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Ensaios combatem esquecimento ideológico produzido pelo capitalismo contemporâneo
Dramaturgia da recordação
OLGARIA MATOS
O que pode unir ensaios sobre história e
crônica, objetos biográficos e objetos de
status, lembranças paulistanas, preconceito e rebeldia, a cultura das classes pobres, memórias da Segunda Guerra, Henri Bergson e Walter Benjamin, Mahatma Gandhi e Simone Weil? "O Tempo
Vivo da Memória" é a dramaturgia da recordação ativa em época de esquecimento. O livro revela sua dimensão própria:
não se trata de um esquecimento psicológico, mas ideológico, produzido pelo capitalismo contemporâneo, um recalque
histórico, pois a contração do tempo no
mundo contemporâneo ocidental identifica modernidade e progresso, atraso e
tradição.
Em "pianíssimo", Eclea Bosi questiona
a consciência histórica, desfazendo a
crença em um passado único e substancial, constritivo do pensamento: "Marguerite Yourcenar confessou que só conseguiu recompor o passado com um pé
na erudição e outro na magia. Mas, sem
enveredar por esse caminho, podemos
empregar uma expressão como "sensibilidade diacrônica" [...]. A sensibilidade à
diacronia permite que se faça a invocação
de uma "gestalt" longínqua que foi um dia
um complexo vivo de significações".
Que não se engane o leitor. Esta obra
trata do presente: a liberdade produzida
no capitalismo "pós-humano" não é senão esquecimento frio que imobiliza a
consciência e a sensibilidade em um presente perpétuo, neutralizando a experiência, substituindo a narrativa, provérbios e fábulas portadores de uma sabedoria prática transmissível entre as gerações, pela informação jornalística.
O presente cristaliza-se na cultura do
supérfluo descartável, da tecnociência
despoetizadora do cotidiano, do fetichismo da juventude, do "corpo saudável"
sem nenhum ideal de espírito. A juventude, fetiche de jornais, revistas ilustradas e
de seu público, e as inovações tecnológicas que a idolatram constituem a repressão do envelhecimento e a exclusão do
idoso da vida coletiva. A "estima" elevada
do jovem dissimula, ao valer-se de seu esplendor, os medos secretos atribuídos à
terceira idade da vida.
Na substituição veloz das mercadorias,
o novo deteriora-se antes de envelhecer,
sendo o encanto juvenil mobilizado a serviço da "estética da mercadoria": a astúcia do capital e de sua valorização continuada mediante "inovação" permanente
cria, a um só tempo, vazio e desenraizamento. Por essa razão, a autora contrapõe "Objetos Biográficos e Objetos de
Status": "Há objetos que a moda valoriza,
mas não se enraízam nos interiores ou
têm garantia por um ano, não envelhecem com o dono, apenas se deterioram".
Nesse horizonte hostil à velhice, em que
as cidades desenvolvem aspectos fatais,
os objetos biográficos significam a permanência contra a eterna mudança, a estabilidade frente às contingências do presente no qual a difusão em massa das
mercadorias não visa mais a suprir necessidades, mas auto-suprir o mercado
mundial, diante do que "há algo que desejamos permaneça imóvel: o conjunto
dos objetos que nos rodeiam, ao menos
na velhice. Nesse conjunto amamos a disposição tácita, mas eloquente. Mais que
uma sensação estética ou de utilidade,
eles nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade (..).
Quanto mais votados ao uso cotidiano,
mais expressivos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo
perde as arestas e se abranda; envelhecem
com o possuidor e se incorporam à sua
vida".
Horas mortas
O tempo biográfico tem andamento
como na música, desde o alegro da infância, que parece na lembrança luminoso e
doce, até o adágio da velhice. A sociedade
industrial multiplica horas mortas. "Condenados pelo sistema econômico à extrema mobilidade, perdemos a crônica da
família e da cidade em nosso percurso errante."
A cultura contemporânea exalta a relação à distância e o "tempo real" das novas
mídias, incapazes de criar qualquer sentimento de comunhão, de solidariedade,
de fraternidade; a comunicação, para a
autora, requer um mundo moral e cultural comuns. Eclea Bosi nos mostra sua
dissolução no universo presidido pelos
particularismos políticos, sociais, étnicos
e pela informação midiática que mobiliza
e cria estereótipos, isto é, intolerância. Estes representam, no dizer de Theodor
Adorno, a "doença da razão", e seu mecanismo é o de substituir o pensamento reflexivo, a não-adesão ao dado, pelas
"idées recues".
