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O espírito não tem sexo
A história de duas mulheres ambiciosas na Fran ça do século 18
FRANKLIN DE MATTOS
"Émilie, Émilie" resgata as trajetórias
de duas notáveis mulheres do século 18:
Gabrielle Émilie du Châtelet (1706-1749)
e Louise d'Épinay (1726-1783). Ambas
são lembradas como simples coadjuvantes de homens célebres do tempo, mas
deveriam sê-lo como figuras decisivas na
história da emancipação da mulher.
O estudioso da Ilustração costuma tropeçar em Madame du Châtelet quando se
vê às voltas com a fase newtoniana de
Voltaire. No castelo de Cirey, o filósofo se
consagra às questões de física, em companhia de Émilie, e lhe dedica os "Elementos da Filosofia de Newton". Quem
vê pensa que ele estava trocando em miúdos para ela a teoria da atração universal.
Engano: a verdade é que logo deixaria a
física, entre outras razões por não ser capaz de acompanhar o saber de Émilie,
que traduziu e comentou os "Principia
Mathematica" e falou de igual para igual
com os maiores cientistas da época.
Louise d'Épinay e seus amigos enciclopedistas tiveram uma briga famosa com
Rousseau, que, anos depois, pôs-se a ler
"As Confissões" num salão de Paris. Inquietos com o que diria o intratável Jean-Jacques, para fazer fogo de encontro Diderot e Grimm se sentaram com Louise e
passaram a limpo sua versão do episódio,
contada no romance autobiográfico
"História de Madame de Montbrillant".
Pode parecer que Madame d'Épinay
não passasse de um fantoche nas mãos
dos filósofos, mas também é engano. Embora não possuísse a erudição de Émilie,
aprendeu como ninguém a confiar em
sua sensibilidade e experiência pessoal.
Apostando em uma e outra, escreveu um
tratado de educação que denuncia o jugo
a que estavam relegadas as mulheres no
século 18.
Paixão masculina
A tese de Elisabeth Badinter é simples.
A ambição, paixão especialmente condenada desde a Antiguidade, é um desejo
imoderado de reconhecimento -de glória, fortuna, honrarias e poder. O ambicioso aspira a mudar de condição e, por
isso, pode ser um desafio para a sociedade, para a natureza e até mesmo para
Deus. Ora, nossa cultura judaico-cristã
distingue os sexos atribuindo à mulher a
sensibilidade, a devoção aos seus e a submissão, ao homem, a potência física, o
domínio do mundo e o poder da razão.
Logo, a ambição é tida como uma paixão
viril, pois enquanto o homem, mediante
a razão, se eleva acima da natureza, a mulher se sujeitaria a ela por completo. Os
seios e o útero determinariam seu destino: conceber e ser mãe.
Entretanto, num breve hiato de tempo,
entre os séculos 17 e 18, na França, se concedeu uma trégua às mulheres da nobreza, que assim ousaram apostar em suas
ambições. Não que isso lhes fosse reconhecido como um direito ou que as funções tradicionalmente masculinas (as políticas, por exemplo) estivessem franqueadas para elas. O que havia era, por
assim dizer, um "vazio ideológico", que
suscitava uma enorme liberdade.
Nem todas souberam aproveitá-lo.
Diante de tanta tolerância, a maioria caiu
na agitação mundana, correndo do baile
para a ópera, dos passeios para as lições
de química; outras mergulharam nos
"vapores", uma espécie de letargia que logo se tornou o "mal do século". Um pequeno grupo apostou na glória, quer recebendo gente importante em seus salões
-Fontenelle, Marivaux, Montesquieu,
d'Alembert etc.-, quer dedicando-se à
escrita. A exemplo de Mademoiselle de
Scudéry, Madame Dacier ou Madame
Genlis, Émilie e Louise pertencem a essa
categoria.
Ambas eram nobres, mas faziam parte
de estratos distintos da aristocracia. Enquanto o pai de Émilie de Breteuil servia o
rei em Versalhes, o de Louise d'Esclavelles, nascida em Valenciennes, fez carreira no Exército e provinha de uma pequena nobreza próxima da burguesia.
