo de pertencimento tanto ao solo britânico quanto a essa ou aquela ilha de origem se junta, em solo europeu, a condição de "ser caribenho". À maneira de um cosmopolita aristocrático brasileiro na Place Clichy parisiense, Hall afirma com dose de auto-ironia que a sua condição de jamaicano "tornou-se "caribenha", não no Caribe, mas em Londres". A este terceiro elo somam-se o pertencimento dos "caribenhos" a várias e emergentes identidades "britânicas negras" e ainda a reidentificações simbólicas com as culturas propriamente africanas e, mais recentemente, com as afro-americanas que se expressam pela vertente popular.
Do jazz ao rock and roll e à MPB, da luta de boxe ao beisebol e ao futebol -todos equidistantes do "reggae" jamaicano, agora difundido a partir de Londres.


Da Diáspora
Stuart Hall
Liv Sovik (org.)
Tradução: Adelaine La Guardia Resende e outros
Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4642)
436 págs., R$ 49,00



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