São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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A vida do inconfidente

REINALDO MARQUES

R. G. Collingwood recomendava ao historiador o emprego de uma "imaginação construtiva". Como o detetive competente, com faro para a "estória", o historiador deve possuir o senso das formas possíveis que as situações humanas podem assumir. Cabe a ele, então, fornecer explicações plausíveis para corpos de testemunhos históricos, descobrindo a estória neles contida. Assim, a categoria da imaginação construtiva relaciona-se à seleção dos fatos e à urdidura do enredo, operações que aproximam o texto histórico do texto literário, segundo Hay- den White.
00Primeira biografia de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), de autoria de Adelto Gonçalves, "Um Poeta do Iluminismo" é resultado de uma notável pesquisa documental, que possibilitou recomposição detalhada da vida do poeta inconfidente, em particular do período até então pouco conhecido de seu exílio em Moçambique. Trata-se de trabalho imprescindível para qualquer estudo sobre Gonzaga, visto que ilumina os meandros da vida intelectual e a trajetória histórica de uma das figuras mais proeminentes da literatura brasileira do período colonial. Nele ressaltam-se as conexões do intelectual com os interesses das elites econômicas locais; a confusão entre o público e o privado na administração oficial, fonte de corrupção; a utilidade do letrado, cujo serviço é demanda do Estado colonial, bem como suas ambiguidades e dilaceramentos.
00Como saber narrativo, a biografia de Gonzaga se constitui nos interstícios da pesquisa histórica e do relato ficcional. Em sua montagem, Adelto Gonçalves exercita bem aquela imaginação construtiva. Amparado na consulta de mais de 50 mil documentos em arquivos e bibliotecas do Brasil e de Portugal, o autor recompõe significativos corpos de testemunhos sobre a vida de Gonzaga, a partir dos quais urde um enredo, para o que contribui sua experiência de romancista. Revela aquele senso das formas possíveis e o faro para a estória, provendo seus leitores de explicações plausíveis para os fatos da história do biografado. Mas, ao dispor num enredo a vida do inconfidente, o biógrafo seleciona eventos e os organiza numa determinada ordem, conferindo ênfase a uns em detrimento de outros; privilegia certos corpos de testemunhos, no trato das fontes documentais; recorre, enfim, a procedimentos retóricos e discursivos.
00Em "Um Poeta do Iluminismo" mesclam-se o ficcional e o documental, com nítido predomínio deste último. Comprova tal predomínio seja a existência das 2.192 notas de remissão à mais variada gama de documentos, tomando cerca de 90 das mais de 500 páginas do livro, seja a franca opção pela diacronia na configuração dos eventos, ordenando as categorias de tempo e espaço. Daí que os capítulos contenham em seus títulos indicação das cidades em que viveu o poeta, acompanhada do período em que nelas permaneceu: "Porto (1744-1752)", "Olinda e Recife (1752-1759)".
00Aquela imponência do documental, aliada a esse tipo de organização diacrônica, tende, de um lado, a conferir ao relato biográfico um caráter de veracidade indiscutível, na medida em que, linearizados e ordenados, os fatos parecem submeter-se ao princípio da causalidade histórica e, de outro, a velar o recurso aos procedimentos e artifícios próprios da construção narrativa. O que, a um olhar crítico cioso das fronteiras entre os campos disciplinares e discursivos, parecerá congruente com a natureza do texto biográfico, respeitoso do testemunho irrefutável do documento.
00Todavia, rompendo a crosta documental, o ficcional se insinua na biografia escrita por Adelto Gonçalves, denunciando a presença do subjetivo e a hibridez dos campos discursivos e disciplinares. Com efeito, ao impor um esquema narrativo aos fatos que marcam a vida de Gonzaga, o autor recorta certos episódios, encadeando-os, de modo que uns fiquem em destaque, e outros, reduzidos a pano de fundo. É o caso do lugar secundário ocupado tanto por Maria Dorotéia, noiva do poeta e inspiradora de sua Marília, quanto pela escrita das liras de "Marília de Dirceu", ao passo que sua amante, Maria Anselma, e as "Cartas Chilenas", de maior envergadura documental, ganham ênfase. Ante a dupla face de Gonzaga -a do poeta e a do inconfidente-, conquanto ambas sejam indissociáveis, em seu arranjo narrativo a biografia de Gonçalves parece privilegiar o ator da Conjuração Mineira em detrimento do poeta.
00O recurso ao subjuntivo hipotético, às deduções e inferências, constitui outro elemento indicador da mobilidade do ficcional. Assim é que abundam fórmulas do tipo "talvez", "é provável que", "é quase certo que", "é de imaginar que". Demonstram-no o relato da visita do novo governador, Cunha Meneses, a d. Rodrigo, que deixava o posto, e a reconstituição do estado de espírito de Gonzaga na tarde daquele sábado de 6 de julho de 1788, véspera do casamento da antiga amante do poeta.
00Ao se concluir a leitura de "Um Poeta do Iluminismo", fica no leitor crítico, entretanto, a impressão de que o seu autor produziu uma biografia de teor iluminista, porquanto fundada na idéia de que, desdobrando-se os acontecimentos de uma vida no quadro da linguagem, é possível abarcá-la em toda sua amplitude, totalizando-a. Nesse sentido, em termos de uma crítica biográfica, ela se afasta do biografema barthesiano, de cunho fragmentário, ao prover a vida de Gonzaga de certa coesão e coerência. Iluminista ainda na medida em que, confiante nas armas da razão e do discurso, não desconfia de seus pressupostos -a exemplo da primazia do documental-, não suspeitando do caráter também construído dos documentos que sustentam o relato biográfico. Fatores estes que talvez expliquem a feição monumental dessa primeira biografia de Gonzaga.



Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
Adelto Gonçalves
Nova Fronteira (Tel. 0/xx/21/537-8770)
544 págs., R$ 44,00



Reinaldo Marques é professor de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais e co-editor e colaborador de "Limiares Críticos" (Autêntica).

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