São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

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Retratos e relatos de Tarsila

NÁDIA BATTELLA GOTLIB

Tarsila Cronista
Organização de Aracy Amaral
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4008)
248 págs., R$ 25,00

A Tarsila do Amaral pintora e desenhista tem chegado ao público com frequência, por intermédio de exposições e reproduções de sua obra. Já os textos que escreveu não tiveram a mesma sorte. Embora não possam ser comparados, quanto à importância, com a sua obra plástica, são no entanto documentos vivos de uma época, sobretudo por esclarecerem pontos referentes à história do nosso modernismo. Esparsos em jornais e revistas ou depositados em arquivos, aguardavam uma publicação.
Neste volume de crônicas não figuram todos os textos que Tarsila escreveu na imprensa. A intenção foi incluir algumas crônicas publicadas no "Diário de S. Paulo" durante os 20 anos (1936-1956) em que a cronista aí colaborou. De fato, considerando a totalidade dos textos, são poucos os que não foram publicados nesse jornal: alguns foram aparecendo paralelamente em "O Jornal", no Rio de Janeiro, e outros foram publicados em revistas. Justamente por serem poucos os que fogem do critério é que me pergunto se não teria sido essa uma boa oportunidade de incluir também aqueles poucos mas fundamentais textos, já quase inacessíveis ao leitor. É o caso, para citar apenas um exemplo, de "França, Eterna França", publicado na "Revista Acadêmica" em 1946, em que a artista expõe, também sob a forma de depoimento, mas com certa disciplina na organização dos dados, um retrospecto de sua vida pessoal e artística.
Se o critério existe em razão da necessidade de estipular limites de extensão ao volume, vamos então ao que ali se inclui. Há um bom repertório de crônicas que oferecem agradável e substancioso passeio pelos lugares que Tarsila percorreu e nos põem diante de pessoas, sobretudo artistas, que ela foi conhecendo ao longo da vida. A menina "caipira" de Capivari, cidade do interior paulista, de família quatrocentona, decidiu estudar artes em São Paulo e em Paris, vindo a conhecer o grupo da Semana de 22 e artistas famosos que viviam na França. Por isso a organizadora privilegia as crônicas que se referem a esse período do modernismo, pautado por uma movimentada vida artística.
Mas as crônicas são agradáveis de ler principalmente pelo modo como tais fatos e ainda outros, referentes a literatura, música, publicidade e educação física, aí são relatados ou comentados, pois a artista se vale, e bem, das faculdades que o próprio gênero narrativo da crônica lhe oferece: apresenta o fato pescado em flagrante e usa um tom despojado e despretensioso, como se fosse uma conversa.
Não há, pois, nem prepotência nem rebuscamento artificioso. Se há exagero é na direção contrária: uma simplicidade que por vezes se confunde com generalizações e algo de simplório que não prejudica as suas sempre bem-vindas, ainda que amenas, olhadelas de cunho crítico. Acrescente-se ainda a qualidade de Tarsila cronista enquanto exímia retratista -legado que lhe pode ter chegado, ainda que com outros instrumentos, pela via das artes plásticas. Assim, nos seus melhores momentos, as crônicas são apresentações de artistas famosos, vistos por uma admiradora entusiasmada que procura tirar daí lições úteis para o seu "métier" artístico. Com elegância discreta e saudável, aproxima-nos, gradativamente, de figuras que vão sendo pouco a pouco construídas, ao adentrar os seus respectivos espaços de trabalho e aí nos revelar o que foi "experimentar" a arte de Brancusi, de De Chirico, de Picasso, em Paris, ou de Brecheret, em São Paulo.
Às vezes, um simples motivo desencadeia todo um processo de lembrança. Com a chegada de Noêmia e Di Cavalcanti, por exemplo, chegam as "notícias de Paris", de amigos que lá deixou. Ao ler "La Vie Dangereuse", de Blaise Cendrars, é levada a rememorar a "efervescência criadora" dos tempos em que conviveram, nos anos 20, quando oferecia a ele e a outros artistas do grupo os "almoços brasileiros" com feijoada, compota de bacuri, pinga e cigarros de palha, no seu ateliê da rua Hégésippe Moreau, em Montmartre.
Natural que, paralelamente a tais lugares e gentes, venham detalhes importantes para a história das artes na França e no Brasil: as lições dos mestres Lhote, Léger e Gleizes; as primeiras coleções e grandes exposições de arte no Brasil. Numa galeria de tamanha dimensão, cabem crônicas sobre grandes amigos, como Mário de Andrade e a pianista Magdalena Tagliaferro. E, tal como ao praticar a arte pau-brasil e a antropofagia, adota mão dupla: valoriza a tecnologia européia e a cultura popular brasileira, admirando tanto a técnica de Lumière, que lhe valeu papel proeminente na história do cinema, quanto a arte caipira de Nhô Totico, nos seus programas de rádio.
A cronista adere, também, a um feminismo dúbio, comum, aliás, na época, ao mesmo tempo inovador (ao reconhecer a tão necessária consideração das diferenças) e conservador (quanto à crença de que os homens têm mais ousadia na concepção criativa do que as mulheres). E há lugar para outros assuntos, como dicas para não envelhecer, que colhe de livro recentemente publicado...
As crônicas apresentam, pois, de modo geral, uma grande qualidade: manifestam com serena firmeza a postura de uma mulher atuante, de opinião, com um passado significativo e que alimentou experiência bastante digna de ser contada.
Faço, no entanto, uma última observação: a listagem das crônicas publicadas no "Diário de S. Paulo", que a organizadora faz constar no final do volume, não é completa. Assim sendo, uma das crônicas que mais bem traduzem a "atmosfera" das reuniões de Tarsila em Paris com o grupo modernista, intitulada "Tovalú", publicada no "Diário" em duas ocasiões (08/21/1937 e, com o título de "Um Príncipe Negro", em 28/10/ 1951), não figura nessa listagem geral e, consequentemente, nem teve a chance de ser selecionada para figurar na antologia. Eis uma prova de que recorrer às fontes torna-se tarefa útil, até imprescindível, em trabalhos dessa natureza.


Nádia Battella Gotlib é professora de literatura brasileira na USP e autora, entre outros livros, de "Tarsila do Amaral, a Modernista" (Senac).



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