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Princípios metafísicos
EDUARDO BARRA
Immanuel Kant foi responsável
por uma das mais comemoradas
"viradas" filosóficas de todos os
tempos, ao promover uma reforma radical das tradicionais pretensões da metafísica, substituindo as antigas especulações sobre
os aspectos estruturais do real, do
ser e de seus modos (ontologia)
pela investigação sobre o alcance
e as condições das diferentes formas de representação cognitiva.
Entre essas formas, destaca-se o
conhecimento a priori, característico da metafísica, mas não apenas dela, também da matemática,
sem a qual nada pode ser adequadamente medido ou quantificado.
Kant destinou o conhecimento
a priori a uma tarefa fundamental
e exclusiva no edifício do conhecimento: determinar as condições
de possibilidade de toda e qualquer espécie de conhecimento derivado da experiência.
Mas, para essa finalidade, era
necessário estabelecer também a
própria possibilidade do conhecimento a priori; em particular, daquele tipo de conhecimento que
Kant chamou de "sintético a priori", cuja função seria justamente
proporcionar os princípios (ou as
condições) a priori da experiência. Disso deveria se ocupar a "lógica transcendental", concebida
como a única substituta legítima
para a metafísica tradicional.
O pressuposto central do livro
"A Semântica Transcendental de
Kant", de Zeljko Loparic, é o de
que a lógica transcendental kantiana possa ser interpretada "como uma semântica a priori a serviço de uma teoria de resolução
de problemas (heurística)". Sua
tarefa inicial torna-se, portanto,
esclarecer essa incomum associação entre semântica e heurística
no interior da filosofia transcendental kantiana.
Mediante o uso ampliado do
termo "semântica", a lógica transcendental se converte numa explicitação das "condições a priori
que os objetos empíricos devem
satisfazer para que os outros juízos sintéticos empíricos sobre esses mesmos objetos possam ser
ditos verdadeiros ou falsos ("possíveis') e, em seguida, demonstrados ou refutados".
Kant teria, assim, promovido
uma revisão do conceito tradicional de verdade, "definindo a relação de concordância do conhecimento com o seu objeto (...) pela
relação de preenchibilidade ou satisfazibilidade entre representações discursivas e intuitivas". Enquanto as representações discursivas são exclusivamente aquelas
reunidas sob o título de "categorias" ou "conceitos puros do entendimento", as intuitivas são
tanto a priori quanto empíricas,
mas, neste último caso, apenas
enquanto representações empíricas possíveis.
Este último aspecto revela o caráter construtivista da semântica
transcendental kantiana, em oposição às semânticas realistas, que
exigem um domínio de interpretação "inteiramente independente do que é interpretado", ao qual
as estruturas representacionais
possam ser associadas.
Na semântica construtivista
kantiana, ao contrário, "interpretar significa gerar, por meio de
uma operação de construção, um
objeto (...) que satisfaça as condições do conceito".
Isso Kant demonstra exemplarmente para o caso da matemática,
cujos conceitos e enunciados são
destituídos de sentido e referência
a menos que a existência dos seus
respectivos objetos e de suas propriedades seja assegurada por
meio de uma construção esquemática. Generalizando esse enfoque construtivista, Loparic considera que o esquematismo transcendental kantiano "nada mais é
do que uma teoria da referência e
do significado de conceitos puros
do entendimento".
Resta considerar o modo como
uma semântica apriorística poderia estar "a serviço de" uma heurística. Decerto nenhum tipo de
vínculo interno as associa indissoluvelmente. Nenhum desenvolvimento da semântica transcendental conduz inexoravelmente a
uma teoria da ampliação do conhecimento objetivo, exceto o
modo como Kant constituiu o seu
sistema, passando da filosofia
transcendental ou ontologia geral
à fisiologia -ou, na interpretação
de Loparic, da semântica a priori
do discurso objetivamente válido
à metodologia a priori da pesquisa empírica sobre a natureza em
geral. A essa segunda etapa Kant
chamou "metafísica da natureza",
dividindo-a numa parte geral e
outra especial.
Na metafísica geral da natureza,
a doutrina dos princípios a priori
do entendimento, que inicialmente instituíra a estrutura a
priori intrínseca aos objetos da
experiência, prossegue na sua tarefa constitutiva, acrescentando
agora seus aspectos "relacionais"
ou dinâmicos. Os princípios convertem-se, então, em regras para
aplicação das categorias -sobretudo aquelas relacionais ou dinâmicas, com destaque para a causalidade. Loparic interpreta essas
regras como estipuladoras de um
conceito de natureza "que amplia
essencialmente o conhecimento
perceptivo que dela temos" e,
consequentemente, como constitutivas de "um quadro a priori para a pesquisa científica".
Por outro lado, na metafísica especial da natureza, "os objetos
materiais são considerados como
efetivamente dados mediante determinadas propriedades empíricas, e não como meramente possíveis", e, a esse respeito, tudo o
que a razão a priori tem a fazer é
"postular" as suas condições últimas -condições essas mais uma
vez "dinâmicas" e, portanto, irredutíveis às propriedades de átomos no vazio.
Loparic propõe que esses desdobramentos ulteriores da metafísica kantiana da natureza sejam
encarados como princípios heurísticos destinados a "solucionar
problemas de fundamentação da
física teórica". Problemas dessa
natureza haviam se multiplicado
à época de Kant, quando a física
newtoniana ainda enfrentava dificuldades para conferir inteligibilidade a conceitos como força atrativa, espaço absoluto, grandezas
infinitesimais etc.
A lamentar talvez somente o
exíguo tratamento dispensado à
transição da heurística dos problemas "objetuais" à heurística
dos problemas "sistêmicos". Nada disso, entretanto, ofusca a importância ou a originalidade das
contribuições de Loparic aos estudos kantianos e, em particular,
às tentativas de articular visões
mais adequadas das práticas científicas -entre elas, a concepção
da ciência como uma atividade de
solução de problemas-, deixando de lado velhos dogmas sobre a
irrelevância cognitiva da especulação metafísica.
Eduardo Salles de Oliveira Barra é
professor no departamento de filosofia
da Universidade Federal do Paraná.
A Semântica
Transcendental de Kant
Zeljko Loparic
Coleção CLE-Unicamp
(Tel. 0/xx/19/ 3788-6510)
330 págs., R$ 25,00
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