São Paulo, sábado, 09 de junho de 2001

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Humor empenhado

A Aldeia de Stiepântchikov e seus Habitantes (Memórias de um Desconhecido)
Fiódor Dostoiévski
Tradução: Klara Gouriánova
Nova Alexandria (Tel. 0/xx/11/5571-5637)
242 págs., R$ 26,00


SALETE DE ALMEIDA CARA

Um certeiro soco no estômago a leitura destes textos de Dostoiévski, saídos de um período de experiências decisivas na vida do escritor: "A Aldeia de Stiepântchicov e seus Habitantes", "O Crocodilo" e "Notas de Inverno sobre Impressões de Verão" (os últimos editados pela Editora 34, em tradução de Boris Schnaiderman, 163 págs., R$ 19,00). O primeiro deles, de 1857, começou a ser elaborado no final dos anos vividos como preso político na Sibéria, e as notas se sucederam à viagem feita pela Europa, entre julho e setembro. O veio humorístico das anedotas cômicas dos anos 40 se adensa, nos dois textos ficcionais, pela ampliação dos assuntos na direção de relações e situações, elas mesmas farsescas e insólitas, da vida social estagnada de que tratam também as "Notas".
São livros que dão a ver com clareza o alcance, no espaço e no tempo, dos desafios trazidos pelo material literário em contexto de país atrasado, que não passariam despercebidos a Machado de Assis, como bem mostrou Roberto Schwarz.
Da vida na prisão nasceram lições definitivas, tal como o respeito pela consciência sociopolítica dos camponeses naquelas condições de opressão. Dostoiévski abandonou a condescendência superior com os servos, habitual entre os ocidentalistas. O ciclo se completará cinco anos mais tarde, ao observar que a ordem burguesa em Londres deixava as massas miseráveis expostas pelas ruas e, em Paris, escondia seus pobres. Nesse momento já tinha amealhado o material com o qual escreverá sobre o mundo corrompido.

Czarismo reformador
Se ficaram mais difíceis as posições políticas desse escritor que apostava antes num czarismo reformador do que na república, também ficou maior seu senso de complexidade das questões russas. A rigor, nem na casa da aldeia nem em São Petersburgo Dostoiévski encontrará motivos para não temer o risco de ver massacrada a consciência ético-moral do povo russo, bombardeada por ideários e valores de um progressismo oco, já à deriva na Europa. Guardados seus ritmos próprios, o mundo da propriedade rural e o da cidade estão também corrompidos.
Os resultados são o que se lê. E o que se lê faz ver melhor. Em "A Aldeia de Stiepântchikov e seus Habitantes" é o ambiente familiar e desfibrado de uma propriedade rural ocupada por agregados diversos. Os críticos do tempo julgaram a farsa excessivamente dramatizada e com enredo frouxo, talvez por não discutir diretamente a libertação e suspensão dos castigos corporais dos servos, medidas prometidas por Alexandre 2º e que Dostoiévski também apoiava. Mas a novidade era a troca de funções de mando entre um proprietário boníssimo, coronel Rostânov, e um agregado sagaz, Fomá Fomitch Opískin, que vivera encostado numa família de posses "em busca nada mais nada menos do que de um pedaço de pão".
O antigo bufão conta com o proprietário para traçar com sucesso a carreira de déspota parasita. Enquanto o agregado argumenta com preceitos humanitários, com sua pretensa inteligência, cultura, erudição e dedicação às ciências, com um sentimento difuso de classe, com ideais de igualdade e direito individual ("sou seu igual, está me ouvindo?"), o proprietário prega a conciliação de todos com altíssimo senso moral, sustentado por uma compreensão de almanaque da realidade em que vive ("um mundo ideal").
O ritmo dos acontecimentos pode até lembrar o de um mundo às avessas, mas aqui não há nada de libertário. O "final feliz", o casamento entre o coronel proprietário e a preceptora, desencadeado pelo ex-agregado para salvar a própria pele, representa a submissão definitiva do casal religioso, despojado e eternamente grato ao tirano. De modo que aquela "resignada casa", submissa às manipulações de quem bem sabe do que é feito o imaginário de um bando de alienados (esse saber é a sua superioridade), expõe matizes perturbadores do velho esquema de exploração direta do próximo -donde também a dramatização do enredo. São as novas tiranias de "mão leve" ou "tudo sem socos ou com mais êxito ainda" de que fala Dostoiévski nas crônicas dos anos 60, com os servos já libertos na mais absoluta miséria.
Em "O Crocodilo", que se passa em 1865 numa moderna galeria de São Petersburgo, o clima é de consenso em torno da necessidade de criar uma burguesia nacional com presença de companhias estrangeiras no país. Como diz o capitalista citado no conto, com a terra nas mãos dessas companhias e os preços de arrendamento livres, "o mujique trabalhará três vezes mais apenas para ganhar o pão de cada dia, e será possível enxotá-lo quando bem se entender". O cidadão petersburguense está deslumbrado com o capital que promete transformar o país e dar a ele próprio oportunidades de notoriedade pessoal.

