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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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O crítico e poeta Ferreira Gullar escreve sobre o pintor Iberê Camargo, cuja obra foi exposta em São Paulo e segue para o Rio de Janeiro, Recife e Salvador

Iberê in extremis

FERREIRA GULLAR

O catálogo da exposição "Iberê Camargo - Diante da Pintura" -apresentada na Pinacoteca de São Paulo- é um trabalho louvável da Fundação Iberê Camargo, não só por sua qualidade gráfica como pela síntese que nos oferece da vasta obra do artista.
O texto do catálogo é de autoria do professor e crítico de arte Paulo Venâncio Filho, curador da referida mostra, que em breve poderá ser vista no Paço Imperial do Rio de Janeiro e mais tarde no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, em Recife, e no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador.
O texto crítico de Paulo Venâncio Filho preocupa-se menos em situar artística e historicamente a obra de Iberê do que em nos pôr diante de sua complexidade estética e existencial. Não obstante, ele nos conduz dos quadros iniciais do pintor (anos 40) até os momentos finais dessa experiência pictórica que marcou definitivamente a arte brasileira. Faz-nos refletir sobre as etapas intermediárias, sem o que seria praticamente impossível situar a obra do artista no conjunto de nossa arte moderna. Fica evidente como, já nas paisagens do começo de sua pintura, manifesta-se a tendência expressionista, que é um dos traços característicos desse pintor e que atingirá o máximo de exacerbação nos derradeiros quadros pintados por ele.
Um outro aspecto, apontado pelo crítico, é a ausência da figura humana em quase toda a obra do artista e de modo especial nas paisagens urbanas do Rio de Janeiro, onde essa ausência chama particularmente a atenção. Com mais razão, não há figura humana nas fases posteriores -das naturezas-mortas morandianas dos anos 50- e na dos "carretéis", dos "núcleos" e dos "vórtices", quando a sua linguagem figurativa atinge alto grau de abstração e quase se dissolve para sempre na pasta furiosa em que o pintor precipita a pintura. A figura humana só vai aparecer nas telas dos anos 80, após a tragédia inesperada que mudou o rumo de sua vida.
A ausência e posteriormente a presença da figura humana na obra de Iberê Camargo, embora adquira um significado muito particular, deve ser vista como um traço típico de determinada linha artística moderna -exatamente a que passa pelo cubismo e se compraz em construir quadros com objetos inanimados, quase sempre naturezas-mortas. Essa linha que, em alguns casos, conduziu à abstração geométrica e à arte concreta se orientou também na direção da temática metafísica ou ontológica.
Em Iberê um fator subjetivo e emocional -o carretel da infância- reintroduz a questão pessoal e biográfica num discurso que se queria impessoal, abstratizante. Talvez por isso tenha sido levado a travar com a pintura uma luta tão dramática, em que o objeto se perde na pasta fervilhante da memória para, depois, dela ressurgir mudado em gemas coruscantes, como fragmentos de emoção cristalizados.
Nesse sentido, enquanto aventura pictórico-linguística, a obra de Iberê parecia concluir-se no final dos anos 70, quando sobrevém o fato trágico que, juntamente com o câncer, devolve-o à dura realidade do indivíduo sujeito ao erro e à morte.
A última etapa da obra de Iberê Camargo -com suas figuras fantasmáticas- desborda a questão estética.
Se é certo que, como pintura, ela é elétrica tessitura de uma linguagem levada a seus limites -a tal ponto que já não se importa em ser arte- e por isso mesmo, como puro improviso sábio, o é e só é -ao mesmo tempo, como na fase negra de Goya, o que o artista deseja é, mais que tudo, gritar sua revolta, seu inconformismo diante da falta de sentido da existência humana. Mesmo porque, esse sentido, só somos capazes de inventá-lo, quando movidos pela felicidade ou pela esperança.


Ferreira Gullar é poeta e crítico, autor, entre outros livros, de "Relâmpagos" (Cosac & Naify).


Iberê Camargo
Diante da Pintura
Catálogo da Mostra
Pinacoteca do Estado de
São Paulo (até amanhã)
Paço Imperial do Rio de Janeiro
(de 18/8 a 12/10/2003)
Salvador e Recife em 2004
(sem datas definidas)
Curadoria: Paulo Venâncio Filho
Fundação Iberê Camargo
(Tel. 0/xx/ 51/3028-4137)
124 págs., R$ 70,00



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