|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Um levante urbano
Uma grande revolta de africanos na Bahia do século 19
RAFAEL DE BIVAR MARQUESE
Na noite do 24 para o 25 de janeiro de
1835, a cidade de Salvador foi sacudida
por um grande levante armado de africanos escravos e libertos. A revolta, planejada para iniciar no amanhecer do dia 25,
um domingo de Nossa Senhora da Guia,
foi antecipada devido a uma denúncia,
durou poucas horas e teve um saldo bastante sangrento, ao menos para os revoltosos.
O que particularizou o levante foi a participação majoritária dos malês, termo
que designava os africanos muçulmanos
na Bahia oitocentista. Nas palavras de
João José Reis, "embora durasse pouco
tempo (...), foi o levante de escravos urbanos mais sério ocorrido nas Américas e
teve efeitos duradouros para o conjunto
do Brasil escravista".
Esse é o tema de seu "Rebelião Escrava
no Brasil", agora lançado em edição revista e ampliada. Em que pese a existência
de vários trabalhos sobre o evento, a começar pelos estudos de Nina Rodrigues
do começo do século 20, João Reis se
transformou no maior especialista no assunto. A primeira versão de seu livro saiu
pela editora Brasiliense em 1986 (reimpressa no ano seguinte), tornando-se
imediatamente um clássico da historiografia sobre a escravidão no Brasil. A obra
gerou intenso debate entre especialistas
brasileiros e estrangeiros, para o que certamente contribuiu sua tradução para o
inglês em 1993. Com uma escrita elegante
e clara, ela tampouco se restringiu ao público acadêmico. Sua ressonância no movimento negro brasileiro foi considerável.
Dada a escala do que foi revisto e ampliado para a edição recém-lançada, com
o acréscimo de vários outros documentos e referências bibliográficas, Reis está
correto ao se referir a seu trabalho como
"um novo livro". E, é bom que se diga,
um livro muito melhor.
O incremento do trabalho ocorre, por
exemplo, pela incorporação mais acentuada da bibliografia africanista, em especial nos capítulos 5 e 6, intitulados respectivamente "Os Filhos de Alá na Bahia"
e "A "Sociedade Malê" - Organização e
Proselitismo" (o primeiro foi reescrito e
ampliado, enquanto o segundo é novo).
Em busca das origens africanas dos escravos e libertos envolvidos no levante de
1835, Reis imprime ao livro uma dimensão de história "atlântica" que não estava
tão marcada nas primeiras edições. O
vasto conhecimento que demonstra dessa bibliografia propicia o exame que faz
do conteúdo de um livrinho malê pertencente ao acervo do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro ou então a análise
dos significados sociais e simbólicos de
artefatos da cultura material dos malês,
como suas roupas (o abadá) e adereços
(amuletos e anéis).
Outro ponto a destacar é o estabelecimento das relações entre o ambiente de
trabalho de Salvador e o levante, já presente nas primeiras edições, mas que nesta ficou mais claro. Reis examina os
meios pelos quais o processo de trabalho
no espaço urbano criou condições para
os africanos aprofundarem suas identidades étnico-religiosas, o que por sua vez
forneceu combustível para a revolta. A
respeito dos cantos, "grupos de trabalho
formados por ganhadores escravos e libertos do mesmo grupo étnico e que se
reuniam em locais específicos da cidade à
espera dos fregueses", o autor apresenta
uma excelente análise dos significados
culturais e sociais da organização autônoma do trabalho, que lhe permite demonstrar a articulação estreita que houve
entre o processo de trabalho urbano, a vida escrava e a gestação do levante. O capítulo "Arranjos de Vida - Os Africanos na
Intimidade" ganhou fôlego novo, com
um melhor entrelaçamento entre a "vida
privada" de escravos e libertos (em particular seus arranjos de moradia e de família) e a preparação da revolta.
O livro, na verdade, pode ser tomado
como um bom exemplo de prática da
"Labor History" no campo da historiografia da escravidão moderna, algo que
vem rendendo alguns dos trabalhos internacionais mais significativos das últimas décadas -basta lembrar os nomes
de Ira Berlin, Philip Morgan, Michel-Rolph Trouillot, Dale Tomich e Stuart
Schwartz, entre outros. Esses estudos, no
entanto, se concentraram nos espaços rurais do Novo Mundo. Por todas essas razões, o trabalho de Reis, que traz grande
novidade por se voltar ao espaço urbano,
se situa na linha de frente da historiografia internacional sobre a escravidão negra
nas Américas.
