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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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Um levante urbano

Uma grande revolta de africanos na Bahia do século 19

RAFAEL DE BIVAR MARQUESE

Na noite do 24 para o 25 de janeiro de 1835, a cidade de Salvador foi sacudida por um grande levante armado de africanos escravos e libertos. A revolta, planejada para iniciar no amanhecer do dia 25, um domingo de Nossa Senhora da Guia, foi antecipada devido a uma denúncia, durou poucas horas e teve um saldo bastante sangrento, ao menos para os revoltosos.
O que particularizou o levante foi a participação majoritária dos malês, termo que designava os africanos muçulmanos na Bahia oitocentista. Nas palavras de João José Reis, "embora durasse pouco tempo (...), foi o levante de escravos urbanos mais sério ocorrido nas Américas e teve efeitos duradouros para o conjunto do Brasil escravista".
Esse é o tema de seu "Rebelião Escrava no Brasil", agora lançado em edição revista e ampliada. Em que pese a existência de vários trabalhos sobre o evento, a começar pelos estudos de Nina Rodrigues do começo do século 20, João Reis se transformou no maior especialista no assunto. A primeira versão de seu livro saiu pela editora Brasiliense em 1986 (reimpressa no ano seguinte), tornando-se imediatamente um clássico da historiografia sobre a escravidão no Brasil. A obra gerou intenso debate entre especialistas brasileiros e estrangeiros, para o que certamente contribuiu sua tradução para o inglês em 1993. Com uma escrita elegante e clara, ela tampouco se restringiu ao público acadêmico. Sua ressonância no movimento negro brasileiro foi considerável.
Dada a escala do que foi revisto e ampliado para a edição recém-lançada, com o acréscimo de vários outros documentos e referências bibliográficas, Reis está correto ao se referir a seu trabalho como "um novo livro". E, é bom que se diga, um livro muito melhor.
O incremento do trabalho ocorre, por exemplo, pela incorporação mais acentuada da bibliografia africanista, em especial nos capítulos 5 e 6, intitulados respectivamente "Os Filhos de Alá na Bahia" e "A "Sociedade Malê" - Organização e Proselitismo" (o primeiro foi reescrito e ampliado, enquanto o segundo é novo).
Em busca das origens africanas dos escravos e libertos envolvidos no levante de 1835, Reis imprime ao livro uma dimensão de história "atlântica" que não estava tão marcada nas primeiras edições. O vasto conhecimento que demonstra dessa bibliografia propicia o exame que faz do conteúdo de um livrinho malê pertencente ao acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ou então a análise dos significados sociais e simbólicos de artefatos da cultura material dos malês, como suas roupas (o abadá) e adereços (amuletos e anéis).
Outro ponto a destacar é o estabelecimento das relações entre o ambiente de trabalho de Salvador e o levante, já presente nas primeiras edições, mas que nesta ficou mais claro. Reis examina os meios pelos quais o processo de trabalho no espaço urbano criou condições para os africanos aprofundarem suas identidades étnico-religiosas, o que por sua vez forneceu combustível para a revolta. A respeito dos cantos, "grupos de trabalho formados por ganhadores escravos e libertos do mesmo grupo étnico e que se reuniam em locais específicos da cidade à espera dos fregueses", o autor apresenta uma excelente análise dos significados culturais e sociais da organização autônoma do trabalho, que lhe permite demonstrar a articulação estreita que houve entre o processo de trabalho urbano, a vida escrava e a gestação do levante. O capítulo "Arranjos de Vida - Os Africanos na Intimidade" ganhou fôlego novo, com um melhor entrelaçamento entre a "vida privada" de escravos e libertos (em particular seus arranjos de moradia e de família) e a preparação da revolta.
O livro, na verdade, pode ser tomado como um bom exemplo de prática da "Labor History" no campo da historiografia da escravidão moderna, algo que vem rendendo alguns dos trabalhos internacionais mais significativos das últimas décadas -basta lembrar os nomes de Ira Berlin, Philip Morgan, Michel-Rolph Trouillot, Dale Tomich e Stuart Schwartz, entre outros. Esses estudos, no entanto, se concentraram nos espaços rurais do Novo Mundo. Por todas essas razões, o trabalho de Reis, que traz grande novidade por se voltar ao espaço urbano, se situa na linha de frente da historiografia internacional sobre a escravidão negra nas Américas.
