UOL


São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ensaios combatem esquecimento ideológico produzido pelo capitalismo contemporâneo

Dramaturgia da recordação

OLGARIA MATOS

O que pode unir ensaios sobre história e crônica, objetos biográficos e objetos de status, lembranças paulistanas, preconceito e rebeldia, a cultura das classes pobres, memórias da Segunda Guerra, Henri Bergson e Walter Benjamin, Mahatma Gandhi e Simone Weil? "O Tempo Vivo da Memória" é a dramaturgia da recordação ativa em época de esquecimento. O livro revela sua dimensão própria: não se trata de um esquecimento psicológico, mas ideológico, produzido pelo capitalismo contemporâneo, um recalque histórico, pois a contração do tempo no mundo contemporâneo ocidental identifica modernidade e progresso, atraso e tradição.
Em "pianíssimo", Eclea Bosi questiona a consciência histórica, desfazendo a crença em um passado único e substancial, constritivo do pensamento: "Marguerite Yourcenar confessou que só conseguiu recompor o passado com um pé na erudição e outro na magia. Mas, sem enveredar por esse caminho, podemos empregar uma expressão como "sensibilidade diacrônica" [...]. A sensibilidade à diacronia permite que se faça a invocação de uma "gestalt" longínqua que foi um dia um complexo vivo de significações".
Que não se engane o leitor. Esta obra trata do presente: a liberdade produzida no capitalismo "pós-humano" não é senão esquecimento frio que imobiliza a consciência e a sensibilidade em um presente perpétuo, neutralizando a experiência, substituindo a narrativa, provérbios e fábulas portadores de uma sabedoria prática transmissível entre as gerações, pela informação jornalística.
O presente cristaliza-se na cultura do supérfluo descartável, da tecnociência despoetizadora do cotidiano, do fetichismo da juventude, do "corpo saudável" sem nenhum ideal de espírito. A juventude, fetiche de jornais, revistas ilustradas e de seu público, e as inovações tecnológicas que a idolatram constituem a repressão do envelhecimento e a exclusão do idoso da vida coletiva. A "estima" elevada do jovem dissimula, ao valer-se de seu esplendor, os medos secretos atribuídos à terceira idade da vida.
Na substituição veloz das mercadorias, o novo deteriora-se antes de envelhecer, sendo o encanto juvenil mobilizado a serviço da "estética da mercadoria": a astúcia do capital e de sua valorização continuada mediante "inovação" permanente cria, a um só tempo, vazio e desenraizamento. Por essa razão, a autora contrapõe "Objetos Biográficos e Objetos de Status": "Há objetos que a moda valoriza, mas não se enraízam nos interiores ou têm garantia por um ano, não envelhecem com o dono, apenas se deterioram".
Nesse horizonte hostil à velhice, em que as cidades desenvolvem aspectos fatais, os objetos biográficos significam a permanência contra a eterna mudança, a estabilidade frente às contingências do presente no qual a difusão em massa das mercadorias não visa mais a suprir necessidades, mas auto-suprir o mercado mundial, diante do que "há algo que desejamos permaneça imóvel: o conjunto dos objetos que nos rodeiam, ao menos na velhice. Nesse conjunto amamos a disposição tácita, mas eloquente. Mais que uma sensação estética ou de utilidade, eles nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade (..). Quanto mais votados ao uso cotidiano, mais expressivos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e se abranda; envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida".