Após a primeira edição, apareceram algumas críticas ao livro que questionaram
sua interpretação do levante, isto é, a
idéia de que seu caráter foi acentuadamente étnico-classista, não redutível a
um levante exclusivamente islâmico. Essas críticas -da lavra de Paul Lovejoy,
Alberto da Costa e Silva e José Cairus-
retomaram a tese da rebelião como uma
"jihad" islâmica, defendida pelos intérpretes mais consagrados do evento até a
década de 1970, como Nina Rodrigues,
Arthur Ramos e Pierre Verger. Nessa nova edição, Reis, sem negar a importância
central que o islã teve no levante, fornece
resposta convincente às críticas que lhe
foram endereçadas. Creio que fica suficientemente comprovada sua tese de que
a revolta de 1835 representou uma complexa combinação de luta religiosa, étnica
e de classe.
Os outros capítulos novos do livro são
os dois últimos, que discutem a reação de
senhores e autoridades públicas ao levante e suas repercussões para a escravidão
negra no império do Brasil. Aqui, o leitor
retém a idéia do impacto reduzido que a
revolta teve para a estrutura política escravista do império do Brasil. O ponto é
importante em vista de algumas leituras
historiográficas da obra de João Reis, sobretudo as que procuraram explicar a
abolição do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil como decorrência do
medo das elites imperiais diante do aguçamento das tensões escravistas internas
do império. Nessa leitura, a Revolta dos
Malês teria demonstrado aos olhos dessas elites o risco da "africanização" do
Brasil.
No capítulo que fecha o livro, "Repercussões - Entre o Endurecimento e a Crítica da Escravidão", Reis não é conclusivo
quanto à questão. Nele, analisa três artigos da imprensa periódica brasileira que
criticaram o tráfico negreiro e a escravidão a partir da experiência dos malês; um
abaixo-assinado baiano, com o mesmo
tom, endereçado à Assembléia imperial, e
um projeto da câmara de Itaparica propondo a abolição gradual da escravidão.
Contudo, nos anos imediatamente posteriores à revolta, apareceu na arena pública do império do Brasil uma outra vertente de textos e discursos, que defendia a
continuidade não só da escravidão, mas
também do tráfico negreiro transatlântico, inclusive com a eventual suspensão da
lei antitráfico de 1831. Reis não examina
esses textos, cujo projeto foi o que saiu vitorioso com o Regresso Conservador iniciado em 1837 e que ajudou a manter, até
1850, a lei de 1831 como letra morta. Não
por acaso, o volume do tráfico transatlântico ilegal de escravos aumentou de modo substantivo para o império do Brasil
na virada de 1836 para 1837.
O que se depreende do "Epílogo" é que
o ciclo de revoltas africanas que a Bahia
vivenciou a partir de 1807, cujo ápice foi
exatamente a Revolta dos Malês, não teve
nenhum efeito cumulativo para colocar
em xeque a ordem escravista brasileira,
ao contrário, portanto, do ciclo de levantes escravos ocorrido no mesmo período
no Caribe inglês. O contexto atlântico
mais amplo, e não apenas as conexões
entre África e Brasil, é fundamental para
compreender a real dimensão do levante
baiano de 1835.
As revoltas de 1816 (Barbados), 1823
(Demerara) e 1831 (Jamaica) -referidas
em algumas passagens do livro, mas não
comparadas de forma sistemática com os
levantes baianos- foram decisivas para
impulsionar a campanha contra a escravidão negra no império inglês. Por sua
vez, a resistência escrava no Brasil após a
década de 1870, fundamental para o processo de abolição do cativeiro em nossas
terras, não se valeu da experiência histórica da onda de levantes africanos que a
Bahia vivenciou entre 1807 e 1835. Nesse
sentido, a Revolta dos Malês, apesar de
ser bastante diferente daquela de Nat
Turner (Virginia, 1831), acabou por ter
impacto sistêmico semelhante: ambas foram revoltas que, apesar de sérias e violentas, com considerável repercussão na
consciência senhorial, não abalaram suas
respectivas ordens escravistas.
Por fim, resta esperar agora o que João
José Reis promete em rodapé como o seu
próximo livro: "Os Escravos e o Conde
-Resistência Escrava no Tempo do Conde
da Ponte, 1805-1809".
Rafael de Bivar Marquese é professor de história
na USP.
Rebelião Escrava no Brasil - A História
do Levante dos Malês em 1835
João José Reis
Companhia das Letras
(Tel.0/xx/11/3707-3500)
648 págs., R$ 58,00
Texto Anterior: Sérgio e a Itália Próximo Texto: Gênese da psicanálise Índice
|