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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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A terceira margem do Atlântico


Estudo analisa relação entre o modernismo paulista e os grandes movimentos europeus


NICOLAU SEVCENKO

"Os grandes artistas não têm pátria", afirmou Alfred de Musset, ele mesmo um grande escritor, poeta e dramaturgo francês, num livro de teor autobiográfico. O paradoxo é tanto maior porque ele pertencia à geração romântica que definiu o tom propriamente nacional da literatura francesa na primeira metade do século 19. Como se sabe, eram os seus adversários, os autores clássicos, quem defendiam o ponto de vista de que a arte superior não tem limites no tempo nem no espaço, sendo por definição imortal e universal. Como entender então a tirada espirituosa de Musset: um "bluff" ou uma "boutade"?
Nenhum dos dois, por certo. Antes ao contrário, trata-se de uma observação fina que capta o âmago mesmo do impulso romântico. Para esses artistas, toda obra criativa deveria ser uma manifestação quintessencial da alma profunda de um povo, cristalizando numa forma estética pura e definida toda a singularidade étnica, histórica e cultural que caracteriza aquela comunidade. Nesse sentido, eles não apenas admitiam, mas se empenhavam para que suas obras fossem marcadamente "nacionais", definindo o impulso espiritual único do que significa ser francês, alemão, inglês, russo, italiano e assim por diante. Essa é a razão pela qual o romantismo, difundido após a Revolução Francesa, se tornou um fermento crucial para a formação dos Estados-nação modernos, para os movimentos de independência nacional e para a divulgação do novo credo político explosivo do nacionalismo.

Raiz local
Assim se resolve a equação: o arrebatamento que impulsiona os povos na busca da liberdade, da expressão mais autêntica de sua imaginação e das mais altas demandas da Justiça, é universal; mas, quando ele consuma essa sua vocação, o resultado, pela força mesma da sua autenticidade, terá sempre uma raiz local, uma inflexão singular e uma destinação nacional. Desde o romantismo, portanto, se entende toda grande arte como sendo universal-nacional. A única coisa que ela não pode ser, jamais e de forma alguma, sob o pecado capital de faltar à verdade das suas origens, é nacional-estrangeira.
Esse é o grande problema de se estudar a história da cultura no período contemporâneo. A difusão em escala mundial dos efeitos da Revolução Industrial e da Revolução Francesa disseminou também os valores do romantismo e do nacionalismo. Eles foram introduzidos no Brasil, por exemplo, pela primeira geração romântica logo após a Independência ("Minha terra tem palmeiras..."). Como essa estética é a mesma em curso na Europa, deduz-se que a parte "européia" que ambos os lados compartilham seja a de teor mais "universal", e a outra, de cor local, seja a que confere a legitimidade nacional. Assim se estabelece um paralelismo harmonioso entre ambas as dimensões, uma validando a outra. E ficam desse modo apagadas as profundas disparidades, dessimetrias e contradições que assinalam as relações entre os agentes colonizadores e as regiões coloniais ou as sociedades pós-coloniais.
O estudo da difusão mundial da estética moderna exacerba ainda mais esse problema, na medida em que o modernismo traz latente em si um interesse voraz por dimensões inferidas como sendo "primitivas", "selvagens", "exóticas", "rítmicas", "sensuais", projetadas como elementos intrínsecos a essa alteridade desejante vagamente definida como o "mundo não-europeu". O que não raro gera a convicção de que o modernismo tenderia a atingir o seu desenvolvimento mais pleno e integral em terras americanas ou brasileiras, do que no seu solo de origem. Consciência essa a se tornar tão arraigada que, em muitos sentidos, o modernismo continua como o mais consistente limiar de referência para a arte brasileira ainda hoje.