Horas mortas
O tempo biográfico tem andamento como na música, desde o alegro da infância, que parece na lembrança luminoso e doce, até o adágio da velhice. A sociedade industrial multiplica horas mortas. "Condenados pelo sistema econômico à extrema mobilidade, perdemos a crônica da família e da cidade em nosso percurso errante."
A cultura contemporânea exalta a relação à distância e o "tempo real" das novas mídias, incapazes de criar qualquer sentimento de comunhão, de solidariedade, de fraternidade; a comunicação, para a autora, requer um mundo moral e cultural comuns. Eclea Bosi nos mostra sua dissolução no universo presidido pelos particularismos políticos, sociais, étnicos e pela informação midiática que mobiliza e cria estereótipos, isto é, intolerância. Estes representam, no dizer de Theodor Adorno, a "doença da razão", e seu mecanismo é o de substituir o pensamento reflexivo, a não-adesão ao dado, pelas "idées recues".
Estereótipos dizem respeito a preconceitos, o que significa, na relação com a alteridade, ou a desvalorização de si em nome do "alter" ou a subestimação do "alter" dirimido pelo "si". Oscilando entre a megalomania e a psicose "maníaco-depressiva", os estereótipos produzem sentimento de superioridade ou inferioridade -nos dois casos, opressão. Que se pense em particular na cultura midiática, na indústria cultural onde tudo é intercambiável e tem em vista um consumidor, além de produzir a cisão entre "cultura de elite" e "cultura popular", segundo o pressuposto de que a verdadeira cultura é inacessível ao grande público.
Contra isso ressoa a voz de Simone Weil, para quem a filosofia não é apenas modalidade reflexiva, mas um modo de intervenção, como o foi para os gregos. Encenou, para operárias de fundição, "Antígona", escrevendo ao diretor: "A grande poesia grega (está) cem vezes mais perto do povo, se ele a pudesse conhecer, do que a literatura francesa clássica e moderna". Simone Weil, mostra Eclea Bosi, foi uma intelectual no sentido mais forte; foi "não-orgânica", suas ações não se guiavam por preferências partidárias; engajada em seu tempo, foi perdendo suas forças físicas: na resistência francesa contra a ocupação alemã durante o nazismo, em militância nas fábricas onde partilhava com operárias e operários suas precárias condições de trabalho, mas também literatura e arte.
O capitalismo ultraliberal, o da economia-fetiche, cujos valores máximos são a competição, a eficiência e o sucesso, só reconhece o ganhador e o perdedor. No caso específico, Eclea refere-se à ideologia do fracasso ou do sucesso criada pelo capitalismo excludente que faz do perdedor um pária da sociedade: "(Essa) discrepância social é [...] um solo fértil para a superstição. É terreno para a Sorte, o Acaso, a Fortuna, os Astros, onde vicejam o jogo, a loteria, os videntes [...]. Proliferam as religiões que alienam e consolam".
Em outras palavras, a modernidade capitalista impossibilita a existência de uma memória coletiva representável e, assim, contestável -que é a condição mesma da democracia. Ou, no plano elaborado por Eclea, o pensamento não se subordina a nenhum determinismo, estrutura ou processo, à redução da sociedade e do mundo do capital à natureza irresistível de forças mecânicas às quais o homem não pode escapar.
Donde o pensamento dissonante, mas em momento nenhum regressivo de Gandhi e sua resistência ao capitalismo e ao colonialismo inglês: "Gandhi aconselhou vivamente a não jogar fora os objetos quebrados, mas a repará-los, nem abandonar as coisas velhas, mas conservá-las em uso". Gandhi vale-se da palavra em sânscrito "svadeshi", que contém diversos significados, desde a libertação do escravismo terrestre, passando pela consagração ao serviço do próximo e dever para com a sociedade, até formas de produção local.
Emblema terrífico da contemporaneidade, na qual se fundem a racionalidade-irracional do mundo das mercadorias e da intolerância radical, encontra-se no ensaio "O Campo de Terezin". Situada na Boêmia-Morávia, a cidade foi transformada, pelo nazismo, em campo de concentração. Utopia ao revés, essa cidadela frequenta teatros onde se encenam Shakespeare, óperas de Mozart e Bizet, conjuntos de câmara e jazz, escolas infantis de vanguarda, e nela também esportes são praticados. Aos poucos essas imagens são substituídas pelo horror. Contra os carrascos, artistas como Arthur Goldschmidt, Bedricht Fritta, Leo Haas, Otto Ungar, o compositor Gideon Klein, entre outros, eternizaram, na sobrevivência da arte e no sofrimento de seus retratos, que o Bem pode existir, que o Mal não deve ter a última palavra.


Olgaria Matos é professora do departamento de filosofia da USP e autora, entre outros livros, de "Arcanos do Inteiramente Outro" (Brasiliense).


O Tempo Vivo da Memória
Eclea Bosi
Ateliê (Tel.0/xx/4612-9666)
218 págs., R$ 38,00


Texto Anterior: Relações internacionais
Próximo Texto: A terceira margem do Atlântico
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.