Desde logo, as duas mostraram o desejo
de ter uma instrução especial. Émilie se
formou de modo absolutamente excepcional para os padrões da época. Primeiro, foi educada o tempo todo na casa paterna, salvo breve temporada num convento; depois, enquanto as moças aprendiam apenas um pouco de escrita, de leitura, de história, de música e de dança,
nenhum tipo de conhecimento lhe foi negado. Tinha livre acesso à biblioteca e ao
salão da família, onde ainda menina conheceu Voltaire e onde conversava sobre
física e astronomia com Fontenelle. Sabia
latim, inglês e italiano, lia Horácio, Virgílio, Lucrécio, Cícero, Tasso, Milton, Locke e -fato raríssimo então!- teve até lições de matemática e metafísica.
Enquanto é provável que o pai de Émilie a instruísse tendo em vista o modelo
de Madame Dacier (1647-1720) -formidável erudita, tradutora de autores gregos e latinos, que provocou a segunda
Querela dos Antigos e Modernos-,
Louise acabou educada para se tornar
mãe e mulher, como Madame d'Esclavelles. Até os dez anos, foi cercada das
maiores atenções, mas ficou sem recursos com a morte do pai e sua formação se
prejudicou seriamente. Veio para Paris
com a mãe e morou na suntuosa mansão
de uma tia que detestava seu desejo de saber. De 1737 a 1739, permaneceu num
convento, de onde saiu devota rematada
(a famosa educação conventual do tempo
era principalmente moral: as meninas
aprendiam o catecismo, a fim de fazer a
primeira comunhão). Tem-se notícia de
que aos 13 anos Louise ainda não assimilara por completo a arte da escrita.
Em 1725, Émilie casou-se por conveniência, assegurando-se um lugar na corte, e partiu para Semur com o marido,
que fazia carreira no Exército. Em sete
anos, terá três filhos, mas muito antes já
se cansara da pasmaceira da província e
da vida conjugal. Em 1733, instalou-se definitivamente em Paris, passando a viver
separada do marquês du Châtelet. Émilie
descobrira os prazeres do jogo e da dissipação mundana: nos dois anos seguintes,
levará uma vida de mulher solteira, pouco se importando com o diz-que-diz-que.
Teve muitas aventuras escandalosas, foi
amante do newtoniano Maupertuis, cuja
expedição à Lapônia trouxe as provas de
que a Terra era achatada nos pólos (e ainda uma nativa, de quem o físico andava
enamorado...). Em 1735, a grande virada:
Émilie encerra-se com Voltaire em Cirey
e decide tornar-se a mais importante mulher de ciência do século.
Por sua vez, Louise se casou em 1745
com um primo rico -e por amor. A
princípio, sentiu-se no paraíso -queria
apenas ser boa mulher e boa mãe-, mas
logo descobriu que o marido a traía com
várias mulheres. Enquanto ele adotava a
ideologia libertina do tempo, ela possuía
uma concepção burguesa do casamento,
baseada no amor e na fidelidade recíproca. Certa noite, como bem nota Badinter,
viveu uma cena de romance à Duclos ou
Laclos: foi despertada em seu quarto pelo
marido, que a oferecia para o prazer de
um parceiro de farra. Safou-se porque
ameaçou fazer o maior escândalo.
Louise não tardou em ser mãe e decidiu
algo que contrariava os hábitos da época:
amamentar o bebê. Viviam-se tempos de
indiferença materna, em que os filhos representavam um grande estorvo. Os meninos eram enviados ao internato, as meninas, ao convento e, os recém-nascidos,
despachados para uma ama-de-leite.
Sem nenhum remorso, assim procederam Madame du Châtelet e todas as mulheres de sua classe.
Por isso, a família inteira se opôs à ridícula veleidade de Louise e logo a separou
do filho. De todo modo, Madame d'Épinay já fazia as vezes de um novo tipo de
mãe, que mais tarde seria exaltada no
"Emílio" (1762), de Rousseau.
Os anos seguintes foram difíceis para
ela. Frustrada no casamento e na vocação
materna, tentou sem êxito a vida mundana, que não a atraía. Buscou uma solução
mais íntima: passou a receber no majestoso castelo de la Chevrette, propriedade
do sogro, onde manteve um salão meio
informal, frequentado por Rousseau, Duclos e outros. Mas a "doença do século" jamais deixava de a rondar e talvez por isso, entre seus convivas, acabou arranjando um amante. A ligação deixou-lhe uma
filha bastarda, em cuja educação não se
intrometeu a família, o que lhe permitiu
realizar sua ambição de mãe e pedagoga.
