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Cineminha na TV
O Circo Eletrônico -
Fazendo TV no Brasil
Daniel Filho
Jorge Zahar Editor
(Tel. 0/xx/21/240-0226)
359 págs., R$ 39,00
ESTHER HAMBURGER
Talvez "O Circo Eletrônico" marque
uma mudança de tom na literatura brasileira especializada. Ele traz à tona a
complexidade específica do fenômeno
televisivo, oferecendo material para o
desenvolvimento de interpretações distanciadas sobre os significados múltiplos desse veículo na história recente do
Brasil.
Na condição de quem conhece esse
universo por dentro, Daniel Filho chama
a atenção para a figura invisível, embora
crucial, do produtor de televisão. O livro,
que começa com incursões históricas
quase anedóticas, cresce na medida em
que abandona essa perspectiva para se
concentrar nas funções e gêneros televisivos: autor, diretor, equipe, atores, pós-produção, todos dominados pela figura
do produtor criativo.
Amálgama de ator, diretor, editor e
executivo, o produtor é um profissional
múltiplo, com formação artística, talento administrativo e liderança. Além de
Daniel Filho, desempenharam funções
afins José Bonifácio Sobrinho, Walter
Clark e Cassiano Gabus Mendes. São homens autoritários, que exerceram cargos
de comando, reuniram equipes heterodoxas e deram face profissional e lucrativa a uma empresa familiar.
O livro cobre quase 51 anos de história
da TV, segundo depoimento de um dos
profissionais estratégicos na construção
de um sistema de produção original que,
há pelo menos 30 anos, catalisa repertórios que os brasileiros compartilham e
no qual se situam para equacionar dramas do cotidiano.
Em tom quase professoral, o autor
adota a perspectiva do produtor que inventa, decupa, articula as diversas etapas
de um processo de criação que é essencialmente coletivo e, ao fazê-lo, reforça o
argumento dos que comparam a televisão brasileira ao cinema americano.
TV e cinema
A referência à arte cinematográfica é
uma constante no livro e se estende
àquela produzida no Brasil. Logo na introdução, Daniel Filho justifica o título,
atribuindo a Nelson Pereira dos Santos a
expressão "circo eletrônico" para definir
o meio de comunicação cuja disseminação é lembrada como fator de decadência do cinema. Ao aceitar a sugestão, Daniel Filho veste a carapuça, mesmo porque nasceu numa família de atores e iniciou sua carreira no teatro de revista.
Quando começou a trabalhar em televisão, em 1952, era "um comediante experiente, sabia fazer o palhaço até com a
maquiagem característica".
A referência ao circo funciona como
aceitação do caráter popular da televisão, que é entretenimento. Como a
maioria dos profissionais de TV, Daniel
Filho se antecipa às patrulhas ideológicas e delimita seu campo de atuação: reconhece que a cumplicidade do público
é a obsessão do meio televisivo, demarcando um paradigma de criação que não
se enquadra nos marcos autorais preconizados. Considerado arrogante e insuportável até por colegas, Daniel Filho
tem noção do valor de seu trabalho, cuidadosamente sistematizado, por gênero
e meio, ao final do volume.
A interlocução entre cinema e TV revela um ângulo sugestivo para a interpretação da história do audiovisual brasileiro. Aqui, vale uma pequena digressão. Não é possível ignorar o debate alusivo entre o cinema e a TV brasileira, no
qual as referências ao circo e ao teatro
são recorrentes. Em "Bye, Bye Brasil"
(1979), de Cacá Diegues, Chico Buarque
cantava o fim da autêntica cultura nacional. O filme conta a história de um grupo
de artistas itinerantes reunidos na "Caravana Rolidai", vencidos pelas "espinhas de peixe" ou antenas de televisão
espalhadas pelo território nacional. A
trupe perde alguns membros, ganha um
ipslone no final e é obrigada a flertar
com a prostituição e o contrabando. Há
no filme uma referência explícita às novelas da Globo nas imagens e som da vinheta de abertura de "Dancin" Days", de
Gilberto Braga, dirigida por Daniel Filho, então no ar.
