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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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Princípios metafísicos

EDUARDO BARRA

Immanuel Kant foi responsável por uma das mais comemoradas "viradas" filosóficas de todos os tempos, ao promover uma reforma radical das tradicionais pretensões da metafísica, substituindo as antigas especulações sobre os aspectos estruturais do real, do ser e de seus modos (ontologia) pela investigação sobre o alcance e as condições das diferentes formas de representação cognitiva. Entre essas formas, destaca-se o conhecimento a priori, característico da metafísica, mas não apenas dela, também da matemática, sem a qual nada pode ser adequadamente medido ou quantificado.
Kant destinou o conhecimento a priori a uma tarefa fundamental e exclusiva no edifício do conhecimento: determinar as condições de possibilidade de toda e qualquer espécie de conhecimento derivado da experiência.
Mas, para essa finalidade, era necessário estabelecer também a própria possibilidade do conhecimento a priori; em particular, daquele tipo de conhecimento que Kant chamou de "sintético a priori", cuja função seria justamente proporcionar os princípios (ou as condições) a priori da experiência. Disso deveria se ocupar a "lógica transcendental", concebida como a única substituta legítima para a metafísica tradicional.
O pressuposto central do livro "A Semântica Transcendental de Kant", de Zeljko Loparic, é o de que a lógica transcendental kantiana possa ser interpretada "como uma semântica a priori a serviço de uma teoria de resolução de problemas (heurística)". Sua tarefa inicial torna-se, portanto, esclarecer essa incomum associação entre semântica e heurística no interior da filosofia transcendental kantiana.
Mediante o uso ampliado do termo "semântica", a lógica transcendental se converte numa explicitação das "condições a priori que os objetos empíricos devem satisfazer para que os outros juízos sintéticos empíricos sobre esses mesmos objetos possam ser ditos verdadeiros ou falsos ("possíveis') e, em seguida, demonstrados ou refutados".
Kant teria, assim, promovido uma revisão do conceito tradicional de verdade, "definindo a relação de concordância do conhecimento com o seu objeto (...) pela relação de preenchibilidade ou satisfazibilidade entre representações discursivas e intuitivas". Enquanto as representações discursivas são exclusivamente aquelas reunidas sob o título de "categorias" ou "conceitos puros do entendimento", as intuitivas são tanto a priori quanto empíricas, mas, neste último caso, apenas enquanto representações empíricas possíveis.
Este último aspecto revela o caráter construtivista da semântica transcendental kantiana, em oposição às semânticas realistas, que exigem um domínio de interpretação "inteiramente independente do que é interpretado", ao qual as estruturas representacionais possam ser associadas.
Na semântica construtivista kantiana, ao contrário, "interpretar significa gerar, por meio de uma operação de construção, um objeto (...) que satisfaça as condições do conceito".
Isso Kant demonstra exemplarmente para o caso da matemática, cujos conceitos e enunciados são destituídos de sentido e referência a menos que a existência dos seus respectivos objetos e de suas propriedades seja assegurada por meio de uma construção esquemática. Generalizando esse enfoque construtivista, Loparic considera que o esquematismo transcendental kantiano "nada mais é do que uma teoria da referência e do significado de conceitos puros do entendimento".
Resta considerar o modo como uma semântica apriorística poderia estar "a serviço de" uma heurística. Decerto nenhum tipo de vínculo interno as associa indissoluvelmente. Nenhum desenvolvimento da semântica transcendental conduz inexoravelmente a uma teoria da ampliação do conhecimento objetivo, exceto o modo como Kant constituiu o seu sistema, passando da filosofia transcendental ou ontologia geral à fisiologia -ou, na interpretação de Loparic, da semântica a priori do discurso objetivamente válido à metodologia a priori da pesquisa empírica sobre a natureza em geral. A essa segunda etapa Kant chamou "metafísica da natureza", dividindo-a numa parte geral e outra especial.
Na metafísica geral da natureza, a doutrina dos princípios a priori do entendimento, que inicialmente instituíra a estrutura a priori intrínseca aos objetos da experiência, prossegue na sua tarefa constitutiva, acrescentando agora seus aspectos "relacionais" ou dinâmicos. Os princípios convertem-se, então, em regras para aplicação das categorias -sobretudo aquelas relacionais ou dinâmicas, com destaque para a causalidade. Loparic interpreta essas regras como estipuladoras de um conceito de natureza "que amplia essencialmente o conhecimento perceptivo que dela temos" e, consequentemente, como constitutivas de "um quadro a priori para a pesquisa científica".
Por outro lado, na metafísica especial da natureza, "os objetos materiais são considerados como efetivamente dados mediante determinadas propriedades empíricas, e não como meramente possíveis", e, a esse respeito, tudo o que a razão a priori tem a fazer é "postular" as suas condições últimas -condições essas mais uma vez "dinâmicas" e, portanto, irredutíveis às propriedades de átomos no vazio.
Loparic propõe que esses desdobramentos ulteriores da metafísica kantiana da natureza sejam encarados como princípios heurísticos destinados a "solucionar problemas de fundamentação da física teórica". Problemas dessa natureza haviam se multiplicado à época de Kant, quando a física newtoniana ainda enfrentava dificuldades para conferir inteligibilidade a conceitos como força atrativa, espaço absoluto, grandezas infinitesimais etc.
A lamentar talvez somente o exíguo tratamento dispensado à transição da heurística dos problemas "objetuais" à heurística dos problemas "sistêmicos". Nada disso, entretanto, ofusca a importância ou a originalidade das contribuições de Loparic aos estudos kantianos e, em particular, às tentativas de articular visões mais adequadas das práticas científicas -entre elas, a concepção da ciência como uma atividade de solução de problemas-, deixando de lado velhos dogmas sobre a irrelevância cognitiva da especulação metafísica.


Eduardo Salles de Oliveira Barra é professor no departamento de filosofia da Universidade Federal do Paraná.


A Semântica Transcendental de Kant
Zeljko Loparic
Coleção CLE-Unicamp
(Tel. 0/xx/19/ 3788-6510)
330 págs., R$ 25,00



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