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Ledo e cego engano d'alma
JOSÉ LEONARDO DO NASCIMENTO
O título alude imediatamente ao conteúdo do
volume -ensaios bordados e crônicas jornalísticas pontuais- e a um procedimento analítico que alinhava,
harmoniza e confere consistência
às diversas partes da coletânea. A
análise, essencialmente histórica,
de um fato que se apresenta ao autor às vezes de forma casual, é um
convite a uma viagem no tempo, a
uma digressão temporal. Exemplo
típico desse procedimento foi o
encontro surpreendente no Museu de Arte Regional de São João
del Rei, Minas Gerais, de duas toalhas bordadas pelo marinheiro
João Cândido, líder da revolta da
marinha de 1910. O achado tinha
algo de insólito. Um marinheiro
rude, bruto, semi-analfabeto e, no
entanto, dedicado à delicadeza da
arte do bordado. É o que existe de
estranho nas toalhas bordadas de
João Cândido que incita a curiosidade e faz emergir o passado e os
acontecimentos que compuseram
a Revolta da Chibata.
"Pontos e Bordados" é uma
tessitura de inúmeras digressões
metódicas voltadas, sobretudo,
para os aspectos da cultura política brasileira. José Murilo de Carvalho é um especialista, e dos
maiores, na história do Segundo
Reinado e da Primeira República.
Escreveu obras fundamentais sobre esses períodos, como "Teatro
de Sombras", "A Construção da
Ordem", "A Formação das Almas", e volta nesta coletânea, mas
de maneira não exclusiva, a navegar em mar aberto por essas águas.
Há ensaios sobre a escravidão, a
República, as noções de liberdade
dos antigos e dos modernos, o positivismo, o mandonismo político,
o pensamento de Oliveira Viana.
A démarche é quase sempre comparativa. O autor confronta, no
ensaio sobre o abolicionismo,
"Escravidão e Razão Nacional",
a ambiguidade do catolicismo luso-brasileiro com a oposição decisiva e nítida do cristianismo reformado dos quakers e dos batistas
diante da questão da escravidão. O
mundo ibérico, católico, estatista
e hierárquico é com frequência
entrevisto na relação com o seu
outro, anglo-saxão, liberal, protestante, centrado no princípio da
livre interpretação da Bíblia e
"pour cause" individualista.
José Murilo reutiliza a concepção de oposição, estudada no
"Espelho de Próspero", de Richard Morse, entre a América ibérica e a anglo-saxã, entre comunitarismo e individualismo, integração e conflito. Muito de nossa história é entendido por meio dessa
dicotomia. Compreenderíamos
assim por que o holismo positivista ajustou-se tão bem ao figurino
brasileiro no século 19 ou por que
a nossa República foi tão avessa,
na prática bem mais do que na
teoria, aos modelos da República
clássica e/ou moderna. A excelente análise da "natureza da investigação histórica", das "fontes intelectuais" e da "utopia política"
de Oliveira Viana retoma o dualismo iberismo e mundo anglo-saxão. O tradicionalismo iberista de
Oliveira Viana, em oposição ao
americanismo de Tavares Bastos,
explicaria as posições políticas do
autor de "Populações Meridionais do Brasil" e a sua "recusa da
modernidade". Particularmente
interessante é a referência a uma
"família política iberista" de longa duração que, de José Bonifácio
de Andrade, alcançaria o sociólogo contemporâneo Guerreiro Ramos, passando por Visconde de
Uruguai, Sílvio Romero, Alberto
Torres e o próprio Oliveira Viana.
Fica-nos da leitura do livro a sugestão que a interpretação do Brasil supõe a transgressão dos limites da história brasileira. O Brasil
considerado em si mesmo, isoladamente, não seria jamais compreendido.
Nas crônicas publicadas sobretudo no "Jornal do Brasil", o autor compõe novamente os fatos da
história política brasileira com a
história ampla das revoluções,
francesa ou norte-americana; embora o articulista continue historiador, o cronista guarda no estilo
um sabor machadiano. Como Machado, a partir de um fato presente, frequentemente noticiado pelos jornais, a mão se libera. Mas
Machado viajava no espaço por
meio das páginas dos cotidianos
de sua época. Uma notícia o conduzia a outra, a um fato ocorrido
em outro lugar, e desta a outra e
assim consecutivamente. O espetáculo variegado do mundo ganhava, na pena do mestre, um colorido óptico. José Murilo, historiador, recua no tempo, e as crônicas de "Pontos e Bordados" não
são, ao que parece, expressão de
alguma forma de ceticismo. Seu
pressuposto é outro. Um fio de inteligibilidade perpassa os "Pontos
e Bordados", tornando exequível
a digressão temporal: as questões
pendentes da política brasileira
contemporânea são herança de
pendências mais antigas, fantasmas ou legados insolúveis do passado.
A OBRA
Pontos e Bordados. Escritos
de História e Política
José Murilo de Carvalho
Editora da UFMG (Tel. 031/499-4650)
462 págs, R$ 38,00
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José Murilo parece situar o impasse ou os impasses históricos
brasileiros na consolidação da Primeira República ou sobretudo no
seu fracasso em instituir, de acordo com a etimologia de seu nome,
a coisa pública no país. No comentário sobre a correspondência ativa de Euclides da Cunha, publicada no ano passado pela Edusp,
percebe-se que o que mais o atrai é
a desilusão pela República manifestada pelo autor de "Os Sertões", antigo republicano convicto. Ao fracasso da República,
acrescenta-se a tradição comunitária iberista impermeável à concepção clássica da cidadania. Mas
talvez aí, nessa perspectiva crítica,
José Murilo não esteja sozinho.
Há famílias de pensadores brasileiros, entre os quais se situam os
críticos da Primeira República,
compreendendo Euclides da Cunha, que descrêem, alegando razões de formação histórica, na vigência das liberdades políticas,
adjetivadas como clássicas, no
Brasil. José Murilo de Carvalho,
concebendo como contra-reformista, católico, hierárquico, o
nosso passado, o oposto das condições históricas em que foram geradas as liberdades modernas, não
reatualizaria essa descrença, formando, por alguns aspectos, naquela corrente de opinião anti-republicana? Além disso, a noção de
iberismo assemelha-se, nos ensaios, a uma chave mestra capaz
de abrir mil portas e de explicar
uma profusão formidável de fenômenos. A noção, se não for verdadeira do ponto de vista da pesquisa histórica, é pelo menos prática.
Também não fica claro se é iberismo, teoria sobre o Brasil ou, simultaneamente, teoria e realidade
irmanadas num ajuste único e sem
mediação. A tradição histórica luso-brasileira seria de fato comunitária ou nosso comunitarismo,
"ledo e cego engano d'alma", seria um comunitarismo sem comunidade?
José Leonardo do Nascimento é professor de
história da cultura do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista.
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