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Humor empenhado
A Aldeia de Stiepântchikov
e seus Habitantes (Memórias
de um Desconhecido)
Fiódor Dostoiévski
Tradução: Klara Gouriánova
Nova Alexandria (Tel. 0/xx/11/5571-5637)
242 págs., R$ 26,00
SALETE DE ALMEIDA CARA
Um certeiro soco no estômago a leitura
destes textos de Dostoiévski, saídos de
um período de experiências decisivas na
vida do escritor: "A Aldeia de Stiepântchicov e seus Habitantes", "O Crocodilo"
e "Notas de Inverno sobre Impressões de
Verão" (os últimos editados pela Editora
34, em tradução de Boris Schnaiderman,
163 págs., R$ 19,00). O primeiro deles, de
1857, começou a ser elaborado no final
dos anos vividos como preso político na
Sibéria, e as notas se sucederam à viagem
feita pela Europa, entre julho e setembro.
O veio humorístico das anedotas cômicas
dos anos 40 se adensa, nos dois textos ficcionais, pela ampliação dos assuntos na
direção de relações e situações, elas mesmas farsescas e insólitas, da vida social estagnada de que tratam também as "Notas".
São livros que dão a ver com clareza o
alcance, no espaço e no tempo, dos desafios trazidos pelo material literário em
contexto de país atrasado, que não passariam despercebidos a Machado de Assis,
como bem mostrou Roberto Schwarz.
Da vida na prisão nasceram lições definitivas, tal como o respeito pela consciência sociopolítica dos camponeses naquelas condições de opressão. Dostoiévski
abandonou a condescendência superior
com os servos, habitual entre os ocidentalistas. O ciclo se completará cinco anos
mais tarde, ao observar que a ordem burguesa em Londres deixava as massas miseráveis expostas pelas ruas e, em Paris,
escondia seus pobres. Nesse momento já
tinha amealhado o material com o qual
escreverá sobre o mundo corrompido.
Czarismo reformador
Se ficaram mais difíceis as posições políticas desse escritor que apostava antes
num czarismo reformador do que na república, também ficou maior seu senso
de complexidade das questões russas. A
rigor, nem na casa da aldeia nem em São
Petersburgo Dostoiévski encontrará motivos para não temer o risco de ver massacrada a consciência ético-moral do povo
russo, bombardeada por ideários e valores de um progressismo oco, já à deriva
na Europa. Guardados seus ritmos próprios, o mundo da propriedade rural e o
da cidade estão também corrompidos.
Os resultados são o que se lê. E o que se
lê faz ver melhor. Em "A Aldeia de Stiepântchikov e seus Habitantes" é o ambiente familiar e desfibrado de uma propriedade rural ocupada por agregados diversos. Os críticos do tempo julgaram a
farsa excessivamente dramatizada e com
enredo frouxo, talvez por não discutir diretamente a libertação e suspensão dos
castigos corporais dos servos, medidas
prometidas por Alexandre 2º e que Dostoiévski também apoiava. Mas a novidade era a troca de funções de mando entre
um proprietário boníssimo, coronel Rostânov, e um agregado sagaz, Fomá Fomitch Opískin, que vivera encostado numa família de posses "em busca nada
mais nada menos do que de um pedaço
de pão".
O antigo bufão conta com o proprietário para traçar com sucesso a carreira de
déspota parasita. Enquanto o agregado
argumenta com preceitos humanitários,
com sua pretensa inteligência, cultura,
erudição e dedicação às ciências, com um
sentimento difuso de classe, com ideais
de igualdade e direito individual ("sou
seu igual, está me ouvindo?"), o proprietário prega a conciliação de todos com altíssimo senso moral, sustentado por uma
compreensão de almanaque da realidade
em que vive ("um mundo ideal").
O ritmo dos acontecimentos pode até
lembrar o de um mundo às avessas, mas
aqui não há nada de libertário. O "final feliz", o casamento entre o coronel proprietário e a preceptora, desencadeado pelo
ex-agregado para salvar a própria pele,
representa a submissão definitiva do casal religioso, despojado e eternamente
grato ao tirano. De modo que aquela "resignada casa", submissa às manipulações
de quem bem sabe do que é feito o imaginário de um bando de alienados (esse saber é a sua superioridade), expõe matizes
perturbadores do velho esquema de exploração direta do próximo -donde
também a dramatização do enredo. São
as novas tiranias de "mão leve" ou "tudo
sem socos ou com mais êxito ainda" de
que fala Dostoiévski nas crônicas dos
anos 60, com os servos já libertos na mais
absoluta miséria.
