São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

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O país do sol nascente

SHEILA SCHVARZMAN

No momento em que se comemoram os 90 anos da imigração japonesa no Brasil, Celina Kuniyoshi escolheu uma forma original para trazer de volta aspectos dessa experiência. Em vez de tomar como foco central do seu trabalho o discurso do imigrante, suas venturas e desventuras, foi buscar na narrativa de viajantes brasileiros no Japão, publicada entre 1874 e 1952, o reverso daquilo que os japoneses viviam como imigrantes no Brasil -a estranheza da diferença, a exaltação de certas características e o preconceito em relação a outras. Nesse emaranhado de olhares, "Imagens do Japão" aponta a exotização do olhar nacional sobre o japonês e as próprias aspirações dos brasileiros em relação ao seu país.
Ao escolher esse percurso de dupla mão, a autora procurou revelar não somente facetas dos japoneses no Japão e como estas foram apreendidas no seu contato com os ocidentais e no Brasil, como, sobretudo, as formas do encontro que pautam a própria imigração em geral, aspecto constituinte do amálgama identitário brasileiro. Nesse vaivém de olhares, revela-se o imaginário nacional em relação a uma cultura que, como a brasileira, é identificada como exótica.
A questão da imigração serve, assim, de porta de entrada para a análise das questões que suscita e que são hoje tão atuais: a sedução e o medo da diferença, a necessidade de anulá-la ou transformá-la pela exotização, a sua assimilação ou a negação pura e simples, o preconceito e o racismo.
Para chegar a essas formulações, o livro historia os vários encontros dos ocidentais com os japoneses, desde o relato de Marco Polo, passando pela descoberta do Japão pelos portugueses em 1542 e, no século 19, pelos europeus e norte-americanos, que inauguram um ciclo de exotização que penetra no Ocidente, criando o japonismo -a significativa influência da cultura nipônica no campo da arte, sobretudo na pintura, durante o impressionismo, com posteriores desdobramentos na arquitetura, na literatura ou no teatro. A ligação particular e simbiótica dos japoneses com o passado, a natureza e sua expressão na arte e no próprio cotidiano, só aumentam o fascínio ocidental, que se redobra pela igual adesão dos japoneses às mudanças que os aproximam rapidamente daquilo que os ocidentais viam como benefícios levados por sua civilização: a modernização de hábitos, a industrialização, a educação laica.
Essa viagem proposta por "Imagens do Japão" nos lança nesse mundo ao mesmo tempo tão próximo -já que convivemos com descendentes de japoneses- e tão distante -habitado por imagens contraditórias, que vão da delicadeza dos gestos à agressividade suicida, da persistência de costumes à transformação vertiginosa que tanto atraíram e ainda atraem a atenção dos estrangeiros. Mas o que se pode perceber como marca original desse trabalho é trazer à luz o relato de brasileiros como viajantes.
A literatura de viajantes no Brasil constitui parte significativa do próprio conhecimento produzido sobre os brasileiros e sua própria terra. Não seria demais lembrar que a definição de como escrever a história nacional, num primeiro esforço consciente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, se configurou a partir das diretivas estabelecidas pelo naturalista alemão Von Martius, em 1843. Há alguns anos, a historiografia brasileira vem retomando essas mesmas produções, apontando, a partir delas, como o território, as práticas sociais, corporais ou a formação multirracial construíram o Brasil como um país exótico. A natureza tropical, exuberante e grandiosa, terminou por conformar, nesses discursos, o lastro que definiu o Brasil como uma nação única e ao mesmo tempo inserida no Ocidente.
Ao reunir e analisar a visão dos 23 brasileiros que publicaram suas experiências no Japão entre os anos de 1874 a 1952 -do testemunho de embaixadores, militares, educadores, ao de um padre, do médico Juliano Moreira ou mesmo de Custódio de Mello, em sua "Viagem de Circunavegação" no cruzador Barroso em 1896-, Kuniyoshi procura demonstrar que esses olhares não se desprendem do viés etnocêntrico que marcava a própria visão de viajantes europeus sobre o Brasil.

A OBRA
Imagens do Japão - Uma Utopia de Viajantes Celina Kuniyoshi Estação Liberdade/Fapesp (Tel. 011/3824-0020) 159 págs., R$ 22,00



Mas, se estes atribuíam caráter exótico ao território brasileiro, no caso dos viajantes brasileiros o viés é outro. O que se vê como exótico é, antes de tudo, uma relação específica com o tempo. A convivência e a persistência do passado no presente, nos hábitos, nas edificações, na maneira de vestir e de cultuar a natureza, davam à cultura japonesa, aos olhos dos brasileiros, o seu caráter único e típico, acrescido pela vocação nipônica de assimilação voraz e bem-sucedida de práticas que subvertiam hábitos seculares.
Portanto, mais do que a estranheza com relação ao tratamento reservado às mulheres, considerado por demais atrasado, à relação "permissiva" com o corpo (entre outros costumes correntes até as leis criadas a partir da restauração Menji, na segunda metade do século 19, os banhos públicos eram mistos e era frequente as mulheres passearem nas ruas com os seios descobertos), ou ainda à admiração pela noção de honra, é na manutenção das práticas de culto aos antepassados, em que os sinais do passado persistem no presente, que mobilizam o interesse dos brasileiros.
Essas constatações são eloquentes sobre a maneira como o imaginário brasileiro exotiza e deseja no outro aquilo que vê como a sua própria carência: a paciência, a operosidade, o reconhecimento e preservação das heranças, o equilíbrio entre tradição e progresso.
Essas observações são muito similares às feitas pelos jesuítas portugueses que, até meados do século 17, viveram no país. E são também atributos como os descritos acima que parecem ter chamado a atenção dos responsáveis pela vinda de imigrantes japoneses para o Brasil, onde, trabalhando na lavoura, no interior do país, deveriam cumprir esse papel imaginariamente civilizador.
Dessa forma, "Imagens do Japão" recupera ao mesmo tempo o imaginário construído por brasileiros sobre o país exótico e seu reverso: o imaginário da imigração japonesa no Brasil. Ao fazê-lo, coloca seu leitor diante de um jogo de espelhos, em que um intrincado sistema de trocas se estabelece a partir do estranhamento e das identidades que se criaram ao longo do tempo entre duas culturas distantes, e ao fim do qual terminamos por identificar também o nosso exotismo.
Nesse sentido, a própria autora parece sugerir, na composição narrativa do livro -ainda que talvez de forma não consciente-, os paradoxos envolvidos nessa aproximação. Assim, para escapar da repetição da palavra "Japão", designa-o várias vezes como "país ou terra das cerejeiras", "país do sol nascente", "país dos samurai", como a reiterar em seu discurso os próprios signos que busca desvendar, e parecendo por vezes aderir, ela mesma, a essa mitologia de mistérios. O uso da metáfora parece assinalar que o imaginário sobre o Japão não cede facilmente à sua própria concretude.


Sheila Schvarzman é doutoranda em história na Unicamp e pesquisadora do Condephaat.



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