Segundo Badinter, Louise começou então a se tornar "Émilie", nome pelo qual
tinha especial predileção: é assim que
passara a se chamar na intimidade; é o
nome da protagonista de seu romance
autobiográfico e ainda o de sua neta querida, para quem escreveria "As Conversações de Émilie", completando de vez a
própria metamorfose.
As Émilie não se conheceram, nem sequer se viram de longe. Embora contemporâneas, não pertenciam à mesma geração. Mas é um grande achado aproximar
seus destinos, que resumem facetas distintas das Luzes. Madame du Châtelet representa, no dizer de Pascal, o espírito
geométrico do tempo, seu culto à razão e
à ciência. Interessava-se apenas pelas disciplinas especulativas e fazia pouco da
obra poética e até mesmo historiográfica
de Voltaire. Aliás, o Voltaire com quem
viveu é, não por acaso, o autor das "Cartas Inglesas" e dos "Elementos", leitor de
Newton e Locke, e não o futuro e intransigente defensor dos direitos humanos.
Madame d'Épinay personifica a "finesse": gosta da vida em sociedade, é romancista, escreve sobre pedagogia e teatro.
Resume a grande mudança ocorrida em
meados do século, quando a sociedade se
torna o valor supremo e, a educação, o
único meio de formar bons cidadãos.
Época em que o filósofo já não é teólogo
ou metafísico, mas um homem de bem,
que quer agradar e ser útil, segundo a fórmula consagrada pela "Encyclopédie".
Apesar de sua formação excepcional,
para chegar aonde queria Madame du
Châtelet recorreu aos melhores professores do tempo. Durante seu retiro, primeiro estudou com Maupertuis, depois com
Clairaut, em seguida com Koenig, aluno
do leibniziano Wolff, e finalmente com
Bernouilli. No começo dos anos 40, sua
correspondência mostra que era tratada
como um deles pelos maiores físicos do
século.
Com efeito, em 1738, Émilie publicara o
primeiro trabalho científico, a "Dissertação sobre a Natureza e a Propagação do
Fogo". O texto, que foi escrito para um
concurso da Academia de Ciências e não
arrebatou o prêmio, se esforçava por conciliar Leibniz e Newton, contra o que pretendiam cartesianos e newtonianos. A
tentativa reaparecerá no grande livro de
Madame du Châtelet, as "Instituições de
Física" (1740), segundo o qual toda obra
do gênero se baseia necessariamente numa metafísica. Embora aceite sem restrições a teoria da atração universal, Émilie
invoca o princípio de razão suficiente a
fim de criticar aqueles que se recusam a
lhe buscar uma causa mecânica. Além
disso, o livro adota a teoria leibniziana de
um Deus necessário e sábio, que entre todos os possíveis escolhera o melhor dos
mundos. Que teria pensado Voltaire, que
dentro de 20 anos escreveria o "Cândido"
justamente para escarnecer dessa idéia?
Émilie du Châtelet passou os últimos
anos de sua vida dedicando-se à obra que
afinal lhe daria a celebridade: a tradução e
o comentário dos "Principia Mathematica", de Newton. Em 1746, tornou-se
membro da Academia de Bolonha, o que
não era pouco.
A glória de Madame d'Épinay foi diferente. Primeiro teve que recuperar o tempo perdido e de que modo o fez é um dos
momentos mais sedutores do livro de Badinter. Louise beneficiou-se de uma das
mais prezadas artes do século 18: a conversação. Dizem que não brilhava nessa
arte, mas sabia ouvir como ninguém os
ilustres convidados que recebia em La
Chevrette.
Por exemplo, Rousseau, que ainda não
escrevera o "Emílio", mas já o estava matutando; ou Duclos, autor famoso de um
romance libertino, que se credenciara como pedagogo ao publicar as "Considerações sobre os Costumes" (1751). Acrescente-se ainda que manteve uma farta
correspondência (uma conversa à distância...) com o abade Galiani, que lhe ensinou economia política; uma longa ligação amorosa com Melchior Grimm, diretor da "Correspondência Literária, Filosófica e Crítica"; e enfim uma estreita
amizade com Diderot, um dos mais fascinantes conversadores do tempo.
Disso tudo resultaram vários livros sobre educação. Em seu romance, publicado postumamente com um título de editor, "Pseudo-Memórias", Madame d'Épinay denuncia a formação convencional
que tivera. Nas "Cartas a Meu Filho"
(1756), retoma os princípios gerais da nova pedagogia, que já começavam a ser
formulados por gente como Rousseau e
Duclos. É preciso conhecer a natureza de
cada aluno e daí extrair o método mais
adequado.
