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Máscara
É desse caldo cultural que surge
a polimorfa "jamaicanidade", para Stuart Hall, motivação política
e pessoal para o desentendimento
que teve com os colegas marxistas
da "New Left Review", a que pertencia por ser um dos fundadores;
motivação ainda, agora institucional, para a sua transferência
para o Chelsea College, da Universidade de Londres, onde entra
em cheio na cena urbana contemporânea. Passa a ensinar mídia,
cinema e cultura popular. Dali é
que dará o salto definitivo para a
Universidade de Birmingham,
onde se transformará em fundador e diretor do Center for Contemporary Cultural Studies.
São muitas, portanto, as razões
que devem ter levado Liv Sovik a
escolher o ensaio "Pensando a
Diáspora - Reflexões sobre a Terra no Exterior" (1999) para abrir a
antologia de Stuart Hall, que organizou sob o título de "Da Diáspora". As principais delas já foram expostas nos parágrafos introdutórios. A que somamos: o
resgate da subjetividade pós-colonial, que Stuart Hall incorpora à
tradição marxista britânica.
Esse resgate não está isento de
vínculos com a pós-modernidade, a desconstrução derridiana e
os estudos de gênero ("gender
studies") e, por outro viés, aproxima o jamaicano de outro grupo
étnico nitidamente pós-colonial,
que é o dos indianos no mundo
anglo-saxão, de que é melhor
exemplo Gayatri Spivak (ver "The
Post-Colonial Critic", Routledge).
Já está claro que a leitura dos
clássicos do marxismo interessa
muito mais a Hall no contexto do
colonialismo europeu do que no
contexto do capitalismo ocidental. O "ser privado" se intromete
nos seus escritos teóricos com a
elegância e o despudor da escrita
memorialista. Esta, ao transformar as amarras com o estritamente pessoal em programa político da diáspora pós-colonial, carrega de tonalidades dramáticas o
que teria sido apenas mais uma
página de teórico europeu (de jamaicano europeizado) ou mais
um lamento de deserdado.
O estatuto ambíguo do discurso
critico de Stuart Hall -dentro e
fora do teórico, dentro e fora do
autobiográfico- é o modo como
concilia a constatação de ter sido
preparado para ser inglês pela formação colonial com o fato de que,
em tempos pós-coloniais, nunca
será inglês, e também é o modo
como se dá conta de que, pela
diáspora afro-caribenha, tinha se
distanciado da condição original
jamaicana para estar sempre
"chegando" à Europa.
Como nos escritos de Bastide, a
"viagem" do afro-caribenho entre
dois continentes é real e é simbólica. Ele só pode se integrar (caso se
possa dizer que está se integrando) ao mundo anglo-saxão se
operar cortes identitários. Continua Hall, agora comentando a clivagem de que é feita a identidade
jamaicana na Europa: "Conheço
intimamente os dois lugares, mas
não pertenço completamente a
nenhum deles. E essa é exatamente a experiência diaspórica, longe
o suficiente para experimentar o
sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o
enigma de uma "chegada" sempre
adiada". A condição existencial é
que o leva a não acatar a distinção
entre o ser público e o ser privado.
Explica-se: "Aprendi (...) que a
cultura era algo profundamente
subjetivo e pessoal e, ao mesmo
tempo, uma estrutura em que a
gente vive".
Essa, por assim dizer, sujeira
teórica, que despenca no discurso
crítico de Stuart Hall (ou na bibliografia marxista européia, em
que o discurso dele se inscreve),
faz com que aos seus textos propriamente acadêmicos e ensaísticos se contraponham entrevistas.
Nestas a confissão opera definitivamente a fissão dos gêneros (o
mesmo se dá no livro citado de
Spivak, cujo subtítulo é "Entrevistas, Estratégias, Diálogos"). Liv
Sovik foi sensível à dupla articulação do discurso crítico e quis que
o neófito brasileiro pudesse não
só entrar pelo ensaio de abertura
como também pela porta dos fundos da antologia, ou seja, pela entrevista que Hall concedeu a
Kuan-Hsing Chen, em 1996, intitulada "A Formação de um Intelectual Diaspórico".
Ensaio/entrevista, porta da
frente/porta dos fundos, elevador
social/elevador de serviço: uma
topologia do pensamento e do habitat familiar colonial que o subalterno, mesmo em tempos embandeirados por independências nacionais, conhece na pele, porque
vive em sociedade de classes e
preconceituosa, que não camufla
as suas (ir)responsabilidades.
Quem puxa a carroça é que sabe
o que ela pesa, diz o ditado.
Se se chega à fissão no discurso
crítico de Stuart Hall pelas duas
portas do livro e pelos dois gêneros, chega-se à integridade da sua
teorização multívoca (o paradoxo
se impõe) pela figura do ecletismo. Há que tomar cuidado para
não tingir o ecletismo de Stuart
Hall de "erudição de historiador"
ou de "argumentação de vira-casaca".
Nele há uma soldagem dos dois
gêneros (das partes várias e aparentemente desconexas e das partes soltas e aparentemente contraditórias do discurso) que lembra,
pelo avesso, o universo dos grandes romances burgueses do século 20, como os de James Joyce, Robert Musil ou Thomas Mann, e
que não nos deixa esquecer a escrita sociológica e literária de Gilberto Freyre.
Mais importante do que a profundidade que se atinge pela exclusão peremptória dos elementos estranhos à coerência argumentativa é a inclusão daqueles
elementos pela alquimia da dramatização -entendendo esta
como inscrita num tecido sanguíneo e vivo que, a fim de evitar a
esclerose súbita, permite que nele
se entrelacem, sob a forma de
combate constante, forças contrárias e positivas. Dar ao paradoxal e ao contraditório a condição
de dupla positividade não é uma
lição de fácil aceitação por parte
dos dialéticos empedernidos e
principalmente dos dialéticos negativos.
Na introdução à antologia de
ensaios de e sobre Stuart Hall, publicada pela editora Routledge,
David Morley e Kuan-Hsing
Chen nos legaram uma descrição
circunstanciada do ecletismo particular ao nosso autor. Escrevem
eles que Hall "recusou as tentações da fácil marcação de gols, típica da perspectiva crítica negativa, que, ao borrar os argumentos
alheios, sempre o faz por estar
mais interessada em avivar os
próprios argumentos". Continuam: Hall "sempre busca tomar
emprestado de uma posição intelectual (oponente) a melhor e as
mais úteis partes, que são aquelas
que podem ser trabalhadas positivamente. Trata-se muito mais
de tendência em direção a um
modo de inclusão, ao diálogo e à
transformação seletivos e sincréticos, do que a uma "crítica" ao
-e correspondente rejeição
do- que é oposto ao seu próprio
ponto de vista ou posição".
Nos seus limites, esta resenha
pretendeu dar conta da porta de
entrada e da porta dos fundos da
antologia. Ficam a descoberto a
casa, suas divisões internas, onde
se dramatizam conflitos humanos, de classe e étnicos, e aproximações híbridas. Ao lhe emprestar as duas chaves da casa, convidamos o leitor a se hospedar nela.
Verá como os afro-brasileiros e
todos nós poderíamos estar morando, nos seus e nossos amplos
cômodos, com maior garra existencial, ousadia política e consciência crítica.
Silviano Santiago é ensaísta e escritor,
autor, entre outros livros, de "Uma Literatura nos Trópicos" (ed. Rocco).
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