São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

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Ledo e cego engano d'alma

JOSÉ LEONARDO DO NASCIMENTO

O título alude imediatamente ao conteúdo do volume -ensaios bordados e crônicas jornalísticas pontuais- e a um procedimento analítico que alinhava, harmoniza e confere consistência às diversas partes da coletânea. A análise, essencialmente histórica, de um fato que se apresenta ao autor às vezes de forma casual, é um convite a uma viagem no tempo, a uma digressão temporal. Exemplo típico desse procedimento foi o encontro surpreendente no Museu de Arte Regional de São João del Rei, Minas Gerais, de duas toalhas bordadas pelo marinheiro João Cândido, líder da revolta da marinha de 1910. O achado tinha algo de insólito. Um marinheiro rude, bruto, semi-analfabeto e, no entanto, dedicado à delicadeza da arte do bordado. É o que existe de estranho nas toalhas bordadas de João Cândido que incita a curiosidade e faz emergir o passado e os acontecimentos que compuseram a Revolta da Chibata.
"Pontos e Bordados" é uma tessitura de inúmeras digressões metódicas voltadas, sobretudo, para os aspectos da cultura política brasileira. José Murilo de Carvalho é um especialista, e dos maiores, na história do Segundo Reinado e da Primeira República. Escreveu obras fundamentais sobre esses períodos, como "Teatro de Sombras", "A Construção da Ordem", "A Formação das Almas", e volta nesta coletânea, mas de maneira não exclusiva, a navegar em mar aberto por essas águas.
Há ensaios sobre a escravidão, a República, as noções de liberdade dos antigos e dos modernos, o positivismo, o mandonismo político, o pensamento de Oliveira Viana. A démarche é quase sempre comparativa. O autor confronta, no ensaio sobre o abolicionismo, "Escravidão e Razão Nacional", a ambiguidade do catolicismo luso-brasileiro com a oposição decisiva e nítida do cristianismo reformado dos quakers e dos batistas diante da questão da escravidão. O mundo ibérico, católico, estatista e hierárquico é com frequência entrevisto na relação com o seu outro, anglo-saxão, liberal, protestante, centrado no princípio da livre interpretação da Bíblia e "pour cause" individualista.
José Murilo reutiliza a concepção de oposição, estudada no "Espelho de Próspero", de Richard Morse, entre a América ibérica e a anglo-saxã, entre comunitarismo e individualismo, integração e conflito. Muito de nossa história é entendido por meio dessa dicotomia. Compreenderíamos assim por que o holismo positivista ajustou-se tão bem ao figurino brasileiro no século 19 ou por que a nossa República foi tão avessa, na prática bem mais do que na teoria, aos modelos da República clássica e/ou moderna. A excelente análise da "natureza da investigação histórica", das "fontes intelectuais" e da "utopia política" de Oliveira Viana retoma o dualismo iberismo e mundo anglo-saxão. O tradicionalismo iberista de Oliveira Viana, em oposição ao americanismo de Tavares Bastos, explicaria as posições políticas do autor de "Populações Meridionais do Brasil" e a sua "recusa da modernidade". Particularmente interessante é a referência a uma "família política iberista" de longa duração que, de José Bonifácio de Andrade, alcançaria o sociólogo contemporâneo Guerreiro Ramos, passando por Visconde de Uruguai, Sílvio Romero, Alberto Torres e o próprio Oliveira Viana. Fica-nos da leitura do livro a sugestão que a interpretação do Brasil supõe a transgressão dos limites da história brasileira. O Brasil considerado em si mesmo, isoladamente, não seria jamais compreendido.
Nas crônicas publicadas sobretudo no "Jornal do Brasil", o autor compõe novamente os fatos da história política brasileira com a história ampla das revoluções, francesa ou norte-americana; embora o articulista continue historiador, o cronista guarda no estilo um sabor machadiano. Como Machado, a partir de um fato presente, frequentemente noticiado pelos jornais, a mão se libera. Mas Machado viajava no espaço por meio das páginas dos cotidianos de sua época. Uma notícia o conduzia a outra, a um fato ocorrido em outro lugar, e desta a outra e assim consecutivamente. O espetáculo variegado do mundo ganhava, na pena do mestre, um colorido óptico. José Murilo, historiador, recua no tempo, e as crônicas de "Pontos e Bordados" não são, ao que parece, expressão de alguma forma de ceticismo. Seu pressuposto é outro. Um fio de inteligibilidade perpassa os "Pontos e Bordados", tornando exequível a digressão temporal: as questões pendentes da política brasileira contemporânea são herança de pendências mais antigas, fantasmas ou legados insolúveis do passado.

A OBRA
Pontos e Bordados. Escritos de História e Política José Murilo de Carvalho Editora da UFMG (Tel. 031/499-4650) 462 págs, R$ 38,00



José Murilo parece situar o impasse ou os impasses históricos brasileiros na consolidação da Primeira República ou sobretudo no seu fracasso em instituir, de acordo com a etimologia de seu nome, a coisa pública no país. No comentário sobre a correspondência ativa de Euclides da Cunha, publicada no ano passado pela Edusp, percebe-se que o que mais o atrai é a desilusão pela República manifestada pelo autor de "Os Sertões", antigo republicano convicto. Ao fracasso da República, acrescenta-se a tradição comunitária iberista impermeável à concepção clássica da cidadania. Mas talvez aí, nessa perspectiva crítica, José Murilo não esteja sozinho.
Há famílias de pensadores brasileiros, entre os quais se situam os críticos da Primeira República, compreendendo Euclides da Cunha, que descrêem, alegando razões de formação histórica, na vigência das liberdades políticas, adjetivadas como clássicas, no Brasil. José Murilo de Carvalho, concebendo como contra-reformista, católico, hierárquico, o nosso passado, o oposto das condições históricas em que foram geradas as liberdades modernas, não reatualizaria essa descrença, formando, por alguns aspectos, naquela corrente de opinião anti-republicana? Além disso, a noção de iberismo assemelha-se, nos ensaios, a uma chave mestra capaz de abrir mil portas e de explicar uma profusão formidável de fenômenos. A noção, se não for verdadeira do ponto de vista da pesquisa histórica, é pelo menos prática. Também não fica claro se é iberismo, teoria sobre o Brasil ou, simultaneamente, teoria e realidade irmanadas num ajuste único e sem mediação. A tradição histórica luso-brasileira seria de fato comunitária ou nosso comunitarismo, "ledo e cego engano d'alma", seria um comunitarismo sem comunidade?


José Leonardo do Nascimento é professor de história da cultura do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista.



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