Depois, vem o plano de prioridades:
primeiro, partir da experiência pessoal
do discípulo, a fim de formar seu coração,
e apenas em seguida cuidar do julgamento e do espírito, pois a finalidade da educação é principalmente moral -formar
homens de bem e bons cidadãos.
Rousseau era contrário aos colégios,
mas não acreditava que os pais exercessem bem o papel de educadores e, por isso, fazia do preceptor uma espécie de "pai
espiritual". Louise não hesitou em divergir do mestre: ocupou-se pessoalmente
de seus filhos, teorizou sobre essa experiência e atribuiu à mãe um lugar central
no processo educativo, antecipando o
modelo que triunfaria nos séculos 19 e 20.
A educação de seu filho foi um fracasso
retumbante, mas Louise não esmoreceu.
Mostrou a mesma ousadia nas "Conversações de Émilie" (1774), plano de educação para as moças que amplia o programa da "Carta à Governanta de Minha Filha" (1756).
De Fénelon a Rousseau, a pedagogia da
mulher sempre tivera em vista a futura
mulher, mãe e dona-de-casa. O "Emílio"
pregava a submissão feminina: sua Sofia
era educada para agradar o personagem
masculino que dava título ao tratado.
Madame d'Épinay recusa essa tradição e
afirma a igualdade intelectual dos sexos e
a importância dos estudos para a felicidade da mulher (recomendava literaturas
francesa, inglesa, italiana e até mesmo
um pouco de metafísica, moral, história,
geografia e ciências sociais). A obra teve
grande sucesso de crítica e, em 1783, foi
premiada pela Academia Francesa.
Duas aspirações
O livro de Elisabeth Badinter é simplesmente notável: tem rigor historiográfico e
fôlego narrativo. Sua conclusão sinaliza
para o presente: "Madame d'Épinay personifica, no mais alto grau, a paixão materna, a ponto de querer fazer dela uma
ética e uma estética. Madame du Châtelet
representa a ambição pessoal e o desejo
de imortalidade que a acompanha. Duas
aspirações que sempre nos agradou considerar opostas e que as mulheres de nossa época já não querem dissociar. Uma é
a encarnação do eterno feminino, a outra,
a da virilidade, por tão longo tempo sufocada no inconsciente feminino".
Um dos maiores interesses de "Émilie,
Émilie" é suscitar uma curiosa inversão
de perspectiva: os "philosophes" passam
da frente para o fundo do palco e aparecem como aliados ou adversários da ambição feminina. No pelotão inimigo, brilham Boileau, Fénelon, Molière -que escreveu "Les Femmes Savantes" ("As Sabichonas") para escarnecer das mulheres
eruditas- e, é claro, Rousseau. Aqui, impossível não perguntar: por que diabos
seria adepto da sujeição feminina alguém
que tanto denunciou a servidão e que era
tão cioso da própria liberdade que chegava a brigar com os amigos, caso a julgasse
ameaçada?
Diderot, o "irmão inimigo" de Jean-Jacques, fica numa espécie de zona intermediária. Em seus romances, defendeu
as mulheres com paixão; escreveu um ensaio encantador sobre elas, repleto de galanteios, nota Badinter, mas afinal conservador, pois as encerra no irracional,
definindo-as por meio da sensibilidade e
da imaginação.
Dentre os aliados, talvez uma surpresa:
Descartes. Ao afirmar a completa autonomia do pensamento em relação ao corpo, ele tornou possível a igualdade intelectual entre os sexos. O cartesiano Poullain de la Barre dirá: "O espírito não tem
sexo". Metafísica à parte, o "feminista"
Voltaire, pensava o mesmo, se é que não
julgava superiores as mulheres. Certa vez,
quiçá resumindo tanto o século das Luzes
quanto os anos felizes de Cirey, escreveu:
"Somos de um tempo (...) em que é preciso que o poeta seja filósofo e em que a
mulher pode sê-lo ousadamente".
Franklin de Mattos é professor no departamento
de filosofia da USP e autor de "O Filósofo e o Comediante - Ensaios sobre Literatura e Filosofia na
Ilustração" (Ed. UFMG).
Émilie, Émilie - A Ambição Feminina no Século 18
Elisabeth Badinter
Tradução: Celeste Marcondes
Discurso Editorial/Duna Dueto/Paz e Terra
(Tel. 0/xx/11/3814-5383)
463 págs., R$ 47,00
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