Novidade européia
Por isso, quando um crocodilo, exposto como novidade européia numa loja, engole por inteiro e mantém vivo Ivan Matviéitch, revelando-se como carcaça completamente oca, ele pensa que poderá, das "próprias profundezas do crocodilo", alcançar proeminência social, desempenhar missão civilizatória e receber aplausos da imprensa. Ademais, quem se atreveria a assumir a responsabilidade pela liquidação de um capital que precisa de garantias locais para manter no ar suas promessas? "Vou inventar agora todo um sistema social e você não acreditará como isso é fácil! Basta ir para um canto bem afastado ou para o bucho de um crocodilo, fechar os olhos, e, no mesmo instante, se inventa um verdadeiro paraíso para toda a humanidade. (...) Já inventei três sistemas e estou inventando um quarto."
O "princípio econômico", explícito na fala do dono do crocodilo, impregna as outras personagens, incluindo o engolido que, concorde com o proprietário e em franco delírio, passa a contabilizar possíveis "compensações", justificando: "Gosto dos homens práticos e não suporto os maricas melífluos". O mesmo princípio comanda os afetos da quase viúva, ávida por desfrutar os brilhos da vida. "Quem? Que prisioneiro? Ah, sim! Coitado! Bem, ele se aborrece? Mas sabe...eu queria perguntar a você... Acho que poderia requerer agora divórcio, não?"
Nas notícias da imprensa progressista, o crocodilo estrangeiro, saudado como estímulo para novas fontes de renda, aparecerá como vítima (numa delas um russo gordo, "sem nenhum aviso prévio introduz-se pela goela do crocodilo, o qual, naturalmente, não tinha outro remédio senão engoli-lo"), e as versões que desdobram outras possibilidades insólitas do acontecimento serão sempre, ironia das ironias, resultados do mesmo ânimo modernizador de Ivan Matviéitch. O mundo gira, portanto, com a mais perfeita aparência de normalidade.
O narrador ainda parece a salvo, dando-se ao luxo de ter em boa conta suas próprias opiniões ("pressinto que não tenho o direito de transmitir as minhas impressões particulares, prosaicas..."). No livro seguinte, "Memórias do Subsolo" (1865), o insólito estará arraigado na própria intimidade de um homem desamparado, que tenta conferir objetividade aos seus sentimentos de impotência, num esforço já esboçado pelo andamento confessional do narrador das "Notas de Inverno", publicadas em folhetins em 1863.
Só que, nas crônicas, a exposição das dificuldades em acertar um fio narrativo não só chamava a atenção para a complexidade do assunto (a explosão das contradições da ordem burguesa) como para o caminho adotado pelo cronista (na contramão do senso comum), servindo ainda, de quebra, para entabular conversa direta com o leitor de jornais, por certo homem viajado e progressista, que não teve ter lido em boa paz o "ensaio sobre o burguês".
Escrito pouco antes da Comuna de Paris, mostra a mescla de medo e triunfo naquele "rebanho único", que "da última vez" tinha liquidado seus inimigos "a fuzil e baioneta, nas barricadas de junho". Não à toa Dostoiévski chama "inteiramente supérfluo" justamente o capítulo em que, ciente de que na Europa a idéia de civilização "é defendida apenas pelos proprietários", descreve a civilização se ajeitando entre as complicadas relações servis e patriarcais russas.
Penso que não anda mal quem reconhecer em Dostoiévski, cuja obra o veio humorístico ilumina de maneira singular, um escritor da família de autores como Machado de Assis e Kafka, que, por implacáveis com seu próprio tempo, puderam dar à literatura um novo patamar formal.


Salete de Almeida Cara é professora de literatura na USP.



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