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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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Gênese da psicanálise

RICHARD THEISEN SIMANKE

Tornou-se consenso, entre os especialistas, considerar "Projeto de uma Psicologia", de Sigmund Freud, como um texto indispensável para a compreensão da gênese e do sentido de sua obra. São raros os trabalhos acerca da constituição da psicanálise que não o mencionam, embora isso não signifique que tal acordo se estenda às opiniões acerca do papel e do destino das idéias ali expressas. Antes, ao contrário.
Trata-se do esboço de uma teoria psicológica geral, de inspiração naturalista e solidamente enraizado na neurologia, redigido apressadamente por Freud em 1895. O texto só foi publicado em 1950, tendo desencadeado um interesse pelos primórdios do pensamento freudiano que não cessou de se acentuar desde então. O estilo e o caráter dessas reflexões inaugurais não deixa de suscitar estranheza nos leitores acostumados com o Freud mais tardio. A controvérsia gira, assim, em torno da questão de saber se devemos atribuir a "Projeto de uma Psicologia" apenas um interesse histórico ou um papel mais efetivo na fundação da teoria.
As dificuldades de compreensão do texto -comuns, de resto, em manuscritos engavetados e nunca revisados pelo autor-, são agravadas aí por uma redação condensada e críptica, vazada num vocabulário frequentemente estranho à terminologia psicanalítica padrão, o que acaba alimentando a discórdia entre as interpretações. Esse conjunto de circunstâncias não deixa de estimular a temeridade exegética, pois parece mais seguro apresentar leituras heterodoxas quando se está certo de que poucos estarão em condições de discordar com conhecimento de causa.
Esse panorama ajuda a compreender "Notas a "Projeto de uma Psicologia'", de Osmyr Faria Gabbi Jr. Apesar de o título sugerir uma pacata edição anotada de um texto clássico da história da psicanálise, as intenções polêmicas do autor estão explicitadas no conteúdo e no tom provocativo de seu prefácio e de várias notas suas. A finalidade é se opor a toda uma tradição de leitura, estabelecida ao longo do século 20, que interpreta Freud em chave hermenêutica, existencial ou, mais genericamente, humanística -os nomes citados são Laplanche, Lacan e Ricoeur.
Essa linhagem, de maneira ingênua ou astuciosa, ignora os fundamentos empiristas e naturalistas da psicanálise, construindo um Freud alicerçado nas novidades intelectuais do campo das humanidades -assim como nos referenciais filosóficos por elas reavivados- e pouco provavelmente relacionados de perto com o ideário que contribuiu, de fato, para moldar o pensamento do criador da psicanálise.
Essa tradição, aliada a uma série de circunstâncias editoriais, teria agido no sentido de obscurecer e favorecer a negligência em relação a algumas das influências efetivamente constitutivas, dentre as quais Osmyr sublinha o utilitarismo britânico, onde ganha destaque, em particular, a filosofia de John Stuart Mill. As evidências para tanto, além da solitária referência de Freud a Mill, por ocasião da elaboração da noção de objeto em "Sobre a Concepção das Afasias" (1891), são de ordem conceitual: a concepção de análise psicológica do filósofo inglês; seu programa para a etologia, entendida como ciência da formação do caráter -que Osmyr julga ter sido seguido de perto por Freud na formulação de sua psicologia-; o eu concebido como objeto natural, o emprego das leis da associação na "dedução" das proposições psicológicas; uma teoria denotativa da significação da linguagem.
Um dos argumentos mais convincentes a favor das "origens utilitaristas da psicanálise" -anunciada no subtítulo do livro- seria o emprego por parte de Freud, como fator de regulação do psíquico, do princípio segundo o qual as ações humanas são motivadas, em última instância, pela busca do prazer e pela tentativa de evitar a dor (o famoso "princípio do prazer" freudiano). Esta noção, de resto, já se fazia presente na filosofia continental pelo menos desde Condillac, no século 18, por cujo intermédio repercutiu na obra neurológica de Franz Gall, ingressando assim nos debates da neurologia oitocentista dos quais Freud ainda viria a participar.
"Notas a "Projeto de uma Psicologia'" contém ainda uma tradução do texto de Freud, que adota os indispensáveis cuidados linguísticos e conceituais necessários à versão de seus termos, além de basear-se nas edições mais recentes dos originais. Num país no qual as traduções disponíveis de Freud estão, via de regra, muito aquém das necessidades acadêmicas e profissionais dos interessados, este fato pode ser comemorado por si só. Como não se trata, como foi dito acima, tão somente de uma edição anotada do "Projeto de uma Psicologia", mas de um trabalho de interpretação crítica da obra, o autor não se furta a justificar suas opções de tradução pelo viés de leitura adotado e explicitado desde o início -como é o caso, por exemplo, da decisão de traduzir "Vorstellung" por "idéia" e não por "representação".
Aliás, a apresentação, pouco usual, de um estudo sobre Freud sob a forma de algumas centenas de notas antepostas ao texto comentado -notas de tradução também, mas sobretudo de elucidação conceitual- tem, de imediato, a vantagem de não liberar o leitor do compromisso com a leitura, que lhe é franqueada pelo oferecimento, em apêndice, do texto integral do "Projeto".
Deste modo, o livro pode assumir, simultaneamente, ou a forma de uma interpretação de Freud -cujos pressupostos são assumidos por Osmyr com clareza suficiente para fazê-los inequívocos em suas consequências para a compreensão dos conceitos- ou de um instrumento de trabalho para aqueles que, discordando, no todo ou em parte, das conclusões do autor, decidam empreender por sua própria conta e risco a análise conceitual do "Projeto".
Para estes, vale a advertência, que podemos encontrar no "Prefácio" ao livro: o "Projeto de uma Psicologia", apesar das obscuridades, não consiste em uma obra indefinidamente aberta a novas interpretações, as quais, a bem do rigor, devem encontrar seus argumentos numa relação responsável com o texto, atitude para a qual o trabalho aqui apresentado pode seguramente servir de modelo.


Richard Theisen Simanke é professor da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros livros, de "Metapsicologia Lacaniana - Os Anos de Formação" (Discurso Editorial/Edufpr).

Notas a "Projeto de uma Psicologia" As Origens Utilitaristas da Psicanálise
Osmyr Faria Gabbi Jr.
Imago (Tel. 0/xx/21/2242-0627)
263 págs., R$ 40,00



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