No outro pólo, a telenovela "Roque
Santeiro" (1985) também apresenta José
Wilker e Fábio Júnior em papéis de destaque, ao lado de Regina Duarte, que faz
a viúva Porcina depois que Beth Faria,
que contracenou com os dois em "Bye,
Bye Brasil", recusou o papel. "Roque
Santeiro", de Dias Gomes e Aguinaldo
Silva, supervisionada por Daniel Filho,
problematiza com ironia e cinismo a resistência da crendice popular, que insiste
em acreditar no santo que foi sem nunca
ter sido, apesar dos esforços desmistificadores do padre, ligado à teologia da libertação, e do próprio Roque. Se o cinema alude à TV, a novela responde, ridicularizando-o na figura do galã bobo e
galinha (Fábio Júnior) e do diretor gago
e alienado (Ewerton de Castro).
Em compensação, o cinema internacional aparece como referência positiva
e explícita, pois "O Circo Eletrônico" é
rico em citações de cenas e argumentos
cinematográficos que inspiraram novelas, casos especiais e minisséries. O repertório diversificado de obras italianas,
francesas, americanas, mexicanas serve
de inspiração para a construção de climas, definição de movimentos de câmera e enquadramentos. Daniel Filho conta
que foi contratado por Boni para dirigir
novelas no final da década de 60.
O profissional versátil, já com quase
duas décadas de experiência, aceitou o
desafio de fazer o que Boni chamou de o
"seu cineminha" na TV. Daniel expõe
sua memória fotográfica de cinéfilo bem
formado. Embora citações cinematográficas não sejam privilégio seu, sua orientação certamente contribuiu para reforçar a convenção de usar o cinema como
referência para comunicar climas e movimentos às equipes compostas de numerosos profissionais, que necessitam
estar afinados em torno de um projeto.
Igualmente decisivo é o que o livro revela sobre o sistema de produção criado
a partir do final dos anos 60, nos tempos
de Walter Clark e Joseph Wallace, quando a Globo verticalizou a produção, deixando de se limitar a exibir os populares
seriados anteriormente desenvolvidos
pelas patrocinadoras e passando a produzi-los. Para fazer telenovelas que, na
linha das "soap-operas" americanas e
novelas latino-americanas, eram produzidas por companhias fabricantes de sabonete, a emissora montou um departamento de teledramaturgia. A centralização se assemelhava ao sistema de estúdios norte-americanos, em que a produção, distribuição e exibição eram centralizadas por corporação.
Medidas concentradoras
A centralização da produção é acompanhada por outras medidas, como a
padronização e definição de sistemas de
administração de comerciais, a contratação de um corpo fixo de atores e autores, a criação de um departamento de
pesquisas especializado em monitorar
audiências e opiniões, e ainda a sofisticação do tratamento visual, cenográfico,
de figurino, edição e trilha sonora.
Expressando teorias desenvolvidas na
prática e que demonstram que fazer televisão é bem mais complexo do que os estereótipos supõem, Daniel Filho descreve com minúcia a rotinização do processo. Uma novela começa com um argumento aprovado e continua com uma sinopse, que teoricamente especifica os
movimentos da narrativa, capítulo a capítulo. O ritmo intenso de gravação,
mantido enquanto a novela está no ar, é
precedido por estudo minucioso dos cenários, figurinos, personagens, pelo trabalho intenso com os atores, pela decupagem das cenas.
Daniel Filho define a busca da narrativa verossímil como essencial ao sucesso
de um produto de teledramaturgia. E
oferece amplo material que aponta para
as referências históricas e jornalísticas na
construção de narrativas que se tornaram verdadeiros palcos de problematização da vida contemporânea brasileira.
Confirmando depoimentos de outros
profissionais, Daniel Filho sustenta que
a novela veicula novidades. A estrutura
melodramática, repetitiva e convencional, é a base da narrativa.
Mas cada folhetim precisa surpreender. E por novidade se entende uma variedade de coisas que incluem: artigos de
consumo, tecnologia médica, arranjos
familiares e alusões políticas. Produtos
eletrônicos, marcas de banco ou refrigerante, meias listradas, trilhas musicais,
doação de órgãos, inseminação artificial,
divórcio, segundos casamentos, perda
de virgindade, pílula anticoncepcional
são elementos que recheiam narrativas,
elaborando ganchos que sustentaram o
caráter de "vitrina de modernidade" que
as novelas assumiram. E potencializaram sua capacidade de impulsionar outros produtos, como por exemplo as trilhas sonoras, cujo desenvolvimento
também está relatado no livro.
