São Paulo, sábado, 09 de junho de 2001

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Organizar o Apocalipse

A Esperança
André Malraux

Tradução: Eliana Aguiar
Record (Tel. 0/xx/21/585-2047)
473 págs., R$ 18,50


EDSON ROSA DA SILVA

Quando de sua publicação em 1937, no fervilhar da Guerra Civil Espanhola, o romance "A Esperança", de André Malraux (1901-1976), já era ansiosamente esperado, sobretudo no meio político e literário, graças à aura de heroísmo do jovem escritor engajado na guerra e a alguns trechos anteriormente publicados em periódicos franceses. No clima político de então, o romance suscitava questões ideológicas, éticas e até mesmo metafísicas. Não sem reservas, a acolhida foi calorosa.
Com efeito, a atitude de Malraux, ao partir para a Espanha em 1936, despertou a atenção dos franceses. Não aterrissou em solo espanhol, porém, por acaso, na confusão dos primeiros momentos do conflito. Aterrissou consciente do que então ali se passava. O sentido de sua visita era claro em seus pronunciamentos: "O destino do artista arranca-lhe gritos, seja de prazer ou de dor. Mas é o destino do mundo quem escolhe a linguagem desses gritos".
Aproximava, assim, a função do artista de sua ação no mundo. Engajava-se para lutar contra o fascismo, pois acreditava nos homens, acreditava na coragem daqueles que defendiam a própria dignidade. Acreditava na fraternidade. A ela queria aliar-se. Seu prestígio internacional era um exemplo. Sem saber pilotar, assumiu o comando da esquadrilha "España" e formou, com a colaboração de voluntários, uma verdadeira aviação militar, a única capaz de se opor à aviação fascista, sobretudo em Medellin e Teruel. São essas experiências que "A Esperança" relata.
A primeira parte, "A Ilusão Lírica", descreve o clima de euforia, de grande festa desorganizada, que foi o início da guerra. Lirismo do primeiro entusiasmo, incapaz ainda de perceber o grau de ilusão da festa. Defende-se aí a tese da necessidade da organização revolucionária. Frente a uma guerra técnica, não é possível deixar-se levar só pela emoção. É preciso transformar o "Apocalipse da fraternidade", "sob pena de morte". Vargas, um dos dirigentes do movimento, afirma: "Nossa modesta função, senhor Magnin, é organizar o Apocalipse".
Malraux não critica esse clima lírico. Participando diretamente dos acontecimentos, sabe que essa organização é difícil, pois a revolução é a forma mais elevada de realizar, em comunhão fraterna, os ideais frustrados dos combatentes. É uma apaixonada resposta ao emocionado "No pasaran" de Dolores Ibarruri, que os faz recusar o pragmatismo imediato, a ordem que os comunistas julgam indispensável ao bom êxito do movimento. Por isso Malraux compreende a importância do grito por tanto tempo contido e a esperança que anima os combatentes -a tal ponto que dela faz o tema e o título do romance. Para Manuel, um dos personagens principais, só havia "aquela noite carregada de uma esperança confusa e sem limites, aquela noite em que cada homem tinha alguma coisa a fazer sobre a terra".
A segunda parte trata da organização do combate e relata as vitórias dos republicanos sobre os fascistas. Ao transpor para "A Esperança" uma dificuldade efetiva da organização da guerra de 1936, Malraux dá a seu romance um caráter que, apesar da invenção, não perde a dimensão histórica.
Com efeito, são inúmeros os fatos tomados à história: armados pelos sindicatos, os trabalhadores fazem malograr o levante de Barcelona, Madri e Málaga; as milícias populares interceptam as tropas do General Mola na Serra de Guadarrama; os republicanos cercam o coronel Moscardo, entrincheirado com mulheres, crianças e reféns no Alcáçar de Toledo; a esquadrilha internacional "España" bombardeia 400 mouros e legionários que avançam sobre Madri; os nacionalistas bombardeiam Madri; o governo de Largo Caballero abandona Madri e se transfere para Valência. E ainda: a conhecida ajuda dos países estrangeiros à Espanha, a batalha de Madri, a batalha de Teruel, o ataque dos franquistas a Málaga, entre outros. Além disso, a alusão a inúmeros personagens reais, entre os quais o filósofo, poeta e dramaturgo Miguel de Unamuno e a brava, a bravíssima Dolores Ibarruri, "la Pasionaria", "viúva de todos os mortos das Astúrias".
Convivendo com a verdade histórica, os personagens de Malraux conduzem a ação, discutem a legitimidade da guerra, defendem a justiça e lutam pela dignidade do homem, como se não houvesse hiato entre a história e a ficção, e como se só a arte fosse capaz de "dar aos homens (muitas vezes esquecidos pela história oficial) consciência da grandeza que ignoram em si mesmos" (conforme expressão de Malraux em "O Tempo do Desprezo", romance de 1935).
Ancorada nos fatos históricos de 1936, "A Esperança" assume também seu lugar ficcional: inventa personagens, reordena fatos, seleciona, suprime, prioriza, fragmenta. É parcial: opta pela defesa dos republicanos contra a força crescente do fascismo. Dá voz aos camponeses que se revoltam e possibilita aos intelectuais como Garcia acalentarem o sonho de mudar "as condições de vida dos camponeses espanhóis". Por outro lado, como costuma acontecer no preexistencialista Malraux, deparamo-nos aí com uma situação trágica do homem diante do seu destino -talvez o tema mais recorrente de sua obra: os conflitos incontornáveis da condição humana, título de seu romance mais conhecido, prêmio Goncourt de 1933. Através dos combates do homem histórico, Malraux encena a luta do homem universal contra a morte.
O romance não termina com a vitória fascista, mas sim com a vitória republicana que reconquista Brihuega e faz recuarem italianos e franquistas. Mentira? Ilusão? A dimensão da esperança, título do livro e também da terceira parte, não permitia aceitar a derrota. Esperança de ver a liberdade conquistada e a dignidade resgatada. Se, durante 40 anos, "A Esperança" foi a história de um sonho sempre adiado, a realidade acabou por dar razão à ficção: sonho poético/ sonho profético que se realizou.
O romance o imaginou. Talvez o tenha influenciado.


Edson Rosa da Silva é professor de literatura francesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor, entre outros livros, de "André Malraux - Palavras no Brasil" (Funarte).



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