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A cidade dos prazeres
LUIS ESPALLARGAS GIMENEZ
Após a Segunda Guerra, começou a crescer a desconfiança diante
da atitude moderna na arquitetura e no urbanismo, que favoreceria
o surgimento de teorias alternativas para restaurar a credibilidade
dos projetos e planos. Robert Venturi foi um desses teóricos que ofereceu elixires e formulou conceitos para encorajar os arquitetos.
A fim de superar a crise, escreveu o tratado "Complexidade e Contradição na Arquitetura" (1966) e este manual de urbanismo,
"Aprendendo com Las Vegas" (1972). Os dois livros lidam com
idéias incomuns e correlatas. O primeiro defende uma sensibilidade
favorável às decisões complicadas, contraditórias e equívocas, apoiada num historicismo erudito. O segundo, amparado no conceito britânico de "townscape" (paisagem urbana) e estimulado pela arte
pop, insiste em assimilar às cidades materiais tais como letreiros e
outdoors.
Certos acontecimentos dessa época são sintomáticos. Em 1951,
num encontro para discutir a cidade devastada e sua reconstrução, o
filósofo Martin Heidegger fez a leitura de seu ensaio "Construir, Habitar, Pensar". Surpreenderia o argumento de que o mal-estar urbano resultava do ceticismo quanto à idéia contemporânea de habitar.
O déficit das cidades não seria suprido com a fabricação de moradias
standard, mas com a recuperação do vínculo original entre construir
e habitar, e com o consequente acordo entre homem e meio.
Também em 1951, o 8º Congresso Internacional de Arquitetura
Moderna, em Hoddesdon, atacou a arquitetura racional responsável
pelos ásperos e cinzentos conjuntos habitacionais que constituiriam
a experiência moderna. Propunha, em seu lugar, um desenho comum conduzido pela atenção aos valores históricos e culturais condensados nos centros urbanos tradicionais. Defendia-se que a construção da cidade acrescentasse significados e emblemas aos novos
espaços públicos e a integração da arquitetura ao existente.
A partir daí a paisagem urbana se tornaria decisiva e a cidade deixaria de ser apenas um assunto técnico e quantitativo, reduzido a categorias funcionais isoladas. Encolhiam-se a utopia e a visão progressista da cidade, a fim de se acatarem valores essenciais ativados por
esse existencialismo de raiz. O elogio à ágora -piazza- e à cabana
primitiva, feitos primordiais da sociabilidade e abrigo humanos,
ecoava.
Mas os autores de "Aprendendo com Las Vegas" iriam mais longe,
pois supuseram que, uma vez reconhecido o vernáculo primitivo, se
admitiria o vernáculo comercial, ou seja, o prestígio da arquitetura
comercial mais ordinária.
Em 1960, Kelvin Lynch publicou "A Imagem da Cidade"; em 1961
Gordon Cullen reuniu seus artigos na revista "Arquitectural Review"
e publicou "A Paisagem Urbana". Nesses livros a cidade, mais palpável do que nunca, tornou-se uma sucessão de imagens selecionadas
por uma atenção fugaz, avessa ao juízo e cada vez mais ocupada com
o trivial: calçadas, lugares de encontro, arquitetura sem arquitetos e
manifestações artísticas populares ou medíocres.
Urbanistas conformados trocariam a análise pelo realismo rasteiro: a paisagem colonizada pelo carro e pela comodidade "drive in". A
descrição da cidade e da paisagem segundo o movimento do automóvel foi publicada em 1964 com o sugestivo título "The View from
the Road" ("A Paisagem Vista da Estrada"), de D. Appleyard, K.
Lynch e J. R. Myer. A nova apreensão da cidade já existia: uma paisagem percebida do pára-brisa do automóvel em movimento, um
ponto de vista privilegiado para entender a estrutura de Las Vegas:
suas "strips" (corredores comerciais) construídas de acordo com
"ordens complexas" e pouco evidentes, tão gratas a Venturi.
A paisagens urbana está associada ao lugar espontâneo, cotidiano,
informal e - por que não?- ao "espalhamento" urbano e às
"strips" de luzes publicitárias. E os acostamentos conquistam espaço
como assunto urbanístico.
Composto de duas partes, "Aprendendo com Las Vegas" tem na
primeira um estudo de caso: a cidade dos prazeres, onde além de casamentos relâmpago e jogos de azar haveria o que aprender com alusões, "improvisações baratas", "oásis em desertos de asfalto" e tótens
informativos. Na segunda, se constrói a teoria das imagens referidas
à arquitetura e se absolve o ornamento do crime.
O livro também confirma como é difícil esquecer Roma e como é
vantajoso o aval da história: por isso equipara o supermercado ao bazar, o shopping center ao comércio medieval e o estacionamento dos
clientes à "evolução do espaço amplo desde Versailles". Las Vegas
evoca Roma, os cassinos recordam igrejas, e a Rota 66 é comparada à
via Appia.
"Aprendendo com Las Vegas" lembra também os pioneiros que
desafiaram o leste americano aristocrático a aceitar o deserto, onde
Las Vegas foi construída, da mesma maneira que o artista pop aceitou a sucata. Mas agem como subversivos ao não prever que suas teses, quando generalizadas, legalizam patéticas realidades urbanas
sem conferir-lhes atributos: a pior arquitetura.
A máxima "aprende-se com tudo", que providenciou o título deste
diário de viagem, poderia ter os seguintes corolários: aprende-se
mais com algumas coisas do que com outras e tudo pode encerrar alguma qualidade artística. A pertinência da arte não depende de disposição que confira atenção a tudo. O oportuno da lata de sopa de tomate Campbell's, seu desconcerto estético, dependeram menos da
atenção ao prosaico e mais de singular intuição e perspicácia.
A façanha multiplicadora das massas é diminuir a proporção de
Warhols e exacerbar o número de urbanistas inexpressivos. Se o homem comum é limitado por sua estreita compreensão, então em
suas mãos tudo será vulgar. De nada adianta um urbanismo tolerante referido a um mundo feio e banal que reproduza bizarrias, e de nada serve sua interpretação mais ilustrada, se obscura para a maioria.
Luis Espallargas Gimenez é arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Aprendendo com Las Vegas - O Simbolismo
(Esquecido) da Forma Arquitetônica
Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour
Cosac & Naify (Tel.0/xx/11/32181444)
224 págs., R$ 39,00
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