Em "O Crocodilo", que se passa em
1865 numa moderna galeria de São Petersburgo, o clima é de consenso em torno da necessidade de criar uma burguesia nacional com presença de companhias estrangeiras no país. Como diz o
capitalista citado no conto, com a terra
nas mãos dessas companhias e os preços
de arrendamento livres, "o mujique trabalhará três vezes mais apenas para ganhar o pão de cada dia, e será possível enxotá-lo quando bem se entender". O cidadão petersburguense está deslumbrado com o capital que promete transformar o país e dar a ele próprio oportunidades de notoriedade pessoal.
Novidade européia
Por isso, quando um crocodilo, exposto
como novidade européia numa loja, engole por inteiro e mantém vivo Ivan Matviéitch, revelando-se como carcaça completamente oca, ele pensa que poderá,
das "próprias profundezas do crocodilo",
alcançar proeminência social, desempenhar missão civilizatória e receber aplausos da imprensa. Ademais, quem se atreveria a assumir a responsabilidade pela liquidação de um capital que precisa de garantias locais para manter no ar suas promessas? "Vou inventar agora todo um
sistema social e você não acreditará como
isso é fácil! Basta ir para um canto bem
afastado ou para o bucho de um crocodilo, fechar os olhos, e, no mesmo instante,
se inventa um verdadeiro paraíso para
toda a humanidade. (...) Já inventei três
sistemas e estou inventando um quarto."
O "princípio econômico", explícito na
fala do dono do crocodilo, impregna as
outras personagens, incluindo o engolido
que, concorde com o proprietário e em
franco delírio, passa a contabilizar possíveis "compensações", justificando: "Gosto dos homens práticos e não suporto os
maricas melífluos". O mesmo princípio
comanda os afetos da quase viúva, ávida
por desfrutar os brilhos da vida. "Quem?
Que prisioneiro? Ah, sim! Coitado! Bem,
ele se aborrece? Mas sabe...eu queria perguntar a você... Acho que poderia requerer agora divórcio, não?"
Nas notícias da imprensa progressista,
o crocodilo estrangeiro, saudado como
estímulo para novas fontes de renda, aparecerá como vítima (numa delas um russo gordo, "sem nenhum aviso prévio introduz-se pela goela do crocodilo, o qual,
naturalmente, não tinha outro remédio
senão engoli-lo"), e as versões que desdobram outras possibilidades insólitas do
acontecimento serão sempre, ironia das
ironias, resultados do mesmo ânimo modernizador de Ivan Matviéitch. O mundo
gira, portanto, com a mais perfeita aparência de normalidade.
O narrador ainda parece a salvo, dando-se ao luxo de ter em boa conta suas
próprias opiniões ("pressinto que não tenho o direito de transmitir as minhas impressões particulares, prosaicas..."). No
livro seguinte, "Memórias do Subsolo"
(1865), o insólito estará arraigado na própria intimidade de um homem desamparado, que tenta conferir objetividade aos
seus sentimentos de impotência, num esforço já esboçado pelo andamento confessional do narrador das "Notas de Inverno", publicadas em folhetins em 1863.
Só que, nas crônicas, a exposição das
dificuldades em acertar um fio narrativo
não só chamava a atenção para a complexidade do assunto (a explosão das contradições da ordem burguesa) como para
o caminho adotado pelo cronista (na
contramão do senso comum), servindo
ainda, de quebra, para entabular conversa direta com o leitor de jornais, por certo
homem viajado e progressista, que não
teve ter lido em boa paz o "ensaio sobre o
burguês".
Escrito pouco antes da Comuna de Paris, mostra a mescla de medo e triunfo
naquele "rebanho único", que "da última
vez" tinha liquidado seus inimigos "a fuzil e baioneta, nas barricadas de junho".
Não à toa Dostoiévski chama "inteiramente supérfluo" justamente o capítulo
em que, ciente de que na Europa a idéia
de civilização "é defendida apenas pelos
proprietários", descreve a civilização se
ajeitando entre as complicadas relações
servis e patriarcais russas.
Penso que não anda mal quem reconhecer em Dostoiévski, cuja obra o veio
humorístico ilumina de maneira singular, um escritor da família de autores como Machado de Assis e Kafka, que, por
implacáveis com seu próprio tempo, puderam dar à literatura um novo patamar
formal.
Salete de Almeida Cara é professora de literatura na USP.
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