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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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O espírito não tem sexo

A história de duas mulheres ambiciosas na Fran ça do século 18

FRANKLIN DE MATTOS

"Émilie, Émilie" resgata as trajetórias de duas notáveis mulheres do século 18: Gabrielle Émilie du Châtelet (1706-1749) e Louise d'Épinay (1726-1783). Ambas são lembradas como simples coadjuvantes de homens célebres do tempo, mas deveriam sê-lo como figuras decisivas na história da emancipação da mulher.
O estudioso da Ilustração costuma tropeçar em Madame du Châtelet quando se vê às voltas com a fase newtoniana de Voltaire. No castelo de Cirey, o filósofo se consagra às questões de física, em companhia de Émilie, e lhe dedica os "Elementos da Filosofia de Newton". Quem vê pensa que ele estava trocando em miúdos para ela a teoria da atração universal. Engano: a verdade é que logo deixaria a física, entre outras razões por não ser capaz de acompanhar o saber de Émilie, que traduziu e comentou os "Principia Mathematica" e falou de igual para igual com os maiores cientistas da época.
Louise d'Épinay e seus amigos enciclopedistas tiveram uma briga famosa com Rousseau, que, anos depois, pôs-se a ler "As Confissões" num salão de Paris. Inquietos com o que diria o intratável Jean-Jacques, para fazer fogo de encontro Diderot e Grimm se sentaram com Louise e passaram a limpo sua versão do episódio, contada no romance autobiográfico "História de Madame de Montbrillant".
Pode parecer que Madame d'Épinay não passasse de um fantoche nas mãos dos filósofos, mas também é engano. Embora não possuísse a erudição de Émilie, aprendeu como ninguém a confiar em sua sensibilidade e experiência pessoal. Apostando em uma e outra, escreveu um tratado de educação que denuncia o jugo a que estavam relegadas as mulheres no século 18.