Regras perversas
Alguns estudos críticos têm se empenhado em questionar esse desvirtuamento estético e histórico, procurando repor as diferenças, os conflitos, as assimetrias nos seus devidos lugares. Não sem enfrentar uma resistência que vem reforçada pela inércia institucional. Esse amplo preâmbulo é imprescindível para assinalar o significado e o valor mais que oportunos do novo livro do sociólogo Sergio Miceli, "Nacional Estrangeiro - História Social e Cultural do Modernismo Artístico em São Paulo". O texto se torna desde já um instrumento decisivo para reorientar a compreensão do movimento moderno, repassando as ênfases dos aspectos estéticos, doutrinários e propagandísticos para os contextos históricos, sociais e econômicos que acentuam os drásticos contrastes entre os âmbitos brasileiro e europeu e, muito em particular, expõem as regras perversas que regem as interações entre os dois lados do Atlântico.
A peça central que articula o argumento crítico do livro se concentra no conceito que lhe serve de título. Justamente aquela aporia, aquele contra-senso indicado como impossibilidade conceitual ou como plena falsificação estética acima, o "nacional estrangeiro". Segundo a análise de Miceli, longe de caracterizar uma condição paradoxal, esse conceito ambivalente exprime um elemento estrutural inerente ao jogo das trocas desiguais entre o Brasil (ou outros contextos periféricos) e os centros capitalistas. Daí o valor estratégico desse conceito complexo, como uma chave cognitiva para compreender as condições mesmo de criação, reprodução e circulação simbólica na sociedade e cultura brasileiras, seja nesse período estudado, seja em outros. Afora portanto o estudo detalhado e aprofundado do modernismo, o livro traz subjacente uma proposta metodológica e uma matriz analítica das mais promissoras, tanto para as pesquisas históricas quanto para as ciências sociais.
Os potenciais dessa proposta ficam nítidos logo de início, através da análise que o sociólogo faz de um documento de rara riqueza simbólica. Trata-se da tela "Homem com Cachorro", do pintor cubista Fernand Léger, de 1921. O que torna essa pintura um testemunho prodigioso do fenômeno que Miceli pretende estudar são os fatos de que ela é uma segunda versão, mais simplificada de uma tela anterior, tem pendor decorativo e alegórico e, dado particularmente precioso, traz uma dedicatória escrita no verso. Os versos são um arremedo da poesia cubista caligramática de Apollinaire e são dedicados a Paulo Prado, que fizera a encomenda da obra. Ele era o filho e herdeiro do conselheiro Antônio Prado, o mais rico e poderoso fazendeiro de café do país. Os versos diziam: "Allo allo/ Monsieur Prado/ Voici le nuovo/ petit tablo/ est-il plus bo/ Allo allo" ("Alô alô/ Senhor Prado/ Eis o novo/ quadrinho/ é mais bonito?/ Alô alô").
Como bem observa Miceli, Léger refez o quadro original, suavizando a sintaxe cubista, diluindo o esfacelamento espacial e o desdobramento dinâmico dos elementos, de forma a resultar numa representação mais conforme às convenções da pintura figurativa. Ele também indica que a temática, ligada à série das "Paisagens Animadas", exprimia conotações saudosistas, fazendo convergir referências urbanas com rurais, numa síntese de reconciliação harmoniosa de opostos. O resultado final enfatizava efeitos decorativos em detrimento dos desafios estéticos e cognitivos tão caros ao cubismo. Ou seja, arte moderna de fancaria, porém com grife. Uma contrafação cubista para suprir as exigências da imagem cosmopolita pretendida pelo patrono, porém sem arriscar ofender os frequentadores do seu salão. Nesse complicado jogo entre as demandas de Paulo Prado e as concessões de Léger, o resultado é o "nacional estrangeiro".

Padrão de filantropia
Ato seguinte, Miceli estende esse estilo clínico de análise a outras notabilidades do mecenato paulista. Não sem antes registrar a origem recente dessa camada, nas grandes negociatas e fornecimentos do Império e em particular nos rearranjos e transações obscuras que se seguiram à implantação do regime republicano. Os exemplos são muitos, significativos e variados, Ramos de Azevedo, Adolfo Augusto Pinto, Altino Arantes, mas acima de tudo o epítome do mandarim cultural, aquele que Miceli chama "príncipe do patronato artístico":
"Freitas Nobre ilustra de modo exemplar um padrão recorrente de filantropia encontradiço no país, cujos magnatas praticantes, possuidores de grandes fortunas privadas, preferem exercer as atividades características do mecenato artístico mediante a mobilização de subvenções públicas, reservando o desembolso de recursos próprios para o enriquecimento de sua coleção particular".
Assim, os patronos associados às benesses oligárquicas do Partido Republicano tendem a subsidiar a arte acadêmica para o seu próprio consumo e o prazer de seus convivas, arriscando um pouco nas inovações, sobretudo com o dinheiro público. Por outro lado, mecenas como Olívia Guedes Penteado ou o casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral preferem investir em versões artísticas de moderada ousadia, buscando uma inserção social e cultural de investimento predominantemente cosmopolita. Em ambos os extremos, porém, ficam evidentes as diretrizes que comandam as diferentes pautas do nacional e do estrangeiro, bem como as vicissitudes históricas que as fazem convergir para o eixo de compromisso "nacional estrangeiro".
Na seção final, Miceli acompanha os artistas de maior expressão no modernismo paulista, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segall e a família Gomide-Graz, avaliando o mesmo gabarito de tensões. Nessa parte em especial, ficam manifestos a sensibilidade, o refinamento e a erudição dos procedimentos de crítica de arte praticados pelo sociólogo. Cada capítulo é um aprendizado e um prazer. Qualidades que se acrescentam à já reconhecida elegância cristalina do estilo narrativo de Sergio Miceli. Aliás, para fazer uso prático de seu conceito, cabe bem lembrar a sofisticada formação acadêmica que ele teve em instituições de grande prestígio no exterior. Seu trabalho, refletindo essa trajetória notável, indica não apenas quanto a cultura pode oscilar entre os pólos do "nacional estrangeiro", mas sobretudo quão frutífera e promissora essa conjunção pode vir a ser se for assumida, em vez de escamoteada ou renegada.

Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP.


Nacional Estrangeiro
História Social e Cultural
do Modernismo Artístico
em São Paulo
Sergio Miceli
Companhia das Letras
(Tel.0/xx/11/ 3707-3500)
300 págs., R$ 49,00


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