Estereótipos dizem respeito a preconceitos, o que significa, na relação com a
alteridade, ou a desvalorização de si em
nome do "alter" ou a subestimação do
"alter" dirimido pelo "si". Oscilando entre a megalomania e a psicose "maníaco-depressiva", os estereótipos produzem
sentimento de superioridade ou inferioridade -nos dois casos, opressão. Que se
pense em particular na cultura midiática,
na indústria cultural onde tudo é intercambiável e tem em vista um consumidor, além de produzir a cisão entre "cultura de elite" e "cultura popular", segundo o pressuposto de que a verdadeira cultura é inacessível ao grande público.
Contra isso ressoa a voz de Simone
Weil, para quem a filosofia não é apenas
modalidade reflexiva, mas um modo de
intervenção, como o foi para os gregos.
Encenou, para operárias de fundição,
"Antígona", escrevendo ao diretor: "A
grande poesia grega (está) cem vezes
mais perto do povo, se ele a pudesse conhecer, do que a literatura francesa clássica e moderna". Simone Weil, mostra
Eclea Bosi, foi uma intelectual no sentido
mais forte; foi "não-orgânica", suas ações
não se guiavam por preferências partidárias; engajada em seu tempo, foi perdendo suas forças físicas: na resistência francesa contra a ocupação alemã durante o
nazismo, em militância nas fábricas onde
partilhava com operárias e operários suas
precárias condições de trabalho, mas
também literatura e arte.
O capitalismo ultraliberal, o da economia-fetiche, cujos valores máximos são a
competição, a eficiência e o sucesso, só
reconhece o ganhador e o perdedor. No
caso específico, Eclea refere-se à ideologia do fracasso ou do sucesso criada pelo
capitalismo excludente que faz do perdedor um pária da sociedade: "(Essa) discrepância social é [...] um solo fértil para a
superstição. É terreno para a Sorte, o
Acaso, a Fortuna, os Astros, onde vicejam o jogo, a loteria, os videntes [...]. Proliferam as religiões que alienam e consolam".
Em outras palavras, a modernidade capitalista impossibilita a existência de uma
memória coletiva representável e, assim,
contestável -que é a condição mesma
da democracia. Ou, no plano elaborado
por Eclea, o pensamento não se subordina a nenhum determinismo, estrutura ou
processo, à redução da sociedade e do
mundo do capital à natureza irresistível
de forças mecânicas às quais o homem
não pode escapar.
Donde o pensamento dissonante, mas
em momento nenhum regressivo de
Gandhi e sua resistência ao capitalismo e
ao colonialismo inglês: "Gandhi aconselhou vivamente a não jogar fora os objetos quebrados, mas a repará-los, nem
abandonar as coisas velhas, mas conservá-las em uso". Gandhi vale-se da palavra
em sânscrito "svadeshi", que contém diversos significados, desde a libertação do
escravismo terrestre, passando pela consagração ao serviço do próximo e dever
para com a sociedade, até formas de produção local.
Emblema terrífico da contemporaneidade, na qual se fundem a racionalidade-irracional do mundo das mercadorias e
da intolerância radical, encontra-se no
ensaio "O Campo de Terezin". Situada na
Boêmia-Morávia, a cidade foi transformada, pelo nazismo, em campo de concentração. Utopia ao revés, essa cidadela
frequenta teatros onde se encenam Shakespeare, óperas de Mozart e Bizet, conjuntos de câmara e jazz, escolas infantis
de vanguarda, e nela também esportes
são praticados. Aos poucos essas imagens são substituídas pelo horror. Contra
os carrascos, artistas como Arthur
Goldschmidt, Bedricht Fritta, Leo Haas,
Otto Ungar, o compositor Gideon Klein,
entre outros, eternizaram, na sobrevivência da arte e no sofrimento de seus retratos, que o Bem pode existir, que o Mal
não deve ter a última palavra.
Olgaria Matos é professora do departamento de
filosofia da USP e autora, entre outros livros, de
"Arcanos do Inteiramente Outro" (Brasiliense).
O Tempo Vivo da Memória
Eclea Bosi
Ateliê (Tel.0/xx/4612-9666)
218 págs., R$ 38,00
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