Paixão masculina
A tese de Elisabeth Badinter é simples. A ambição, paixão especialmente condenada desde a Antiguidade, é um desejo imoderado de reconhecimento -de glória, fortuna, honrarias e poder. O ambicioso aspira a mudar de condição e, por isso, pode ser um desafio para a sociedade, para a natureza e até mesmo para Deus. Ora, nossa cultura judaico-cristã distingue os sexos atribuindo à mulher a sensibilidade, a devoção aos seus e a submissão, ao homem, a potência física, o domínio do mundo e o poder da razão. Logo, a ambição é tida como uma paixão viril, pois enquanto o homem, mediante a razão, se eleva acima da natureza, a mulher se sujeitaria a ela por completo. Os seios e o útero determinariam seu destino: conceber e ser mãe.
Entretanto, num breve hiato de tempo, entre os séculos 17 e 18, na França, se concedeu uma trégua às mulheres da nobreza, que assim ousaram apostar em suas ambições. Não que isso lhes fosse reconhecido como um direito ou que as funções tradicionalmente masculinas (as políticas, por exemplo) estivessem franqueadas para elas. O que havia era, por assim dizer, um "vazio ideológico", que suscitava uma enorme liberdade.
Nem todas souberam aproveitá-lo. Diante de tanta tolerância, a maioria caiu na agitação mundana, correndo do baile para a ópera, dos passeios para as lições de química; outras mergulharam nos "vapores", uma espécie de letargia que logo se tornou o "mal do século". Um pequeno grupo apostou na glória, quer recebendo gente importante em seus salões -Fontenelle, Marivaux, Montesquieu, d'Alembert etc.-, quer dedicando-se à escrita. A exemplo de Mademoiselle de Scudéry, Madame Dacier ou Madame Genlis, Émilie e Louise pertencem a essa categoria.
Ambas eram nobres, mas faziam parte de estratos distintos da aristocracia. Enquanto o pai de Émilie de Breteuil servia o rei em Versalhes, o de Louise d'Esclavelles, nascida em Valenciennes, fez carreira no Exército e provinha de uma pequena nobreza próxima da burguesia.
Desde logo, as duas mostraram o desejo de ter uma instrução especial. Émilie se formou de modo absolutamente excepcional para os padrões da época. Primeiro, foi educada o tempo todo na casa paterna, salvo breve temporada num convento; depois, enquanto as moças aprendiam apenas um pouco de escrita, de leitura, de história, de música e de dança, nenhum tipo de conhecimento lhe foi negado. Tinha livre acesso à biblioteca e ao salão da família, onde ainda menina conheceu Voltaire e onde conversava sobre física e astronomia com Fontenelle. Sabia latim, inglês e italiano, lia Horácio, Virgílio, Lucrécio, Cícero, Tasso, Milton, Locke e -fato raríssimo então!- teve até lições de matemática e metafísica.
Enquanto é provável que o pai de Émilie a instruísse tendo em vista o modelo de Madame Dacier (1647-1720) -formidável erudita, tradutora de autores gregos e latinos, que provocou a segunda Querela dos Antigos e Modernos-, Louise acabou educada para se tornar mãe e mulher, como Madame d'Esclavelles. Até os dez anos, foi cercada das maiores atenções, mas ficou sem recursos com a morte do pai e sua formação se prejudicou seriamente. Veio para Paris com a mãe e morou na suntuosa mansão de uma tia que detestava seu desejo de saber. De 1737 a 1739, permaneceu num convento, de onde saiu devota rematada (a famosa educação conventual do tempo era principalmente moral: as meninas aprendiam o catecismo, a fim de fazer a primeira comunhão). Tem-se notícia de que aos 13 anos Louise ainda não assimilara por completo a arte da escrita.
Em 1725, Émilie casou-se por conveniência, assegurando-se um lugar na corte, e partiu para Semur com o marido, que fazia carreira no Exército. Em sete anos, terá três filhos, mas muito antes já se cansara da pasmaceira da província e da vida conjugal. Em 1733, instalou-se definitivamente em Paris, passando a viver separada do marquês du Châtelet. Émilie descobrira os prazeres do jogo e da dissipação mundana: nos dois anos seguintes, levará uma vida de mulher solteira, pouco se importando com o diz-que-diz-que. Teve muitas aventuras escandalosas, foi amante do newtoniano Maupertuis, cuja expedição à Lapônia trouxe as provas de que a Terra era achatada nos pólos (e ainda uma nativa, de quem o físico andava enamorado...). Em 1735, a grande virada: Émilie encerra-se com Voltaire em Cirey e decide tornar-se a mais importante mulher de ciência do século.
Por sua vez, Louise se casou em 1745 com um primo rico -e por amor. A princípio, sentiu-se no paraíso -queria apenas ser boa mulher e boa mãe-, mas logo descobriu que o marido a traía com várias mulheres. Enquanto ele adotava a ideologia libertina do tempo, ela possuía uma concepção burguesa do casamento, baseada no amor e na fidelidade recíproca. Certa noite, como bem nota Badinter, viveu uma cena de romance à Duclos ou Laclos: foi despertada em seu quarto pelo marido, que a oferecia para o prazer de um parceiro de farra. Safou-se porque ameaçou fazer o maior escândalo.
Louise não tardou em ser mãe e decidiu algo que contrariava os hábitos da época: amamentar o bebê. Viviam-se tempos de indiferença materna, em que os filhos representavam um grande estorvo. Os meninos eram enviados ao internato, as meninas, ao convento e, os recém-nascidos, despachados para uma ama-de-leite. Sem nenhum remorso, assim procederam Madame du Châtelet e todas as mulheres de sua classe.
Por isso, a família inteira se opôs à ridícula veleidade de Louise e logo a separou do filho. De todo modo, Madame d'Épinay já fazia as vezes de um novo tipo de mãe, que mais tarde seria exaltada no "Emílio" (1762), de Rousseau.
