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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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Máscara

É desse caldo cultural que surge a polimorfa "jamaicanidade", para Stuart Hall, motivação política e pessoal para o desentendimento que teve com os colegas marxistas da "New Left Review", a que pertencia por ser um dos fundadores; motivação ainda, agora institucional, para a sua transferência para o Chelsea College, da Universidade de Londres, onde entra em cheio na cena urbana contemporânea. Passa a ensinar mídia, cinema e cultura popular. Dali é que dará o salto definitivo para a Universidade de Birmingham, onde se transformará em fundador e diretor do Center for Contemporary Cultural Studies.
São muitas, portanto, as razões que devem ter levado Liv Sovik a escolher o ensaio "Pensando a Diáspora - Reflexões sobre a Terra no Exterior" (1999) para abrir a antologia de Stuart Hall, que organizou sob o título de "Da Diáspora". As principais delas já foram expostas nos parágrafos introdutórios. A que somamos: o resgate da subjetividade pós-colonial, que Stuart Hall incorpora à tradição marxista britânica.
Esse resgate não está isento de vínculos com a pós-modernidade, a desconstrução derridiana e os estudos de gênero ("gender studies") e, por outro viés, aproxima o jamaicano de outro grupo étnico nitidamente pós-colonial, que é o dos indianos no mundo anglo-saxão, de que é melhor exemplo Gayatri Spivak (ver "The Post-Colonial Critic", Routledge).
Já está claro que a leitura dos clássicos do marxismo interessa muito mais a Hall no contexto do colonialismo europeu do que no contexto do capitalismo ocidental. O "ser privado" se intromete nos seus escritos teóricos com a elegância e o despudor da escrita memorialista. Esta, ao transformar as amarras com o estritamente pessoal em programa político da diáspora pós-colonial, carrega de tonalidades dramáticas o que teria sido apenas mais uma página de teórico europeu (de jamaicano europeizado) ou mais um lamento de deserdado.
O estatuto ambíguo do discurso critico de Stuart Hall -dentro e fora do teórico, dentro e fora do autobiográfico- é o modo como concilia a constatação de ter sido preparado para ser inglês pela formação colonial com o fato de que, em tempos pós-coloniais, nunca será inglês, e também é o modo como se dá conta de que, pela diáspora afro-caribenha, tinha se distanciado da condição original jamaicana para estar sempre "chegando" à Europa.
Como nos escritos de Bastide, a "viagem" do afro-caribenho entre dois continentes é real e é simbólica. Ele só pode se integrar (caso se possa dizer que está se integrando) ao mundo anglo-saxão se operar cortes identitários. Continua Hall, agora comentando a clivagem de que é feita a identidade jamaicana na Europa: "Conheço intimamente os dois lugares, mas não pertenço completamente a nenhum deles. E essa é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma "chegada" sempre adiada". A condição existencial é que o leva a não acatar a distinção entre o ser público e o ser privado. Explica-se: "Aprendi (...) que a cultura era algo profundamente subjetivo e pessoal e, ao mesmo tempo, uma estrutura em que a gente vive".
Essa, por assim dizer, sujeira teórica, que despenca no discurso crítico de Stuart Hall (ou na bibliografia marxista européia, em que o discurso dele se inscreve), faz com que aos seus textos propriamente acadêmicos e ensaísticos se contraponham entrevistas. Nestas a confissão opera definitivamente a fissão dos gêneros (o mesmo se dá no livro citado de Spivak, cujo subtítulo é "Entrevistas, Estratégias, Diálogos"). Liv Sovik foi sensível à dupla articulação do discurso crítico e quis que o neófito brasileiro pudesse não só entrar pelo ensaio de abertura como também pela porta dos fundos da antologia, ou seja, pela entrevista que Hall concedeu a Kuan-Hsing Chen, em 1996, intitulada "A Formação de um Intelectual Diaspórico".
Ensaio/entrevista, porta da frente/porta dos fundos, elevador social/elevador de serviço: uma topologia do pensamento e do habitat familiar colonial que o subalterno, mesmo em tempos embandeirados por independências nacionais, conhece na pele, porque vive em sociedade de classes e preconceituosa, que não camufla as suas (ir)responsabilidades.
Quem puxa a carroça é que sabe o que ela pesa, diz o ditado.
Se se chega à fissão no discurso crítico de Stuart Hall pelas duas portas do livro e pelos dois gêneros, chega-se à integridade da sua teorização multívoca (o paradoxo se impõe) pela figura do ecletismo. Há que tomar cuidado para não tingir o ecletismo de Stuart Hall de "erudição de historiador" ou de "argumentação de vira-casaca".
Nele há uma soldagem dos dois gêneros (das partes várias e aparentemente desconexas e das partes soltas e aparentemente contraditórias do discurso) que lembra, pelo avesso, o universo dos grandes romances burgueses do século 20, como os de James Joyce, Robert Musil ou Thomas Mann, e que não nos deixa esquecer a escrita sociológica e literária de Gilberto Freyre.
Mais importante do que a profundidade que se atinge pela exclusão peremptória dos elementos estranhos à coerência argumentativa é a inclusão daqueles elementos pela alquimia da dramatização -entendendo esta como inscrita num tecido sanguíneo e vivo que, a fim de evitar a esclerose súbita, permite que nele se entrelacem, sob a forma de combate constante, forças contrárias e positivas. Dar ao paradoxal e ao contraditório a condição de dupla positividade não é uma lição de fácil aceitação por parte dos dialéticos empedernidos e principalmente dos dialéticos negativos.
Na introdução à antologia de ensaios de e sobre Stuart Hall, publicada pela editora Routledge, David Morley e Kuan-Hsing Chen nos legaram uma descrição circunstanciada do ecletismo particular ao nosso autor. Escrevem eles que Hall "recusou as tentações da fácil marcação de gols, típica da perspectiva crítica negativa, que, ao borrar os argumentos alheios, sempre o faz por estar mais interessada em avivar os próprios argumentos". Continuam: Hall "sempre busca tomar emprestado de uma posição intelectual (oponente) a melhor e as mais úteis partes, que são aquelas que podem ser trabalhadas positivamente. Trata-se muito mais de tendência em direção a um modo de inclusão, ao diálogo e à transformação seletivos e sincréticos, do que a uma "crítica" ao -e correspondente rejeição do- que é oposto ao seu próprio ponto de vista ou posição".
Nos seus limites, esta resenha pretendeu dar conta da porta de entrada e da porta dos fundos da antologia. Ficam a descoberto a casa, suas divisões internas, onde se dramatizam conflitos humanos, de classe e étnicos, e aproximações híbridas. Ao lhe emprestar as duas chaves da casa, convidamos o leitor a se hospedar nela. Verá como os afro-brasileiros e todos nós poderíamos estar morando, nos seus e nossos amplos cômodos, com maior garra existencial, ousadia política e consciência crítica.


Silviano Santiago é ensaísta e escritor, autor, entre outros livros, de "Uma Literatura nos Trópicos" (ed. Rocco).


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