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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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A evolução humana

MAURÍCIO DE CARVALHO RAMOS

O progresso da biologia atual tem alimentado de forma crescente o nascimento de novas soluções para problemas filosóficos tradicionais. Destaca-se nesse sentido a proposta da epistemologia evolutiva de explicar como a seleção natural tornou um sujeito biológico adequado para conhecer o mundo do qual faz parte. Sem a biologia, diz Peter Munz na obra "Philosophical Darwinism", a adequação entre sujeito e objeto do conhecimento continua a ser um problema descomunal. O livro de Robert Foley, "Os Humanos Antes da Humanidade", não apresenta tais argumentos epistemológicos, mas pode ser interpretado como parte do mesmo movimento que busca na biologia a solução de problemas nascidos fora das ciências naturais.
Como texto de antropologia física, a obra oferece um quadro da evolução humana que articula, em uma matriz darwinista, um grande conjunto de dados recentes da anatomia comparada, da paleontologia, da etologia e da ecologia. Mas esse estudo também enfrenta conhecidas aporias que surgem da tensão entre a biologia e a cultura.
No primeiro capítulo, Foley apresenta sua estratégia metodológica: "Examinar os detalhes técnicos sem perder de vista as questões mais amplas para as quais se supõe que esses detalhes possam fornecer uma resposta. O caminho para esse fim não é simplesmente registrar os dados sobre os fósseis e sobre a vida dos primatas, mas colocar esses conjuntos de dados numa estrutura teórica sólida".
Tal estrutura teórica, apresentada no segundo capítulo, é uma versão clássica do darwinismo, que o autor julga suficiente para elucidar, com os dados empíricos que organiza, um ambicioso conjunto de questões que serão desenvolvidas nos capítulos seguintes. São elas, resumidamente, "o que são os humanos?", "quando e onde eles surgiram?", "por que os humanos são tão raros e, ao mesmo tempo, tão bem-sucedidos?", "por que os humanos evoluíram e que importância tem essa evolução?". Assim formuladas, são questões que podem escapar do âmbito biológico; mas a idéia é evitar que isso aconteça, pois, para Foley, "as origens da humanidade e, em última análise, a natureza humana não são questões filosóficas, mas técnicas".
Creio que tal posição é sustentável apenas se outros elementos mais teóricos que o darwinismo estiverem operando em conjunto; dentre esses elementos, o autor adota uma estratégia reducionista clássica. Apesar de reconhecer seus méritos, julga a abordagem holística inadequada para o estudo da evolução humana, pois ela pode sugerir que os traços potencialmente únicos dos humanos atuais -bipedalismo, cérebros grandes, cultura e linguagem- surgiram e evoluíram em conjunto. Ao contrário, o exame de tais traços isoladamente é, para Foley, a melhor maneira de entender "como evoluíram as características dos hominídeos e dos humanos e como elas vieram a tomar a forma que tomaram".
Tais hominídeos -os humanos antes da humanidade- possuíram diferentes combinações dos módulos que viriam a compor o humano moderno. Foley os decompõe, examina, compara e discute para, no final, reconstruir um humano cientificamente inteligível pelo darwinismo. Mas tal resultado não fica restrito ao domínio biológico e é, então, aplicado à dimensão cultural. Pode-se tomar como síntese da posição do autor a esse respeito as palavras que encerram seu livro: "Não devemos nos deixar tapear pela singularidade de nossa espécie... Se pudéssemos ter o privilégio de observar as origens de nossa espécie e de nossa linhagem, uma coisa chamaria nossa atenção -a de que nada de muito especial aconteceu".
Mais uma vez a biologia investe contra uma tese central das ciências humanas, e, muito provavelmente, a reação será negar que possamos nos reconhecer no humano que o estudo de Foley oferece. E tal crítica procede porque o conjunto de dados científicos que, com o darwinismo, sustenta o argumento de Foley não supera os problemas epistemológicos decorrentes do tipo de reducionismo que ele pratica. A redução ocorre primeiramente no plano ontológico, ou seja, o "todo" humano é concebido como um mosaico de características biológicas e comportamentais cuja decomposição não implica perdas significativas. Mas o autor também não quer perder o sentido das amplas questões colocadas e, para tanto, é preciso reduzir em termos darwinistas as próprias perguntas. Foley parece acreditar que tal redução teórica já foi realizada, pois "o verdadeiro triunfo do darwinismo foi a tradução de perguntas irrespondíveis em perguntas que, quando modestamente adequadas, podem ser respondidas". Mas isso parece discutível.
Segundo o modelo clássico de redução de Nagel, para que tal tradução ocorra é preciso que os termos empregados nas perguntas "irrespondíveis" sejam conectados a termos da teoria redutora (o darwinismo), e, depois, as próprias perguntas -as proposições a elas associadas- devem ser deduzidas dessa mesma teoria. Muito se avançou nessa direção, mas há ainda muito mais por fazer até que se possa concluir que o darwinismo triunfou tal como Foley acredita. Ao ler os dois capítulos finais, talvez o leitor concorde que, no mínimo, ainda é muito difícil reduzir as categorias culturais às biológicas.
Ao utilizar a flexibilidade do comportamento para explicar os últimos estágios culturais da evolução, o autor reconhece que a história humana pode se afastar "das generalidades da biologia e das certezas genéticas (...), reduzindo assim o papel da evolução e a importância da seleção natural". E, surpreendentemente, conclui: "O próprio êxito da explicação evolucionista leva à sua derrocada". Foley percebe aqui uma possível ruptura e, pressentindo o perigo, evoca outra vez a redução: "O comportamento, o pensamento e até mesmo as escolhas culturais não ocorrem num vácuo, mas se erguem sobre algumas predisposições biológicas de grande importância". Faltou pouco para Foley admitir uma epistemologia evolutiva, o que, talvez, fosse uma boa opção. Os modelos tradicionais de redução teórica já foram amplamente criticados e há alternativas melhores para realizar o que Foley se propôs. Mas, para isso, é preciso ir mais fundo na epistemologia.


Maurício de Carvalho Ramos é pós-doutorando do departamento de filosofia da USP, no projeto "Estudos de Filosofia e História da Ciência" (Fapesp).

Os Humanos Antes da Humanidade
Robert Foley
Tradução: Patrícia Zimbres
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
294 págs., R$ 43,00



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