Os anos seguintes foram difíceis para ela. Frustrada no casamento e na vocação materna, tentou sem êxito a vida mundana, que não a atraía. Buscou uma solução mais íntima: passou a receber no majestoso castelo de la Chevrette, propriedade do sogro, onde manteve um salão meio informal, frequentado por Rousseau, Duclos e outros. Mas a "doença do século" jamais deixava de a rondar e talvez por isso, entre seus convivas, acabou arranjando um amante. A ligação deixou-lhe uma filha bastarda, em cuja educação não se intrometeu a família, o que lhe permitiu realizar sua ambição de mãe e pedagoga. Segundo Badinter, Louise começou então a se tornar "Émilie", nome pelo qual tinha especial predileção: é assim que passara a se chamar na intimidade; é o nome da protagonista de seu romance autobiográfico e ainda o de sua neta querida, para quem escreveria "As Conversações de Émilie", completando de vez a própria metamorfose.
As Émilie não se conheceram, nem sequer se viram de longe. Embora contemporâneas, não pertenciam à mesma geração. Mas é um grande achado aproximar seus destinos, que resumem facetas distintas das Luzes. Madame du Châtelet representa, no dizer de Pascal, o espírito geométrico do tempo, seu culto à razão e à ciência. Interessava-se apenas pelas disciplinas especulativas e fazia pouco da obra poética e até mesmo historiográfica de Voltaire. Aliás, o Voltaire com quem viveu é, não por acaso, o autor das "Cartas Inglesas" e dos "Elementos", leitor de Newton e Locke, e não o futuro e intransigente defensor dos direitos humanos.
Madame d'Épinay personifica a "finesse": gosta da vida em sociedade, é romancista, escreve sobre pedagogia e teatro. Resume a grande mudança ocorrida em meados do século, quando a sociedade se torna o valor supremo e, a educação, o único meio de formar bons cidadãos. Época em que o filósofo já não é teólogo ou metafísico, mas um homem de bem, que quer agradar e ser útil, segundo a fórmula consagrada pela "Encyclopédie".
Apesar de sua formação excepcional, para chegar aonde queria Madame du Châtelet recorreu aos melhores professores do tempo. Durante seu retiro, primeiro estudou com Maupertuis, depois com Clairaut, em seguida com Koenig, aluno do leibniziano Wolff, e finalmente com Bernouilli. No começo dos anos 40, sua correspondência mostra que era tratada como um deles pelos maiores físicos do século.
Com efeito, em 1738, Émilie publicara o primeiro trabalho científico, a "Dissertação sobre a Natureza e a Propagação do Fogo". O texto, que foi escrito para um concurso da Academia de Ciências e não arrebatou o prêmio, se esforçava por conciliar Leibniz e Newton, contra o que pretendiam cartesianos e newtonianos. A tentativa reaparecerá no grande livro de Madame du Châtelet, as "Instituições de Física" (1740), segundo o qual toda obra do gênero se baseia necessariamente numa metafísica. Embora aceite sem restrições a teoria da atração universal, Émilie invoca o princípio de razão suficiente a fim de criticar aqueles que se recusam a lhe buscar uma causa mecânica. Além disso, o livro adota a teoria leibniziana de um Deus necessário e sábio, que entre todos os possíveis escolhera o melhor dos mundos. Que teria pensado Voltaire, que dentro de 20 anos escreveria o "Cândido" justamente para escarnecer dessa idéia?
Émilie du Châtelet passou os últimos anos de sua vida dedicando-se à obra que afinal lhe daria a celebridade: a tradução e o comentário dos "Principia Mathematica", de Newton. Em 1746, tornou-se membro da Academia de Bolonha, o que não era pouco.
A glória de Madame d'Épinay foi diferente. Primeiro teve que recuperar o tempo perdido e de que modo o fez é um dos momentos mais sedutores do livro de Badinter. Louise beneficiou-se de uma das mais prezadas artes do século 18: a conversação. Dizem que não brilhava nessa arte, mas sabia ouvir como ninguém os ilustres convidados que recebia em La Chevrette.
Por exemplo, Rousseau, que ainda não escrevera o "Emílio", mas já o estava matutando; ou Duclos, autor famoso de um romance libertino, que se credenciara como pedagogo ao publicar as "Considerações sobre os Costumes" (1751). Acrescente-se ainda que manteve uma farta correspondência (uma conversa à distância...) com o abade Galiani, que lhe ensinou economia política; uma longa ligação amorosa com Melchior Grimm, diretor da "Correspondência Literária, Filosófica e Crítica"; e enfim uma estreita amizade com Diderot, um dos mais fascinantes conversadores do tempo.
Disso tudo resultaram vários livros sobre educação. Em seu romance, publicado postumamente com um título de editor, "Pseudo-Memórias", Madame d'Épinay denuncia a formação convencional que tivera. Nas "Cartas a Meu Filho" (1756), retoma os princípios gerais da nova pedagogia, que já começavam a ser formulados por gente como Rousseau e Duclos. É preciso conhecer a natureza de cada aluno e daí extrair o método mais adequado.
Depois, vem o plano de prioridades: primeiro, partir da experiência pessoal do discípulo, a fim de formar seu coração, e apenas em seguida cuidar do julgamento e do espírito, pois a finalidade da educação é principalmente moral -formar homens de bem e bons cidadãos.
Rousseau era contrário aos colégios, mas não acreditava que os pais exercessem bem o papel de educadores e, por isso, fazia do preceptor uma espécie de "pai espiritual". Louise não hesitou em divergir do mestre: ocupou-se pessoalmente de seus filhos, teorizou sobre essa experiência e atribuiu à mãe um lugar central no processo educativo, antecipando o modelo que triunfaria nos séculos 19 e 20.
A educação de seu filho foi um fracasso retumbante, mas Louise não esmoreceu. Mostrou a mesma ousadia nas "Conversações de Émilie" (1774), plano de educação para as moças que amplia o programa da "Carta à Governanta de Minha Filha" (1756).
De Fénelon a Rousseau, a pedagogia da mulher sempre tivera em vista a futura mulher, mãe e dona-de-casa. O "Emílio" pregava a submissão feminina: sua Sofia era educada para agradar o personagem masculino que dava título ao tratado. Madame d'Épinay recusa essa tradição e afirma a igualdade intelectual dos sexos e a importância dos estudos para a felicidade da mulher (recomendava literaturas francesa, inglesa, italiana e até mesmo um pouco de metafísica, moral, história, geografia e ciências sociais). A obra teve grande sucesso de crítica e, em 1783, foi premiada pela Academia Francesa.