Das corridas de Fórmula 1, em "Véu de
Noiva" (1969), esporte em que o Brasil
começava a se destacar, ao futebol em
tempos de Copa Mundial, em "Irmãos
Coragem" (1970), a novela captura temas e imagens familiares, recontextualizando-os. As referências à corrupção
política merecem destaque, uma vez que
novelas como "Roque Santeiro" e "Vale
Tudo", emolduradas de verde e amarelo,
anteciparam temas que dominariam a
cena política nos anos 90.
Aqui há uma diferença em relação ao
cinema clássico de Hollywood, fiel a narrativas diferenciadas para ficção e documentário, e elas não param aí. Nos EUA,
o sistema de estúdios supunha competição entre diversas companhias, e essa
competição, por limitada que fosse, oferecia espaço de manobra aos produtores. No Brasil, essa competição não vigorou nos anos áureos do sistema verticalizado, quando a rede Globo detinha praticamente o monopólio da audiência, e
ainda hoje é limitada.
Aqui a verticalização tenha sido talvez
mais radical porque incorporou também o Estado, governos e políticos,
agentes ativos na distribuição de concessões, no exercício da censura, na instalação da infra-estrutura técnica necessária
à expansão do meio. A centralização da
estrutura brasileira limita inclusive o papel dos produtores, que, devidamente
reconhecidos nos EUA, no Brasil estão
encapsulados na situação de empregados, possuem menos margem de manobra e se sentem na iminência do esquecimento.
Novidades em curso
Nos EUA o sistema de estúdio se desmonta na década de 50. No Brasil, os
anos 90 testemunham um início de diversificação, ainda em curso. Há hoje
alguma competição entre emissoras e
ensaios, ainda tímidos, de produção
independente. As novelas já não conseguem sintetizar toda a novidade. E talvez já nem seja possível "antenar" o
Brasil em uma só emissora, um horário, um programa.
As novidades em curso anunciam
mudanças que captam e expressam redefinições da ordem social. Talvez a
passagem para uma nova fase permita
um distanciamento histórico que facilite interpretações capazes de dar conta
dos paradoxos de uma indústria quase
monopolizada, cujos produtos constituem elemento ativo da história recente do país e cujos mistérios não são redutíveis a intencionalidades ideológicas "pré-supostas", seja dos militares,
autoritários e conservadores, seja de
autores intelectualizados e de esquerda, seja de publicitários eficientes no
estímulo ao desenvolvimento de um
mercado consumidor.
Sobre novelas, por exemplo, o autor
adverte que são principalmente femininas. Sua afirmação expressa um amplo consenso, que vai de Homero Sanchez, o mestre da pesquisa de mercado
no Brasil, a telespectadores nas mais
diversas classes sociais. Esse consenso
nacional, mais uma vez comprovado,
suscita a curiosa questão sobre os nada
desprezíveis 40% de audiência masculina que a novela das oito manteve ao
menos no período áureo que vai de
1970 a 1989. Como explicar que a almejada "integração nacional", pretendida
pelos militares, tenha ocorrido principalmente por meio da novela, gênero
seriado, feminino e melodramático, associado ao que de mais comercial a indústria cultural é capaz de produzir?
Para além de projetos específicos, a
televisão brasileira capta e expressa redefinições em curso nos domínios do
masculino e do feminino, da notícia e
da ficção, do político e do doméstico,
do público e do privado.
As inúmeras possibilidades de comparação entre o cinema e a TV que "O
Circo Eletrônico" abre são sugestivas
para pensar de que modo elementos da
cultura audiovisual, disponíveis no
mundo globalizado, são apropriados
de maneiras específicas em locais e
contextos históricos distintos. O livro é
agradável de ler, denso em informações úteis, servindo a um público que
inclui os telespectadores em geral, os
estudantes e os pesquisadores do audiovisual.
Esther Hamburger é antropóloga e professora na
Escola de Comunicações e Artes da USP.
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