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Nova edição de "PanAmérica", romance vanguardista de José Agrippino de Paula escrito nos anos 60, é comentada pelo
ensaísta Celso Favaretto
A outra América
PanAmérica
José Agrippino de Paula
Papagaio
(Tel. 0/xx/11/3051-5544)
258 págs., R$ 25,00
CELSO FAVARETTO
Notável foi o ano de 1967: "Terra em
Transe", "O Rei da Vela", "Nova Objetividade Brasileira", o ambiente "Tropicália", de Hélio Oiticica, a explosão das canções tropicalistas e este livro lendário,
mas até agora pouco conhecido, de um
artista também lendário.
No prefácio desta nova edição de "PanAmérica", Caetano Veloso lembra o impacto do livro antes do aparecimento de
suas canções tropicalistas -uma informação importante, pois esclarece ainda
mais a concomitância de referências que
presidiram aquelas produções. Com efeito, é evidente a sintonia entre o modo de
enunciação em muitas dessas canções, a
narrativa de Agrippino, as imagens visuais de artistas da "Nova Figuração" e o
ambiente de Oiticica. As semelhanças são
estruturais, de linguagem e operação de
descentramento cultural. Construtivistas
e dessacralizadoras, elas recolocam as relações entre fruição estética e crítica social fora dos parâmetros fixados pela
oposição entre experimentalismo e participação, enfatizando não os temas, mas
os processos e procedimentos.
Nos anos seguintes, o interesse por
Agrippino e seu livro só se fez confirmar.
Em 1976, Gilberto Gil musicou um fragmento do livro com o título "Eu e Ela Estávamos Ali Encostados na Parede", canção incluída no disco "Doces Bárbaros";
em 1977, em "Gente", Caetano cita Agrippino como um dos que são "gente espelho da vida/ doce mistério"; no ano seguinte, em "Sampa", junto a marcas e
emblemas culturais de São Paulo, o livro
de Agrippino também comparece na cascata de referências ("panaméricas de áfricas utópicas túmulo do samba mas possível novo quilombo de zumbi").
Em 1981,o número 5 de "Arte em Revista", dedicada à documentação e análise
da produção artístico-cultural do final
dos anos 60 e inícios de 70, reproduzia
textos de Agrippino acerca de "Rito do
Amor Selvagem", encenação multimídia
inovadora, concebida por ele e Maria Esther Stokler, em 1968-69, a partir de alguns fragmentos da peça "Nações Unidas", escrita por Agrippino em 1966 e
ainda inédita.
E, finalmente, em 1988, a editora Max
Limonad relançou "PanAmérica", com a
mancha gráfica do texto semelhante à esplendorosa edição original. A segunda
edição também passou despercebida e,
depois disso, fez-se um longo silêncio sobre o livro, até agora.
Já em 1965 o aparecimento de "Lugar
Público", seu primeiro romance, foi surpreendente na produção daquele tempo.
No horizonte de uma literatura marcada
pela temática da participação política,
quer pela via da instrumentalização da
linguagem, quer pela alegorização da revolução, que se acreditava em curso, o livro de Agrippino destoava pela forma
com que tais temas apareciam. Destoava
também de algumas poucas tentativas na
ficção, que nem chegaram a se consolidar
como obras, de fazer nesse gênero o que
se fazia na poesia experimental de várias
extrações.
O livro mostra assimilação singular dos
processos básicos das invenções literárias
do século 20. A narrativa flui ininterruptamente, sem divisão de capítulos e seccionamento de lugar ou tempo, como assinalou, com seu apurado faro para os talentos que surgiam, o crítico Nogueira
Moutinho: "Tecnicamente um romance
sem assunto, (...) escrito sem luvas, sem
assepsia, sem desinfecções prévias, romance em estado bruto, no qual se dá
transmutação da realidade em linguagem". Aqui já aparece a representação da
realidade moderna, mais precisamente
da banalidade cotidiana, como um cenário, em que a vida moderna representa-se
como espetáculo.
Insipidez, maquinismo, velocidade, multidões, anúncios, cinema, mitologias da cultura de massa -índices da vida urbana da sociedade industrial que reapareceriam em "PanAmérica"-, compõem uma narrativa sem história.
Os objetos e os acontecimentos
carecem de presença, pois o excesso de visibilidade desvaloriza
suas imagens.
Entretanto, se "Lugar Público" é
um romance em que ainda se reconhecem elementos da profundidade, embora não psicológica,
da narrativa moderna, pois enfatiza a reflexão sobre a banalização
da experiência e o esvaziamento
da consciência, "PanAmérica" já
não é um romance. Classificado
por Agrippino como "epopéia",
pode ser considerado um caso
particular das maleáveis formas
ficcionais que, articulando várias
tendências experimentais, abriram o campo da escrita.