Duas aspirações
O livro de Elisabeth Badinter é simplesmente notável: tem rigor historiográfico e fôlego narrativo. Sua conclusão sinaliza para o presente: "Madame d'Épinay personifica, no mais alto grau, a paixão materna, a ponto de querer fazer dela uma ética e uma estética. Madame du Châtelet representa a ambição pessoal e o desejo de imortalidade que a acompanha. Duas aspirações que sempre nos agradou considerar opostas e que as mulheres de nossa época já não querem dissociar. Uma é a encarnação do eterno feminino, a outra, a da virilidade, por tão longo tempo sufocada no inconsciente feminino".
Um dos maiores interesses de "Émilie, Émilie" é suscitar uma curiosa inversão de perspectiva: os "philosophes" passam da frente para o fundo do palco e aparecem como aliados ou adversários da ambição feminina. No pelotão inimigo, brilham Boileau, Fénelon, Molière -que escreveu "Les Femmes Savantes" ("As Sabichonas") para escarnecer das mulheres eruditas- e, é claro, Rousseau. Aqui, impossível não perguntar: por que diabos seria adepto da sujeição feminina alguém que tanto denunciou a servidão e que era tão cioso da própria liberdade que chegava a brigar com os amigos, caso a julgasse ameaçada?
Diderot, o "irmão inimigo" de Jean-Jacques, fica numa espécie de zona intermediária. Em seus romances, defendeu as mulheres com paixão; escreveu um ensaio encantador sobre elas, repleto de galanteios, nota Badinter, mas afinal conservador, pois as encerra no irracional, definindo-as por meio da sensibilidade e da imaginação.
Dentre os aliados, talvez uma surpresa: Descartes. Ao afirmar a completa autonomia do pensamento em relação ao corpo, ele tornou possível a igualdade intelectual entre os sexos. O cartesiano Poullain de la Barre dirá: "O espírito não tem sexo". Metafísica à parte, o "feminista" Voltaire, pensava o mesmo, se é que não julgava superiores as mulheres. Certa vez, quiçá resumindo tanto o século das Luzes quanto os anos felizes de Cirey, escreveu: "Somos de um tempo (...) em que é preciso que o poeta seja filósofo e em que a mulher pode sê-lo ousadamente".


Franklin de Mattos é professor no departamento de filosofia da USP e autor de "O Filósofo e o Comediante - Ensaios sobre Literatura e Filosofia na Ilustração" (Ed. UFMG).

Émilie, Émilie - A Ambição Feminina no Século 18
Elisabeth Badinter
Tradução: Celeste Marcondes
Discurso Editorial/Duna Dueto/Paz e Terra (Tel. 0/xx/11/3814-5383)
463 págs., R$ 47,00



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