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O signo da perda
LEILA GOUVÊA
Poesia Completa de Cecília Meireles
Organização de Antonio Carlos Secchin
Nova Fronteira (Tel. 0/xx/21/2337-8770)
1.088 págs. (Tomo 1), 1.040 págs. (Tomo 2)
R$ 177,00
Dentre as múltiplas celebrações e homenagens promovidas
em 2001 por ocasião do centenário de nascimento de Cecília
Meireles -seminários, recitais, exposições, edições de livros da
e sobre a poeta-, consistiu num dos pontos mais altos o relançamento de sua "Poesia Completa", em edição agora em dois
volumes, totalmente reformulada e belamente redesenhada, a
qual pela primeira vez insere a plaquetezinha de estréia "Espectros", de 1919. Por decisão do organizador desta "edição do centenário", a vasta produção poética da escritora -perto de 1.500
poemas distribuídos em 30 livros, 11 dos quais póstumos- pela
primeira vez é apresentada segundo critério prioritariamente
cronológico, que desconsidera a linha divisória estabelecida pela autora entre sua obra de maturidade e a de juventude. O objetivo dessa opção é permitir ao leitor "acompanhar o desdobramento do projeto criador de Cecília".
Essa é a primeira de uma série de inovações importantes em
relação às quatro edições da obra poética ceciliana anteriormente publicadas pela Nova Aguilar. Comecemos por "Espectros". O legendário livrinho, misteriosamente desaparecido até
de bibliotecas, como a "Mário de Andrade", em São Paulo, traz
17 sonetos de dicção parnasiana escritos antes que a autora tivesse completado 17 anos. Mas as referências intertextuais indicam que a jovem poeta já acumulara um acervo considerável de
leituras, a começar pela epígrafe de François Coppée, além de
menção a Beaumarchais, à cultura hindu e possíveis alusões a
Nietzsche e a Mallarmé -neste caso, no soneto "Herodíada", o
oitavo da plaquetezinha. Segundo Secchin, esses sonetos (lembre-se que Cecília muito raramente retomaria esse formato na
obra de maturidade) em nada ficaram a dever aos produzidos
por muitos de nossos poetas no pré-modernismo. Já o prefácio
de Alfredo Gomes, professor de Cecília na Escola Normal do
Rio de Janeiro, consiste em documento esclarecedor, também
em relação à personalidade da jovem normalista.
A apresentação em sequência cronológica dessa talvez agora
toda poesia inova principalmente em relação à edição de 1994,
que já trazia grande parte dos poemas póstumos, como as coleções "Poemas de Viagens", "Sonhos" e "O Estudante Empírico", além dos textos agora enfeixados sob a rubrica "Dispersos".
Vale lembrar que Cecília, pouco antes de morrer, teria expressado dúvidas quanto à publicação desse material, por ela previamente reunido, embora não tendo passado pelo crivo de sua releitura e seleção. Com efeito, em grande parte esses textos,
acrescentados por iniciativa de Darcy Damasceno à edição da
obra poética em brochura (publicada na década de 70 em nove
volumes pela Civilização Brasileira), consistem em registros
poéticos -pequenas reminiscências transfiguradas, anotações
líricas sobre o cotidiano, divagações sobre aqueles mesmos
questionamentos metafísicos que percorrem toda a sua lírica,
glosas da tradição trovadoresca, alguns desabafos.
Mas mesmo os "Dispersos", aparentemente o segmento póstumo menos trabalhado e acabado pela autora, reúnem alguns
poemas belos ou importantes, como o conhecido "Cantar de
Vero Amor", além do irônico "Campeonato", "Tristeza Gloriosa", "O Morto", "Máquina Breve" ou "Recitativo Próximo a um
Poeta Morto", este podendo ser incluído na "família" de poemas iluminadores de sua poética: "Jaz um Poeta. (...) O que às
vezes se evaporava numa espiral de assombros, /outras, passeava no cotidiano, muito naturalmente, (...)". Dentre as coleções
de publicação póstuma mais bem realizadas, cumpre destacar
"Poemas Italianos", em que é possível identificar grandes poemas, como "Discurso ao Ignoto Romano" ou "O Que Me Disse
o Morto de Pompéia".
Outra novidade da edição diz respeito tanto à iconografia como ao aparato crítico e biográfico introdutório, que vinham se
repetindo desde a primeira publicação da "Obra Poética", em
1958 -esta de algum modo assistida por Cecília. Novas fotos e
desenhos da escritora foram anexados, enquanto os excertos de
artigos assinados por grandes nomes da crítica -Mário de Andrade, Murilo Mendes, Paulo Rónai- foram substituídos pelos
"abstracts" destes mesmos textos e de outros, em sua maioria livros e teses acadêmicas sobre a poeta carioca, numa boa amostragem de sua vasta fortuna crítica, elaborada e selecionada pela
professora Ana Maria Domingues de Oliveira.
Mas a principal alteração foi a substituição do excelente, embora incompleto, ensaio introdutório de Darcy Damasceno por
um texto mais abrangente e de extração acadêmica, "Cecília
Meireles e o Tempo Inteiriço" -cujo título aproveita o fragmento de um verso do poema "Mar Absoluto"-, de autoria de
Miguel Sanches Neto. Especialmente no que concerne à abordagem da obra imatura da poeta, e incluindo a obra de transição
("Cânticos" e "Morena Pena de Amor"), o ensaio de Sanches
Neto traz contribuições relevantes. O estudioso flagra a escritora desde o primeiro soneto de "Espectros", com o olhar mergulhado e "exausto a tanto estudo" -rito de passagem da poeta
quando jovem rumo à conquista da voz própria encontrada na
maturidade, e que viria a ser tema do livro "O Estudante Empírico"-, e avança a tese do peso que a precoce orfandade teria
desempenhado na formação da poética ceciliana, edificada sob
e sobre o "signo da perda" ou da ausência. Pena que Sanches
não tenha destrinçado uma das mais ousadas (e interessantes)
afirmações do estudo, a de que foi Cecília "o poeta brasileiro que
melhor fez a passagem dos valores do século 19 para os do século 20".
"Os ares fogem, viram-se as águas/ mesmo as pedras, com o
tempo, mudam", disse a heraclitiana Cecília no poema "Valsa",
de "Viagem". Também a edição de sua "Poesia Completa" mudou e, em múltiplos aspectos, para melhor. Restaram algumas
incógnitas; por exemplo, o verso "protejo-me num abraço/ e gero uma despedida", da "Canção Excêntrica" ("Vaga Música")
-esta é a grafia que aparece na primeira edição da "Obra Poética"-, permaneceu "projeto-me num abraço", em conformidade com as edições posteriores. Contudo grande parte das desconcertantes gralhas da edição de 1994 foi corrigida. O que contribui para, retomando a expressão de Alfredo Bosi sobre a poeta, reinstaurar o "círculo mágico" que a releitura de grande número de poemas cecilianos continua capaz de criar.
Leila Gouvêa é doutoranda em literatura brasileira na USP e autora de "Cecília
em Portugal" (Iluminuras).
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