A produção tropicalista notabilizou-se pelos desregramentos
que produziu nas linguagens e relações da arte com seu contexto.
De um lado, propiciou a absorção
criativa das transformações que a
pop art disparara: o grande mundo da colagem, da mescla estilística, das justaposições e procedimentos técnicos e tecnológicos
inusitados. De outro, uma mudança significativa nos modos de
expressar e tentar transformar em
ação as significações políticas e
sociais, fazendo incidir as contradições nos procedimentos.
Música e artes plásticas
"PanAmérica" participa com
destaque dessas duas dimensões,
dando uma solução até então não
conhecida na literatura de vanguarda do Brasil, cuja contundência provém em grande parte de ter
dado à mistura de referências culturais um corpo sensível tão emblemático quanto o das canções
tropicalistas e o de artistas plásticos como Antônio Dias, Rubens
Gerchman, Roberto Magalhães,
Claudio Tozzi, Roberto Aguilar,
Wesley Duke Lee, por exemplo.
Não é à toa que a capa da primeira edição é de Antônio Dias,
ilustrada com uma imagem dos
violentos quadros narrativos,
plasticamente brutais, da "Nova
Figuração", como "The American
Death", em que o imaginário que
circula na sociedade de massas está conectada à denúncia da dominação. Texto delirante que finge
um efeito de real, a epopéia de
Agrippino funciona como uma
alucinação, uma fantasmagoria
toda feita de cacos, de estilhaços
da cultura, em feliz imagem de
Evelina Hoisel, no pioneiro livro
em que examinou com propriedade histórica e analítica a obra de
Agrippino ("Supercaos - Os Estilhaços da Cultura em PanAmérica e Nações Unidas", Civilização
Brasileira, 1980).
Blocos narrativos descontínuos
se sucedem, construindo hipérboles de aspectos das mitologias
contemporâneas: sexualidade, luta política, astros cinematográficos, personagens dos esportes, da
política, são agenciados numa
narrativa despsicologizada e descentrada, irredutível a um painel
ou a uma imagem totalizadora,
qual uma alegoria do Brasil. São
designados e hiperacentuados aspectos da cultura, simultaneamente satirizados, pois a linguagem que os pressupõe simbólicos
é desconstruída.
Procedendo por via expositiva,
indiciada pelo uso reiterado da
partícula "e", o campo em que a
narrativa se institui é fragmentário e lacunar. As referências e
fragmentos da cultura são articulados em ritmo cinematográfico,
com cortes e fusões.
Escrita tóxica, violenta, com o
excesso de imagens e reiteração
dos mesmos elementos, induz o
leitor à desvalorização dos objetos
designados, com que se dá a destruição da própria imagem.
Assim, pulverizando os códigos
de produção e recepção, reiterando o visível, hiperbolizando a representação, o texto desmobiliza
as expectativas do leitor que nele
procuraria um sentido, uma significação profunda, uma crítica
como a da alegorização abstratizante do contexto político-cultural brasileiro, que então era corrente na produção cultural. Exterioridade pura, a narrativa corrói
o sujeito da representação. O eu
reiterado que o narrador dissemina no texto não fixa nenhuma
identidade, antes a pulveriza. Não
sendo posição de um sujeito, o eu
é apenas um efeito enunciativo
submetido a um regime técnico,
homólogo ao da narrativa cinematográfica. Máquina histérica, a
enunciação é ritmada pela repetição, o que pode ser associado à
forma industrial da produção cinematográfica.
Narrativa ciclópica
Epopéia contemporânea do império americano, como disse Mário Schenberg na apresentação da
primeira edição, o livro tematiza
mitologias da cultura da sociedade industrial. Nessa narrativa ciclópica, os tipos gerados pela indústria cinematográfica de Hollywood são apresentados como naturais, quando são, na verdade,
convencionais. Astros e estrelas,
intercalados pela aparição de políticos, esportistas e outros personagens, entram na cena e dela
saem, sem nada que justifique ou
requeira propriamente uma ação.
Os atos e gestos que desenvolvem
são típicos, indiciando emblemas
do imaginário imperialista.
O narrador, nem herói nem anti-herói, vaga por entre camas e
outros cenários cinematográficos,
às vezes como um herói, logo desmentido, que quer destruir o império, eliminando o gigante Joe di
Maggio e conquistando a bela
Afrodite, Marylin Monroe, personagem-ícone de Agrippino.
