São Paulo, sábado, 09 de junho de 2001

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O modernista conservador

Meninos, Poetas & Heróis
Luiza Franco Moreira
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4146)
200 págs., R$ 25,00


HELENA BOMENY

Luiza Moreira se aventura pelo ambiente intelectual do Brasil na era Vargas e vai encontrar em Cassiano Ricardo sua fonte de inspiração. Com acuidade, Candido valoriza o esforço da autora, lembrando que Cassiano, ao lado de Plínio Salgado e Menotti del Picchia, compôs a constelação dos modernistas nem sempre lembrados, partidários, "cada um a seu modo, de um Estado forte de cunho corporativo, que eles acabaram identificando ao Estado Novo a partir de 1937". Essa versão do modernismo ficou como que debaixo do tapete, ofuscada pela dupla paulista mais celebrada, Mário e Oswald de Andrade, ou pelo poeta Drummond, aos quais o movimento modernista, seus intelectuais e críticos literários conferiram a aura de modernistas memoráveis.
No entanto, em uma dimensão importante, a lacuna a que se refere Antonio Candido não deixou de ser preenchida. Desde o início dos anos 80, alguns pesquisadores lançaram seus trabalhos sobre os nem sempre considerados modernistas recuperáveis. Ricardo Benzaquen de Araújo cuidou de Plínio Salgado em trabalho que se tornou referência; Mônica Velloso esmiuçou a obra de Cassiano Ricardo, transformando-a igualmente em bibliografia obrigatória; Lucia Lippi Oliveira, Angela Gomes e Mônica Velloso publicaram o já esgotado "Estado Novo", em que os intelectuais aparecem como atores estratégicos do que ali se formulara. Luiza Moreira, com competência de "scholar", percorreu toda essa bibliografia e tributa a todos os créditos merecidos.
Mas o livro de Luiza traz sua marca de originalidade. É um trabalho cuidadoso de leitura e interpretação de texto, com a intenção de perseguir a trajetória daquele que ficou notabilizado como o escritor oficial do Estado Novo. Desde "Martim Cererê", ela encontra em Cassiano os traços que o levarão ao que, mais tarde, desenvolverá em "Marcha para o Oeste".
Pretende mostrar de que maneira "Martim" (1928) é precursor do estudo "Marcha" (1940). E o faz por uma razão mais extensa: o público contemporâneo de Cassiano o considera o poeta de "Martim Cererê"; os críticos, um escritor modernista de importância histórica, e os historiadores, um ideólogo estadonovista. Seu desafio é mostrar que tais imagens díspares só o são na aparência, uma vez que a análise mais cuidadosa de seus textos nos levará à convergência entre essas dimensões de autor e obra que a muitos parecem não dialogar nesse modernista verde-amarelo.
Luiza Moreira persegue cada trecho das obras de Cassiano em busca de demonstrar tal convergência. Desde os poemas de "Martim", ela encontra o Cassiano que escreve, como documento de nacionalidade, uma narrativa de como se formou a nação brasileira, com "laços firmes entre folclore e história".
"Martim Cererê" cumpre a ambição do escritor de "definir o mito de uma identidade brasileira que abranja o país inteiro e todos os seus habitantes em todos os tempos". Esse esforço integrador, repleto de preconceitos que nem sequer são problematizados pelo modernista -alguns, inclusive, uma cobrança de hoje, mais atentos que estamos às questões de gênero, sexualidade e papéis sociais atribuídos conservadoramente às mulheres- materializa-se no esforço de corporificar em uma geografia expansionista os ideais de um Estado forte, envolvente, controlador do ideário de nação, tudo isso que "Marcha para o Oeste" tratará de destacar.
O Estado capaz de realizar tamanha ambição não é o democrático, como também não o fora em Francisco Campos, formulador de uma concepção igualmente integradora e autoritária do Estado Nacional. Aliás, o vínculo entre as idéias de Campos e Cassiano -e me refiro àquelas que expressam a profunda desconfiança nos procedimentos democráticos- poderia ter recebido mais atenção de Luiza Moreira. Quando, ao final, tal associação se explicita, ela traz um certo alívio a uma expectativa ansiada.
Cassiano Ricardo cumpre à risca seu papel de porta-voz do Estado Novo quando é nomeado para dirigir o jornal "A Manhã" -"o verdadeiro órgão do regime", nas palavras de Vargas-, onde, além de decidir sobre sua paginação, assina artigos de opinião, confirmando sua identidade como poeta do regime.
Todos esses comentários reforçam minha impressão quanto à excelência do trabalho de pesquisa que resultou em "Meninos, Poetas & Heróis". Meu comentário crítico foi inspirado na conclusão do livro. Ao encerrar o exame das obras-chave de Cassiano Ricardo, diz Luiza Moreira:
"Já não é difícil compreender por que se formaram tantos silêncios em torno da figura deste escritor. A fotografia do poeta e Getúlio, lado a lado, na cerimônia de posse do ditador na Academia Brasileira de Letras é intolerável: Cassiano Ricardo, como escritor engajado e intelectual orgânico, poderoso do Estado Novo".
A aproximação dos intelectuais com o poder na era Vargas, fartamente documentada, não provocou os "silêncios" que Luíza Moreira, muito apropriadamente, diga-se de saída, identificou em relação à figura de Cassiano Ricardo. O silêncio se deveu, a meu ver, em parte ao desinteresse dos próprios defensores do modernismo em trazer para o âmbito do movimento sua face mais feia, adepta de um regime marcado pela perseguição aos intelectuais renovadores e liberais.
Mas gostaria de sugerir que o silêncio se deve, principalmente, à falta de som por recuperar ou sobre o qual se afinar. No rol das aproximações dos intelectuais com aquela conjuntura de poder, suspeito que alguns sobreviveram graças ao regime e, talvez, Cassiano seja um desses. Outros, como Drummond e Bandeira, ou músicos geniais como Villa-Lobos, tiveram que lidar com os constrangimentos que lhes provocaram tal aproximação. No caso de Cassiano, o poeta talvez não sobrevivesse sem o engajamento
Se estou correta, isto faz de sua obra algo datado. Se quisermos saber do Estado Novo, Cassiano Ricardo é fonte obrigatória. Esse o grande valor do livro de Luiza Moreira. Mas, se quisermos poesia, boa literatura e boa música, as fontes são outras: não há aproximação com o regime e foto alguma ao lado do ditador que possam calar os versos de Bandeira e de Drummond ou silenciar as notas de Heitor Villa-Lobos.
Foi um prazer ler este livro, porque é bem editado, bem escrito e traz como brinde o prefácio de Antonio Candido, presente que recebemos sempre com gosto.


Helena Bomeny é professora de sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


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