Após a primeira edição, apareceram algumas críticas ao livro que questionaram sua interpretação do levante, isto é, a idéia de que seu caráter foi acentuadamente étnico-classista, não redutível a um levante exclusivamente islâmico. Essas críticas -da lavra de Paul Lovejoy, Alberto da Costa e Silva e José Cairus- retomaram a tese da rebelião como uma "jihad" islâmica, defendida pelos intérpretes mais consagrados do evento até a década de 1970, como Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Pierre Verger. Nessa nova edição, Reis, sem negar a importância central que o islã teve no levante, fornece resposta convincente às críticas que lhe foram endereçadas. Creio que fica suficientemente comprovada sua tese de que a revolta de 1835 representou uma complexa combinação de luta religiosa, étnica e de classe.
Os outros capítulos novos do livro são os dois últimos, que discutem a reação de senhores e autoridades públicas ao levante e suas repercussões para a escravidão negra no império do Brasil. Aqui, o leitor retém a idéia do impacto reduzido que a revolta teve para a estrutura política escravista do império do Brasil. O ponto é importante em vista de algumas leituras historiográficas da obra de João Reis, sobretudo as que procuraram explicar a abolição do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil como decorrência do medo das elites imperiais diante do aguçamento das tensões escravistas internas do império. Nessa leitura, a Revolta dos Malês teria demonstrado aos olhos dessas elites o risco da "africanização" do Brasil.
No capítulo que fecha o livro, "Repercussões - Entre o Endurecimento e a Crítica da Escravidão", Reis não é conclusivo quanto à questão. Nele, analisa três artigos da imprensa periódica brasileira que criticaram o tráfico negreiro e a escravidão a partir da experiência dos malês; um abaixo-assinado baiano, com o mesmo tom, endereçado à Assembléia imperial, e um projeto da câmara de Itaparica propondo a abolição gradual da escravidão. Contudo, nos anos imediatamente posteriores à revolta, apareceu na arena pública do império do Brasil uma outra vertente de textos e discursos, que defendia a continuidade não só da escravidão, mas também do tráfico negreiro transatlântico, inclusive com a eventual suspensão da lei antitráfico de 1831. Reis não examina esses textos, cujo projeto foi o que saiu vitorioso com o Regresso Conservador iniciado em 1837 e que ajudou a manter, até 1850, a lei de 1831 como letra morta. Não por acaso, o volume do tráfico transatlântico ilegal de escravos aumentou de modo substantivo para o império do Brasil na virada de 1836 para 1837.
O que se depreende do "Epílogo" é que o ciclo de revoltas africanas que a Bahia vivenciou a partir de 1807, cujo ápice foi exatamente a Revolta dos Malês, não teve nenhum efeito cumulativo para colocar em xeque a ordem escravista brasileira, ao contrário, portanto, do ciclo de levantes escravos ocorrido no mesmo período no Caribe inglês. O contexto atlântico mais amplo, e não apenas as conexões entre África e Brasil, é fundamental para compreender a real dimensão do levante baiano de 1835.
As revoltas de 1816 (Barbados), 1823 (Demerara) e 1831 (Jamaica) -referidas em algumas passagens do livro, mas não comparadas de forma sistemática com os levantes baianos- foram decisivas para impulsionar a campanha contra a escravidão negra no império inglês. Por sua vez, a resistência escrava no Brasil após a década de 1870, fundamental para o processo de abolição do cativeiro em nossas terras, não se valeu da experiência histórica da onda de levantes africanos que a Bahia vivenciou entre 1807 e 1835. Nesse sentido, a Revolta dos Malês, apesar de ser bastante diferente daquela de Nat Turner (Virginia, 1831), acabou por ter impacto sistêmico semelhante: ambas foram revoltas que, apesar de sérias e violentas, com considerável repercussão na consciência senhorial, não abalaram suas respectivas ordens escravistas.
Por fim, resta esperar agora o que João José Reis promete em rodapé como o seu próximo livro: "Os Escravos e o Conde -Resistência Escrava no Tempo do Conde da Ponte, 1805-1809".


Rafael de Bivar Marquese é professor de história na USP.

Rebelião Escrava no Brasil - A História do Levante dos Malês em 1835
João José Reis
Companhia das Letras (Tel.0/xx/11/3707-3500)
648 págs., R$ 58,00



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