Tomando a forma de uma superprodução hollywoodiana, como "Os Dez Mandamentos", de
Cecil B. de Mille (outro ícone), reconstruindo detalhes das filmagens, cenários, processos e técnicas, expõe a produção da ilusão,
como se fosse o desenvolvimento
de uma construção romanesca,
que configurasse a epopéia de
conquista e destruição do grande
império do Norte.
Mas as encenações cinematográficas com as constelações do
império são alternadas com outras encenações, como que abastardando as referências: são as cenas da outra América, que não se
submete aos planos de uma operação panamericana, referência
clara à política norte-americana
de intervenção em alguns países,
sob a capa de uma operação pela
paz, na verdade de dominação,
disfarçada de luta contra a propalada influência comunista. Na
epopéia, a única possibilidade de
resistência é a guerrilha, pois forma uma política atópica, desterritorializada, a única que age, não
com a força, mas com astúcia.
A referência à situação histórica
brasileira é óbvia. O golpe de 1964,
as passeatas, a repressão do governo militar, o aparecimento da
guerrilha urbana, o clima de terror, a identificação da resistência
ao regime com o Partido Comunista são alguns dos índices. Mas
há outros, como o índio brasileiro
na vitrina de uma cidade americana, nu, enfeitado de penas e com
um pênis enorme e mole, que cai
até o joelho, portanto exangue,
desenergizado à custa da exploração. Esse objeto exótico, imagem
brasileira pronta para exportação
e consumo, é um raro signo motivado da narrativa, a única manifestação, salvo engano, de um sujeito historicamente afirmado:
"Eu sofria internamente, (...) gritei de ódio".
Acoplado às referências brasileiras, percebe-se que, intencionalmente, a guerrilha se estende
para toda a América do Sul e a
Central, indiciando-se nisso o
despertar da solidariedade latino-americana, significada principalmente na figura exemplar de Che
Guevara.
Obsessão erótica
Fundindo a "imagerie" que procede da pop art, onirismo e técnica expositiva do novo romance
francês, o texto explora o distanciamento de qualquer realidade,
representando a representação.
Assim, a obsessão erótica não se
fixa como finalidade, portanto como exploração da pornografia,
pois a sexualidade é aí apenas um
objeto dessublimado, pronto para
a circulação no regime do capital;
mais uma das imagens reprodutíveis e permutáveis que o sistema
do espetáculo agencia. Os acontecimentos são narrados para um
olhar de fora, com uma objetividade técnica, excluindo-se qualquer envolvimento afetivo. Como
um dos seus efeitos críticos, evidencia a alienação que informa a
produção da espetacularização da
cultura, pois, ao levar a representação até o ponto em que a consciência racha, institui os objetos
como algo já conhecido, destituídos de presença.
Puro heteróclito que resulta da
montagem de referências culturais disponíveis na sociedade de
consumo, em que sobressaem as
imagens visuais, o romance opera
um realismo espectral em que a
história é desapropriada de suas
significações, pois a cultura, naturalizada, é reduzida a fatos, à pura
objetividade dos acontecimentos
que viraram notícias.
Entretanto, por efeito da encenação, a história reaparece com
brutalidade nesse realismo delirante. Na apresentação de "Rito
do Amor Selvagem", Agrippino
caracteriza o processo de composição do texto e da encenação como mixagem, por analogia com o
que no cinema é a mistura de várias faixas de som, diálogos, ruídos e música; nele a mistura dos
meios, de diversas mídias, articulam informações, fragmentos, na
simultaneidade. A falta de fé no
poder da palavra, diz ele, levou-o
ao que denominou "texto de desgaste", todo calcado nos estereótipos, restos e cacos da cultura de
consumo, significantes-objetos
industriais prontos para a circulação, em que o desejo é reificado.
É o mesmo processo da composição de "PanAmérica", em que
uma ritualização sem fundo fixa
como realidade a simples aparência, substituindo os valores simbólicos da cultura e a profundidade da experiência interior das tramas romanescas por uma pura
exterioridade de acontecimentos
que viram ícones ou emblemas.
A fabricação artificiosa que o
texto evidencia é efeito da repetição dos mesmos significados, típico processo inerente aos períodos de saturação cultural. O vazio
de realidade é a sensação que fica
ao final da leitura. Mais propriamente, a volatilização do simbólico na narrativa, com o que não se
tem mais um romance, mas uma
ficção objetiva em que a história é
desarticulada, por efeito da técnica narrativa, e reduzida a acúmulo de clichês, objetos, materiais e
comportamentos industrializados que, segundo Agrippino, têm
uma "presença superior". Daí o
seu fascínio.
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Celso Favaretto é professor na Faculdade de Educação da USP e autor de "Tropicália - Alegoria Alegria" (Ateliê Editorial ).
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